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Add to favorite "A Moreninha" - Joaquim Manuel de Macedo

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Curto foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram para denunciar-lhes com evidência a natureza da moléstia.

- Isto não vale a pena, disse Filipe em tom baixo a seus colegas; é uma mona de primeira ordem.

- Está claro, vamos sossegar estas senhoras.

- Não, tornou Filipe, sempre em voz baixa; aturdidas pelo caso repentino e preocupadas pela sobriedade desta mulher, nenhuma delas quer ver o que está diante de seus olhos, nem sentir o cheiro que lhes está entrando pelo nariz; minha irmã ficaria inconsolável, brigaria conosco e não nos acreditaria, se lhe disséssemos que sua ama se embebedou; e, portanto, podemos aproveitar as circunstâncias, zombar de todas elas e divertir-nos fazendo uma conferência.

- Oh diabo!... isso é do catecismo dos charlatães!

- Ora, não sejas tolo... não pareces estudante; devemos lançar mão de tudo o que nos possa dar prazer e não ofenda os outros.

- Mas que iremos dizer nesta conferência, senão que ela está espirituosa demais? perguntou Augusto.

- Diremos tudo o que nos vier à cabeça, ficando entendido que as honras pertencerão ao que maior número de asneiras produzir; o caso é que nos não entendam, ainda que também nós não entendamos.

- Há de ser bonito, tornou Augusto, à vista de tanta gente que, por força, conhecerá esta patacoada.

- Qual conhecer?... aqui ninguém nos entende, tornou Filipe, que, voltando-se para os circunstantes, disse com voz teatralmente solene: - Meus senhores, rogamos breves momentos de atenção; queremos conferenciar.

Movimento de curiosidade.

Seguiu-se novo exame da enferma, no qual os quatro estudantes fingiram observar o pulso, a língua, o rosto e os olhos da enferma auscultaram e percutiram-lhe o peito e fizeram todas as outras pesquisas do costume.

Depois eles se colocaram em um dos ângulos do quarto. Filipe teve a palavra. Profundo silêncio.

- Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma enfermidade que não nos deixa de pedir sérias atenções e sobre a qual eu vou respeitosamente submeter o meu juízo. Poucas palavras bastam. A moléstia de que nos vamos ocupar não é nova para nós; creio, mesmo, senhores, que qualquer de vós já a tem padecido muitas vezes...

- Está enganado.

- Não respondo aos apartes. Eu diagnostico uma baquites. Concebe-se perfeitamente que as etesias desenvolvidas pela decomposição dos éteres espasmódicos e engendrados no alambique intestinal, uma vez que a compresão do diafragma lhes cause vibrações simpáticas que os façam caminhar pelo canal colédoco até o periósteo dos pulmões...

- C’est trop fort!...

- Daí, passando à garganta, perturbam a quimificação da hematose, que por isso se tornando em linfa hemostática, vá de um jacto causar um tricocéfalo no esfenóide, podendo mesmo produzir uma protorragia nas glândulas de Meyer, até que, penetrando pelas câmaras ópticas, no esfíneter do cerebelo, cause um retrocesso prostático, como pensam os modernos autores, e promovam uma rebelião entre os indivíduos cerebrais: por conseqüência isto é nervoso.

- Muito bem concluído.

- O tratamento que proponho é concludente: algumas gotas de éter sulfúrico numa taça do líquido fontâneo açucarado; o cozimento dos frutos do coffea arabica torrados, ou mesmo o thea sinensis; e quando isto não baste, o que julgo impossível, as nossas lancetas estão bem afiadas e duas libras de sangue de menos não farão falta à doente. Disse:

- Como ele fala bem! murmurou uma das moças.

Fabrício tomou a palavra.

- Sangue! sempre sangue! eis a Medicina romântica do insignificante Broussais! mas eu detesto tanto a Medicina sanguinária, como a estercorária, herbária, sudorária e todas as que acabam em ária.

Desde Hipócrates, que foi o maior charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem triunfado a ignorância, mas já, enfim, brilhou o sol da sabedoria... Hahnemann... ah!... quebrai vossas lancetas, senhores! para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica homeopática, com o Amazonas ao pé!... queimai todos os vossos livros, porque a verdade está só, exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do grande homem! Ah! se depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por se não ter ainda descoberto o meio de dividir em um milhão de partes cada simples átomo da matéria! Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega, mas devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O mesmo direi do cozimento do coffea arabica...

- Mas por que não têm morrido envenenados os que por vezes o têm já tomado?...

- Eis aí a consideração que os leva ao erro!... Senhor meu colega, é porque a ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir logo... às vezes só aparece depois de cem, duzentos e mais anos... eis a grande verdade!... Mas eu tenho observações de moléstias de natureza da que nos ocupa e que vão mostrar a superioridade do meu sistema. Ouçam-me. Uma mulher padecia este mesmo mal; já tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem

conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitas nihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-la na rua... É certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com boas cores e até remoçou e ficou bonita... Outro fato.

- Basta! basta!...

- Pois bem, basta; e propondo a aplicação da nihilitas nihilitatis na dose da trimilionésima parte de um quarto de grão, dou por terminado o meu discurso.

- O Sr. Leopoldo tem a palavra.

- Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho para sustentar o meu parecer porque, enfim, se similia similibus curantur, necessariamente o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a aplicar-lhe os passes.

Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por ele proposto e falou com arte tal que D. Carolina o escolheu para assistente de sua ama.

Augusto determinou as aplicações convenientes ao caso, mas, não tendo entrado no número delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo alevantada no quarto.

- Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!

- Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!

- Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também do escalda-pés!...

- Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!...

- Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!...

- Aquilo é pressentimento!

- Sr. Doutor, um escalda-pés!...

- Pois bem, minhas senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o preconizado escalda-pés!

E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por último, enfim, as senhoras mezinheiras.

14

Pedilúvio Sentimental

Ria-se, jogava-se, brincava-se. Todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de D. Carolina tomado seu copo de vinho de mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas de velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável diagnóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer, contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...

Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o Sr. Keblerc que, diante de meia dúzia

de garrafas vazias, roncava prodigiosamente; grande alemão para roncar!... era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!... dir-se-ia que entoava um hino... a Baco.

Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como é seu velho costume, haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a Sra. D. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens ao chá, D. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o defict provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que D.

Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, como o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jugo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...

A rapazia empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos. Era um homem de estatura muito menos que ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivas, gordo, de pernas arqueadas, ajuntava ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes, por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O Sr. Batista (este é o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.

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