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Add to favorite "A Moreninha" - Joaquim Manuel de Macedo

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- Fome! exclamamos com espanto; fome! pois também morre-se de fome?...

E instintivamente a minha interessante companheira tirou do bolso do seu avental uma moeda de ouro e, dando-a à velha, disse:

- Foi meu padrinho que ma deu hoje de manhã... eu não preciso dela... não tenho fome.

E eu tirei de meu bolso uma nota, não me lembro de que valor e por minha vez a entreguei, dizendo:

- Foi minha mãe que ma deu e ela me dá também um abraço, sempre que faço esmola aos pobres.

Não é possível descrever o que se passou então naquela miserável choupana. Minha linda mulher e eu tivemos de ser abraçados mil vezes, de ver de joelhos a nossos pés a velha e os meninos... O ancião forcejava por falar há muito tempo... Dava com as mãos, chamando-nos... Finalmente nós nos aproximamos dele, que nos apertou com entusiasmo contra o coração.

- Quem sois? pôde, enfim, dizer; quem sois?

- Duas crianças, foi a menina que respondeu.

- Dois anjos, tornou o velho. E quem é este menino?...

- É o meu camarada, disse ainda ela.

- Vosso irmão?...

- Não senhor, meu... marido.

- Marido?

- Sim, eu quero que ele seja meu marido.

- Deus realize vossos desejos!..

Acabando de pronunciar estas palavras, o ancião guardou silêncio por alguns instantes... bebeu com sofreguidão um púcaro cheio d’água e, olhando de novo para nós, e tendo no rosto um ar de inspiração e em suas palavras um acento profético, exclamou:

- Seja dado ao homem agonizante lançar seus últimos pensamentos do leito da morte, além dos anos, que já não serão para ele, e penetrar com seus olhares através do véu do futuro!... Meus filhos!

amai-vos, e amai-vos muito! A virtude se deve ajuntar, assim como o vício se procura; sim, amai-vos.

Eu não vos iludo... vejo lá... bem longe... a promessa realizada! São dois anjos que se unem... vede!...

os meninos que entraram na casa do miserável, que enxugaram o pranto e mataram a fome da indigência, são abençoados por Deus e unidos em nome d’Ele!... Meus filhos, eu vos vejo casados lá no futuro!...

- Oh!... eis aí outra vez o delírio!... disse a velha vendo a exaltação e o semblante afogueado do enfermo.

- Não, minha mãe, continuou ele, não! não é delírio... Pois o quê!... não pode o Eterno abençoar a virtude pela minha boca?... Ó meus meninos! Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... ainda uma vez... lá no futuro... vós o sentireis.

Nós estávamos espantados; o rosto do ancião se havia tornado rubro, seus olhos flamejantes...

Seus lábios tremiam convulsivamente, sua mão rugosa tinha três vezes nos abençoado.

Escutando suas palavras, eu acreditei que estávamos ouvindo uma profecia infalivelmente realizável, pronunciada por um inspirado do Senhor.

Não parou aí a nossa admiração. O doente, cujas forças pareciam haver reaparecido subitamente, apoiando-se sobre um dos cotovelos, abriu a gaveta de uma mesa, que estava junto de seu leito, e tirando de uma pequena e antiga caixa dois breves, os deu à velha, dizendo:

- Minha mãe, descosa esses dois breves.

A velha, obedecendo pontualmente, os descoseu com prontidão. Os breves eram dois: um verde e outro branco.

Depois o ancião, voltando-se para mim, disse:

- Menino! que trazeis convosco que possais oferecer a esta menina?...

Eu corri com os olhos tudo que em mim havia e só achei, para entregar ao admirável homem que me falava, um lindo alfinete de camafeu, que meu pai me tinha dado para trazer ao peito e, maquinalmente, pus-lhe nas mãos o meu camafeu.

O velho quebrou o pé do alfinete e dando-o a sua mãe, acrescentou:

Minha mãe, cosa dentro do breve branco este camafeu.

E voltando-se para minha bela camarada, continuou:

- Menina! que trazeis convosco que possais oferecer a este menino?...

A menina, atilada e viva, como que já esperando tal pergunta, entregou-lhe um botão de esmeralda que trazia em sua camisinha.

O velho o deu à sua mãe, dizendo:

- Minha mãe, cosa esta esmeralda dentro do breve verde.

Quando as ordens do ancião foram completamente executadas, ele tomou os dois breves e, dando-me o de cor branca, disse-me:

- Tomais este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina. Ele contém o vosso camafeu: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, a fim de que ela o guarde com desvelo.

Eu mal compreendi o que o velho queria: ainda maquinalmente entreguei o breve à linda menina, que o prendeu no cordão de ouro que trazia ao pescoço.

Chegou a vez dela. O nosso homem deu-lhe o outro breve, dizendo:

- Tomai este breve, cuja cor exprime as esperanças do coração daquele menino. Ele contém a vossa esmeralda: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele bom anjo, dai-lho, a fim de que ele o guarde com desvelo.

Minha bela mulher executou a insinuação do velho com prontidão, e eu prendi o breve ao meu pescoço com uma fita que me deram.

Quando tudo isto estava feito, o velho prosseguiu ainda:

- Ide, meus meninos; crescei e sede felizes! vós olhastes para mim, pobre e miserável, e Deus olhará para vós... Ah! recebei a bênção de um moribundo! recebi-a e saí para não vê-lo expirar...

Isto dizendo, apertou nossas mãos com força, eu senti, então, que o velho ardia; senti que seu bafo era como vapor de água fervendo, que sua mão era uma brasa que queimava... Sinto ainda sobre meus dedos o calor abrasador dos seus e agora compreendo que, com efeito, ele delirava quando assim praticou com duas crianças.

Enfim, nós deixamos aquela morada aflitos e admirados. Sós, nós pensamos no velho e choramos

juntos; depois, nas crianças, isto não merece reparo, nossa dor se mitigou, para cuidarmos em brincar outra vez.

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