E o Alencar, perante esta intimação do Cohen, o respeitado director do Banco Nacional, o marido da divina Rachel, o dono d'essa hospitaleira casa da rua do Ferregial onde se jantava tão bem, recalcou o despeito - admittiu que não deixava de haver talento e saber.
Então, tendo assim, pela influencia do seu Banco, dos bellos olhos da sua mulher e da excellencia do seu cosinheiro, chamado estes espiritos rebeldes ao respeito dos Parlamentares e á veneração da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o paiz necessitava reformas...
Ega porém, incorrigivel n'esse dia, soltou outra enormidade:
- Portugal não necessita refórmas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão hespanhola.
Alencar, patriota á antiga, indignou-se. O Cohen, com aquelle sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, vio alli apenas «um dos paradoxos do nosso Ega.» Mas o Ega fallava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia elle, invasão não significa perda absoluta de independencia. Um receio tão estupido é digno só de uma sociedade tão estupida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um paiz que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguem consentiria em deixar cahir nas mãos de Hespanha, nação militar e maritima, esta bella linha de costa de Portugal. Sem contar as allianças que teriamos, a troco das colonias - das colonias que só nos servem, como a prata de familia aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise...
Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, n'um momento de guerra europea, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnisação, perdermos uma ou duas provincias, ver talvez a Galliza estendida até ao Douro...
- Poulet aux champignons, murmurou o creado, apresentando-lhe a travessa.
E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elle a salvação do paiz, nessa catastrophe que tornaria povoação
hespanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heroes, berço dos Egas...
- N'isto: no ressuscitar do espirito publico e do genio portuguez! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tinhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bella situação nos achavamos! Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da inscripção, porque tudo desapparecia, estavamos novos em folha, limpos, escarollados, como se nunca tivessemos servido. E recomeçava-se uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal serio e intelligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilisação como outr'ora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tarêa... Oh Deus d'Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o St. Emilion.
Agora, n'um rumor animado, discutia-se a invasão. Ah, podia-se fazer uma bella resistencia! Cohen affiançava o dinheiro. Armas, artilheria, iam comprar-se á America - e Craft offereceu logo a sua collecção de espadas do seculo XVI. Mas generaes? Alugavam-se. Mac-Mahon, por exemplo, devia estar barato...
- O Craft e eu organisamos uma guerrilha, gritou Ega.
- Ás ordens, meu coronel.
- O Alencar, continuava Ega, é encarregado de ir despertar pela provincia o patriotismo, com cantos e com odes!
Então o poeta, pousando o calice, teve um movimento de leão que sacode a juba:
- Isto é uma velha carcassa, meu rapaz, mas não está só para odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria é boa, ainda vão a terra um par de gallegos... Caramba, rapazes, só a idéa d'essas cousas me põe o coração negro! E como vocés podem fallar n'isso, a rir, quando se trata do paiz, d'esta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja má, de accordo, mas, caramba! é a única que temos, não temos outra! É aqui que vivemos, é aqui que rebentamos... Irra, fallemos d'outra cousa, fallemos de mulheres!
Dera um repellão ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de paixão patriotica...
E no silencio que se fez Damaso, que desde as informações sobre a rapariga do Ermidinha emmudecera, occupado a observar Carlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de finura:
- Se as cousas chegassem a esse ponto, se pozessem assim feias, eu cá, á cautela, ia-me raspando para Paris...
Ega triumphou, pulou de gosto na cadeira. Eis alli, no labio synthetico de Damaso, o grito espontaneo e genuino do brio portuguez! Raspar-se, pirar-se!...
Era assim que d'alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!...
- Meninos, ao primeiro soldado hespanhol que appareça á fronteira, o paiz em massa foge como uma lebre! Vae ser uma debandada unica na historia!
Houve uma indignação, Alencar gritou:
- Abaixo o traidor!
Cohen interveio, declarou que o soldado portuguez era valente, á maneira dos turcos -
sem disciplina, mas teso. O proprio Carlos disse, muito serio:
- Não senhor... Ninguem ha de fugir, e ha de se morrer bem.
Ega rugiu. Para quem estavam elles fazendo essa pose heroica? Então ignoravam que esta raça, depois de cincoenta annos de constitucionalismo, creada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos lyceus, roída de syphlis, apodrecida no bolôr das secretarías, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o musculo como perdera o caracter, e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa?...
- Isso são os lisboetas, disse Craft.
- Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fóra de Lisboa não há nada. O paiz está todo entre a Arcada e S. Bento!...
A mais miseravel raça da Europa! continuava elle a berrar. E que exercito! Um regimento, depois de dois dias de marcha, dava entrada em massa no hospital! Com seus olhos tinha elle visto, no dia da abertura das Côrtes, um marujo sueco, um rapagão do Norte, fazer debandar, a soccos, uma companhia de soldados; as praças tinham litteralmente largado a fugir, com a patrona a batter-lhe os rins; e o officíal, enfiado de terror, metteu-se para uma escada, a vomitar!...
Todos protestaram. Não, não era possivel... Mas se elle tinha visto, que diabo!... Pois sim, talvez, mas com os olhos fallazes da phantasia...
- Juro pela saude da mamã! gritou Ega furioso.
Mas emmudeceu. O Cohen tocara-lhe no braço. O Cohen ía fallar.
O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os hespanhoes porém pensassem na invasão isso parecia-lhe certo - sobretudo se viessem, como era natural, a perder Cuba. Em Madrid todo o mundo lh'o dissera. Já havia mesmo negocios de fornecimentos entabolados...
- Hespanholadas, gallegadas! rosnou Alencar, por entre dentes, sombrio e torcendo os bigodes.
- No Hotel de Paris, continuou Cohen, em Madrid, conheci eu um magistrado, que me disse com um certo ar que não perdia a esperança de se vir estabelecer de todo em Lisboa; tinha-lhe agradado muito Lisboa, quando cá estivera a banhos. E em quanto a mim, estou que ha muitos hespanhoes que estão á espera d'este augmento de territorio para se empregarem!
Então Ega cahiu em extasi, apertou as mãos contra o peito. Oh que delicioso traço! Oh que admiravelmente observado!
- Este Cohen! exclamava elle para os lados. Que finamente observado! Que traço adoravel! Hein, Craft?
Hein, Carlos? Delicioso!