"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Add to favorite 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

- Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores...

Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em silencio o chão areado; e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com melancolia:

- Antes de hontem, toda a noite, a pé firme, das dez á uma, estive a ouvir a historia da demanda do Banco Nacional!

Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que se debatia, n'aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos enterneceu-se.

- Meu pobre Ega, então toda a demanda?

- Toda! E a leitura do relatorio da assembléa geral! E interessei-me! E tive opiniões!...

A vida é um inferno.

Subiram ao terraço. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com um canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas.

- Então decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.

- Decidiu-se hontem! Não ha cotillon.

Tratava-se de uma grande soirée mascarada que íam dar os Cohens, no dia dos annos de Rachel. A idéa d'esta festa sugerira-a o Ega, ao principio com grandes proporções de gala artistica, a ressurreição historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa era irrealisavel em Lisboa - e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples baile costumé, a capricho...

- Tu, Carlos, já decidiste como vaes?

- De dominó, um severo dominó preto, como convém a um homem de sciencia...

- Então, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas de ourello!... A sciencia faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem descobriu uma lei do Universo mettido dentro de um dominó... Que sensaboria, um dominó!...

Justamente a sr.ª D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia dos dominós.

E em Carlos não havia desculpa. Não o prendiam vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da Renascença, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I.

- É n'isto, ajuntava elle com fogo, que está a belleza de uma soirée de mascaras! Não lhe parece você, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem. Teve uma inspiração: com aquelle cabello ruivo, o nariz curto, as maçãs do rosto salientes, é Margarida de Navarra...

- Quem é Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo no terraço com Craft.

- Margarida, a duqueza d'Angouleme, a irmã de Francisco I, a Margarida das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da Renascença, a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

Rio muito, foi abraçar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos Cohens. E

appellou logo para elle, para o Craft tambem, ácerca do nefando dominó de Carlos. Não estava aquelle mocetão, com os seus ares de homem d'armas, talhado para um soberbo Francisco I, em toda a gloria de Marignan?

O velho deu um olhar enternecido á belleza do neto.

- Eu te digo, John, talvez tenhas razão; mas Francisco I, rei de França, não se póde apear de uma tipoia e entrar n'uma sala, só. Precisa côrte, arautos, cavalleiros, damas, bobos, poetas... Tudo isso é difficil.

Ega curvou-se. Sim senhor, d'accordo! Alli estava uma maneira intelligente de comprehender o baile dos Cohens!

- E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso.

Era um segredo. Tinha a theoria de que, n'aquellas festas, um dos encantos consistia na surpreza: dois sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos, de jaquetão, no Bragança, se encontram á noite, um na purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido da Calabria...

- Eu cá não faço segredo, disse ruidosamente Damaso. Eu cá vou de selvagem.

- Nú?

- Não. De Nelusko na Africana. Oh sr. Affonso da Maia, que lhe parece? Acha chic?

- Chic não exprime bem, disse Affonso sorrindo. Mas grandioso, é, decerto.

Quizeram então saber como ía Craft. Craft não ía de cousa nenhuma; Craft ficava nos Olivaes, de robe de chambre.

Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera. Aquellas indiferenças pelo baile dos Cohens feriam-n'o como injurias pessoaes. Elle estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um trabalho fumegante de imaginação; e pouco a pouco ella tomava aos seus olhos a importancia de uma celebração d'arte, provando o genio de uma cidade. Os

«dominós», as abstenções, pareciam-lhe evidencias de inferioridade de espirito. Citou então o exemplo do Gouvarinho: alli estava um homem de occupações, de posição politica, nas vesperas de ser ministro, que não só ía ao baile, mas estudara o seu costume: estudara, e ía muito bem, ía de marquez de Pombal!

- Reclame para ser ministro, disse Carlos.

- Não o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condições para ser ministro: tem voz sonora, leu Mauricio Block, está encalacrado, e é um asno!...

E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido de demolir assim um cavalheiro que se interessava pelo baile dos Cohens, acudiu logo:

- Mas é muito bom rapaz, e não se dá ares nenhuns! É um anjo!

Affonso reprehendia-o, risonho e paternal:

- Ora tu, John, que não respeitas nada...

O desacato é a condição do progresso, sr. Affonso da Maia. Quem respeita decahe.

Começa-se por admirar o Gouvarinho, vae-se a gente esquecendo, chega a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata tem descido a venerar o Todo-Poderoso!... É necessario cautela!

- Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu és o proprio Anti-Christo...

Ega ía responder, exhuberante e em veia - mas dentro o tinir argentino do relogio Luiz XV, com o seu gentil minuete, emmudeceu-o.

- O que? quatro horas!

Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio, deu em redor rapidos, silenciosos apertos de mão, desappareceu como um sopro.

Todos de resto estavam pasmados de ser tão tarde! E assim passara a hora de ir ao Lumiar vêr as colxas antigas das senhoras Medeiros...

- Quer você então meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.

- Seja: e é necessario dar a lição ao Damaso...

- É verdade, a lição... - murmurou Damaso sem enthusiasmo, com um sorriso murcho.

A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janellas gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravez das arvores, uma luz esverdinhada.

Are sens