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Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, accrescentou, com uma satisfação profunda:

- É levado do diabo, Villaça!

O administrador, sentado agora á borda de uma cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Affonso, com as mãos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou ainda, tossio de leve; e continuou a seguir pensativamente as faiscas que erravam sobre as achas.

Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a fallar do Silveirinha. Tinha tres ou quatro mezes mais que Carlos, mas estava enfesado, estiolado, por uma educação á portugueza: d'aquella edade ainda dormia no chôco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanellas! Passava

os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Cathecismo de Perseverança.

Elle por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que o sol é que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao sol, para onde ha d'ir e onde ha de parar etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel...

Villaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:

- V. Ex.ª sabe que appareceu a Monforte?

Affonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da poltrona, perguntou tranquillamente, envolvido no fumo do cachimbo:

- Em Lisboa?

- Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa d'ella.

E ficaram calados. Havia annos que entre elles se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preoccupação ardente de Affonso da Maia fôra tirar-lhe a filha que ella levara. Mas a esse tempo ninguem sabia onde Maria se refugiara com o seu principe: nem pela influencia das legações, nem pagando regiamente a policia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se poude descobrir a

«toca da fera» como disia então o Villaça. Ambos decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas bohemias, quem sabe se não errariam agora pela America, pela India, em regiões mais exoticas? Depois, pouco a pouco, Affonso da Maia descorçoado com aquelles esforços vãos, todo occupado do neto que crescia bello e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que elle lhe dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem ignorava as feições, de quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte apparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquella creança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...

Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento, com a cabeça baixa. Junto á mesa, ao pé do candieiro, o Villaça ia percorrendo um a um os papeis da sua carteira.

- E está em Paris com o italiano? perguntou Affonso do fundo sombrio do aposento.

O Villaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:

- Não senhor, está com quem lhe paga.

E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Villaça, dando-lhe um papel dobrado, accrescentou:

- Todas estas cousas são muito graves, sr. Affonso da Maia, e eu não quiz fiar-me só na minha memoria. Por isso pedi ao Allencar, que é um excellente rapaz, que me escrevesse n'uma carta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu não sei mais do que ahi está escripto. Póde V. Ex.ª ler...

Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma historia simples, que o Alencar, o poeta das Vozes d'Aurora, o estylista de Elvira, ornára de flores e de galões dourados como uma capella em dia de festa.

Uma noite, ao sahir da Maison d'Or, elle vira a Monforte saltar d'um coupé com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido: e um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candieiro do gaz, no trottoir. Foi ella que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: Mme. de l'Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte a Monforte fallou largamente de si: vivera tres annos em Vienna d'Austria com Tancredo, e com o papá que se lhes fôra reunir - e que lá continuava de certo, como em Arroios,

refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as toilettes da filha, e dando palmadinhas ternas no hombro do amante como outr'ora no hombro do marido. Depois tinham estado em Monaco; e ahi, dizia o Alencar, «n'um drama sombrio de paixão que ella me fez entrever» o napolitano fora morto em duello. O papá morrera tambem n'esse anno, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de réis, e a mobilia da casa em Vienna: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao baccarat. Passára então um tempo em Londres: e d'ahi viera habitar Paris, com Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe era a elle d'ora em diante inutil porque passava a adoptar outro mais sonoro de Vicomte de Manderville. Emfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lançara-se na existencia d'aquellas mulheres de quem, dizia o Alencar, «a pallida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camelias é o typo sublime, o symbolo poetico, a quem muito será perdoado porque muito amaram.» E o poeta terminava: «ella está ainda no esplendor da belleza, mas as rugas virão, e então que avistará em redor de si? As rosas seccas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Sahi d'aquelle boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Villaça! Pensava no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos cyprestes. E, desilludido d'esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no boulevard, uma hora de esquecimento.»

Affonso da Maia deu um repellão á carta, menos enojado das torpezas da historia, que d'aquelles lyrismos relambidos.

E recomeçou a passear, emquanto o Villaça recolhia religiosamente o documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do sentimento, do estylo, do ideal d'aquella pagina.

- E a pequena? perguntou Affonso.

- Isso não sei. O Alencar não lhe fallaria na filha, nem elle mesmo sabe que ella a levou.

Ninguem o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escandalo.

Mas emquanto a mim, a pequena morreu. Senão, siga V. Ex.ª o meu raciocinio... Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar a legitima que cabe á creança... Ella sabe a casa que V. Ex.ª tem; ha de haver dias, e são frequentes na vida d'essas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educação da menina, ou de alimentos, já nos tinha importunado... Escrupulos não tem ella. Se o não faz é que a filha morreu. Não lhe parece a V. Ex.ª?

- Talvez, disse Affonso.

E accrescentou, parando deante de Villaça - que olhava outra vez a braza morta tirando estalinhos dos dedos:

- Talvez... Sopônhamos que morreram ambas, e não se falle mais n'isso.

Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Villaça passou em Sta. Olavia não se proferiu mais o nome de Maria Monforte.

Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio ao quarto d'elle, a entregar-lhe as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a Villaça Junior, um alfinete de peito com uma magnifica saphira - e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado, balbuciava os agradecimentos:

- Agora outra cousa, Villaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que procure essa creatura, e que lhe offereça dez ou quinze contos de réis, se ella me quizer entregar a filha... No caso, está claro, que esteja viva... E quero que você saiba d'esse Alencar a morada da mulher em Paris.

O Villaça não respondeu, occupado a metter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou deante d'Affonso, a coçar reflectidamente o queixo.

- Então que lhe parece, Villaça?

- Parece-me arriscado.

E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus habitos... Nem fallaria o portuguez. As saudades da mãe haviam de ser terriveis... Emfim, o sr. Affonso da Maia trazia uma extranha para casa...

- Você tem rasão, Villaça. Mas a mulher é uma prostituta, e a pequena é do meu sangue.

N'esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vôvô, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã.

- O Brown tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vôvô viesse ver, andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...

- Vem depressa, ó vôvô! Depressa, que é necessario ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha que se póde affligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Villaça vem ver! Ó

vôvô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha póde dar pela falta!...

E impaciente com a lentidão risonha do vôvô, tanta indifferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.

- Que bom coração! exclamou o Villaça commovido. A pensar nas saudades da coruja...

A mãe d'elle é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!

Affonso encolheu tristemente os hombros. Iam já no corredor quando elle, parando um momento, baixando a voz:

- Tem-me esquecido de lhe contar, Villaça, o Carlos sabe que o pae que se matou...

Villaça arredondou os olhos d'espanto. Era verdade. Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: - ó vôvô, o papá matou-se com uma pistola! - Naturalmente algum creado que lh'o contara...

- E vossa excellencia?

Are sens