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Damaso era interminavel, torrencial, inundante a fallar das «suas conquistas», n'aquella solida satisfação em que vivia de que todas as mulheres, desgraçadas d'ellas, soffriam a fascinação da sua pessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade, com coupé e parelha, todas as meninas tinham para elle um olhar doce. E no démi-monde, como elle dizia, «tinha prestigio a valer.» Desde moço fôra celebre, na capital, por pôr casas a hespanholas; a uma mesmo dera carruagem ao mez; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. João V dos prostibulos. Conhecia-se tambem a sua ligação com a viscondessa da Gafanha, uma carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens validos do paiz: ía nos cincoenta annos, quando chegou a vez do Damaso - e não era decerto uma delicia ter nos braços aquelle esqueleto rangente e lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n'um leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Damaso, e collou-se-lhe ás saias com uma fidelidade tão sabuja, que a decrepita creatura, farta, enojada já, teve de o enxotar á força e com desfeitas. Depois gozou uma tragedia: uma actriz do Principe Real, uma montanha de carne, apaixonada por elle, n'uma noite de ciume e de genebra, engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente d'ahi a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o collete do Damaso que chorava ao lado - mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Como elle dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher...

- Passaram-se scenas com esta Suzanna! mumurou elle depois de um silencio em que estivera catando pelliculas nos beiços.

E, com um suspiro, retomou o Figaro. Houve outra vez um silencio no terrasso. Dentro, a partida continuava. Para lá da sombra do toldo, agora, o sol ía aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louça branca, n'uma refracção d'ouro claro em que palpitavam as azas

das primeiras borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava, immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho liquido da agoa do tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho ou o amarello das rosas, pela carnação das ultimas camelias... O bocado de rio que se avistava entre os predios era azul ferrete como o céu: e entre rio e céu o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi negra no resplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo, tão luminosas e cantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito alto, no ar, passava o claro repique d'um sino.

- O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso n'um tom entendido e traçando a perna. O duque de Norfolk é chic, não é verdade, ó Carlos?

Carlos, sem erguer os olhos, lançou para os céus um gesto, como exprimindo o infinito do chic!

Damaso largara o Figaro para metter um charuto na boquilha; depois desapertou os ultimos botões do collete, deu um puchão á camisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma corôa de conde, e de palpebra cerrada, com o beiço trombudo, ficou mamando gravemente a boquilha...

- Tu estás hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos que deixara tambem a Revista e o contemplava com melancolia.

Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, á meia côr de carne, e revirando para Carlos o bogalho azulado da orbita:

- Eu agora ando bem... Mas, muito blazè.

E foi realmente com um ar blazè que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornaes e charutos, a Gazeta Illustrada, «para vêr o que ia pela patria.»

Apenas lhe deitou os olhos soltou uma exclamação.

- Outro debute? perguntou Carlos.

- Não, é a besta do Castro Gomes!

A Gazeta Illustrada annunciava que «o sr. Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que no Porto fôra victima da sua dedicação por occasião da desgraça occorrida na Praça Nova, e de que o nosso correspondente J. T. nos deu uma descripção tão opulenta de colorido realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabens ao arrojado gentleman.»

- Ora está s. ex.ª restabelecida! exclamou Damaso, atirando para o lado o jornal. Pois deixa estar, que agora é a occasião de lhe dizer na cara o que penso... Aquelle pulha!

- Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia a noticia.

- Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora essa! Queria vêr, se fosse comtigo... É

uma besta! É um selvagem!

E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que o magoava. Desde a sua chegada de Bordeus, logo que o Castro Gomes se installara no Hotel Central, elle fôra deixar-lhe bilhetes duas vezes - a ultima na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. ex.ª não se dignara agradecer a visita! Depois elles tinham partido para o Porto; fôra ahi que, passeiando só na Praça Nova, vendo a parelha deuma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lançára ao freio dos cavallos - e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente (sempre com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegrammas: um de

sentimento, lamentando, outro de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu!

- Não, isso - exclamava Salcede, passeiando pelo terraço, e recordando estas injurias -

hei de lhe fazer uma desfeita!... Não pensei ainda o quê, mas ha de amargar-lhe... Lá isso, desconsiderações não admitto a ninguem! a ninguem!

Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Gremio, quando o rachitico apavorado emmudecera diante d'elle, Damaso ia-se tornando feroz. Pela menor cousa fallava em «quebrar caras.»

- A ninguem! repetia elle, com puxões ao collete. Desconsiderações, a ninguem!

N'esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a voz rapida do Ega - e quasi immediatamente elle appareceu, com um ar de pressa, e atarantado.

- Olá, Damasosinho!... Carlos, dás-me aqui em baixo uma palavra?

Desceram do terraço, penetraram no jardim, até junto de duas olaias em flôr.

- Tu tens dinheiro? - foi ahi logo a exclamação anciosa do Ega.

E contou a sua terrivel atrapalhação. Tinha uma letra de noventa libras que se vencia no dia seguinte. Além d'isso, vinte e cinco libras que devia ao Eusebiosinho, e que elle lhe reclamara n'uma carta indecente: e era isto que desesperava o Ega...

- Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta á cara com um escarro.

Além d'isso a letra! E tenho para tudo isto quinze tostões...

- O Eusebiosinho é homem de ordem... Emfim, queres cento e quinze libras, disse Carlos.

Ega hesitou, com uma côr no rosto. Já devia dinheiro a Carlos. Estava-se sempre dirigindo áquella amisade, como a um cofre inexgotavel...

- Não, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que já não faz frio...

Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque - em quanto Ega procurava cuidadosamente um bonito botão de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos não tardou, trazendo na mão o cheque, que alargara até cento e vinte libras, para o Ega ficar armado...

- Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um bello suspiro de allivio.

Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse villão! Mas tinha já uma vingança. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n'um sacco de carvão, com um rato morto dentro, e um bilhete, começando assim: - ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho, etc....

- Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu ar, aquelle ser repulsivo!...

Mas era até sujo mencionar o Eusebiosinho!... Quiz saber dos trabalhos de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu Atomo: - e, por fim, n'uma voz diferente, applicando o monocolo a Carlos:

- Dize-me outra cousa. Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?

Carlos tinha só esta rasão: não se divertia lá.

Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade...

- Tu não percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paixão por ti... Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue á cara.

E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra. Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observação, tinha a visão correcta: pois bem, lá lhe vira na face, nos olhos, toda a expressão de um sentimento sincero...

- Não estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tenl-a quando quiseres.

Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas...

- Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa blague da cartilha e do codigo, então não fallemos mais n'isso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comichões por qualquer cousa, então era uma vez um homem, vae para a Trappa commentar o Ecclesiastes..

- Não - disse Carlos, sentando-se n'um banco sob as arvores, ainda com uns restos da preguiça do terraço - o meu motivo não é tão nobre. Não vou lá, porque acho o Gouvarinho um massador.

Ega teve um sorriso mudo.

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