- Não, com o Eusebiosinho não, filho! Não tem saude para essas cavalladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!
Mas o Eusebiosinho, a um repellão mais forte, rolara no chão, soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. A mãe, tremula, agachada junto d'elle, punha-o de pé sobre as perninhas molles, limpando-lhe as grossas lagrimas, já com o lenço, já com beijos, quasi a chorar tambem. O delegado, consternado, apanhara o bonet escossez, e cofiava melancolicamente a bella pena de gallo. E a Viscondessa apertava ás mãos ambas o enorme seio, como se as palpitações a suffocassem.
O Eusebiosinho foi então preciosamente collocado ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgôr de colera na face magra, apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos que, de mãos atraz das costas e aos pulos em roda do canapé, ria, arreganhando para o Eusebiosinho um labio feroz. Mas n'esse momento davam nove horas, e a desempenada figura do Brown appareceu á porta.
Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detraz da Viscondessa, gritando:
- Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou deitar!
Então Affonso da Maia, que se não movera aos uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:
- Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.
- Oh vôvô, é festa, que está cá o Villaça!
Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor – em quanto elle, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:
- É festa, vôvô... É uma maldade!... O Villaça póde-se escandalisar... Oh vovô, eu não tenho somno!
Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquella rigidez: ahi estava uma cousa incomprehensivel; o avô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée...
- Oh sr. Affonso da Maia, por que não deixou estar a creança?
- É necessario methodo, é necessario methodo, balbuciou elle, entrando, todo pallido do seu rigor.
E á mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tremulas, repetia ainda:
- É necessario methodo. Creanças á noite dormem.
D. Anna Silveira voltando-se para o Villaça - que cedera o seu lugar ao dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras – teve aquelle sorriso mudo que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia fallava em «methodos.»
Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar d'ironia, que, talvez por ter a intelligencia
curta, nunca comprehendera a vantagem dos «methodos»... Era á ingleza, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ella estava enganada, ou Sta. Olavia era no reino de Portugal...
E como Villaça inclinava timidamente a cabeça, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Affonso dentro não ouvisse, desabafou. O sr. Villaça naturalmente não sabia, mas aquella educação do Carlinhos nunca fôra approvada pelos amigos da casa.
Já a presença do Brown, um heretico, um protestante, como perceptor na familia dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o sr. Affonso tinha aquelle santo do abbade Custodio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria á creança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, preparal-o para fazer boa figura em Coimbra.
N'esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente d'ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Affonso já não podia ouvir, D. Anna ergueu a voz:
- E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. Villaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que succedeu com a Macedo.
Villaça já sabia.
- Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricção...
A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao ceu atravez do tecto.
- Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher chegou lá a nossa casa embuchada...
E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquillo tres noites a fio...
Calou-se um momento. Villaça, embaraçado, acanhado, fazia girar a caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de somnolencia passou na sala; D.
Eugenia, com as palpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha molle no crochet; e a noiva de Carlos, estirada para o canto do sophá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabellos negros caindo-lhe pelo pescoço.
D. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua idéa:
- Sem contar que o pequeno está muito atrazado. A não ser um bocado de inglez, não sabe nada... Nem tem prenda nenhuma!
- Mas é muito esperto, minha rica senhora! accudiu Villaça.
- É possivel, respondeu seccamente a intelligente Silveira.
E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado d'ella, quieto como se fosse de gesso:
- Oh filho, dize tu aqui ao sr. Villaça aquelles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Euzebio, filho, sê bonito...
Mas o menino, mollengão e tristonho, não se descollava das saias da titi: teve ella de o pôr de pé, amparal-o, para que o tenro prodigio não alluisse sobre as perninhas flacidas; e a mamã prometteu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ella...
Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d'uma torneira lassa veio de lá escorrendo, n'um fio de voz, um recitativo lento e babujado:
É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plumbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, humido véo...
Disse-a toda - sem se mexer, com as mãosinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopea, ia cerrando as palpebras.
- Muito bem, muito bem! exclamou o Villaça, impressionado, quando o Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memoria! Que memoria! É um prodigio!...
Os creados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custodio, de pé, com a sua chavena na mão, queixava-se amargamente da maneira porque aquelles senhores o tinham esfolado.
Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se ás nove e meia. O serviçal dr. delegado dava o braço a D. Eugenia; um creado da quinta allumiava adiante com o lampeão; e o moço das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeça.
Depois da ceia Villaça acompanhou ainda um momento Affonso da Maia á livraria, onde, antes de recolher, elle tomava sempre á ingleza o seu cognac e soda.
O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminé, e o globo do candieiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silencio da noite.
Emquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Affonso, n'uma mesa baixa, os crystaes e as garrafas de soda, Villaça, com as mãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a braza da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:
- Aquelle rapazito é esperto...
- Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se accomodava junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Villaça! O Carlos não gosta d'elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso... Foi já ha mezes. Havia uma procissão e o Eusebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excellentes mulheres, coitadas, mandaram-n'o cá para o mostrar á viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores, distrahimo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se d'elle, leva-o para o sotão, e, meu caro Villaça... Em primeiro logar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o peior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos apparece o Eusebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a corôa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tulles, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Emfim, um anjo depennado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.