- Augusto, uma idéia feliz! vai vestir-te no gabinete das moças.
- Mas que espécie de felicidade achas tu nisso?
- Ora! pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelho em que elas se miram!... de te aproveitares das mil comodidades e das mil superfluidades que formigam no toucador de uma moça?... Vai!... sou eu que to digo; ali acharás banhas e pomadas naturais de todos os países; óleos aromáticos, essências de formosura e de todas as qualidades; águas cheirosas, pós vermelhos para as faces e para os lábios, baeta fina para esfregar o rosto e enrubescer as pálidas, escovas e escovinhas, flores murchas e outras viçosas.
- Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meu coração adivinha...
- Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d’asno.
E, isto dizendo, Filipe empurrou Augusto para o gabinete das moças e se foi reunir ao rancho delas.
Ai do pobre Augusto!... mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que também se achava manchada, sentiu rumor que faziam algumas pessoas que entravam na sala.
Augusto conheceu logo que eram moças, porque estes anjinhos, quando se juntam fazem, conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se é sediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há remédio senão dizer que muito se assemelham a uma orquestra de peritos instrumentais, na hora da afinação.
Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer a pessoa alguma; em ceroulas e nu da cintura para cima, faria recuar de espanto, horror, vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que, certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as mãos; e, portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à mente: ajuntou toda a sua roupa, enrolou-a, e com ela embaixo do braço escondeu-se atrás de uma linda cama que se achava no fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas, ainda outra vez, pobre estudante! teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo da cama, pois quatro moças entraram no quarto. E eram elas D. Joaninha, D. Quinquina, D. Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada, muito estufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que mais acreditava que era, isto é, bonita.
Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outros objetos que estavam todos muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatro demoiselles não puderam resistir ao prazer, muito habitual nas moças, de desarranjar para outra vez arranjar, foram por mal dos pecados de Augusto, sentar-se da maneira seguinte: D. Clementina e D. Joaninha na cama, embaixo da qual estava ele; D. Quinquina de um lado, em uma cadeira, e D. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava os olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para lhe caber sem incômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade de enchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com D. Gabriela, segundo suas próprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a certos respeitos.
Depois de respirar um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram a conversar livremente, enquanto Augusto, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teias de aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quedo, medroso de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir; para meu mor infortúnio, a barra da cama era incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura descobertos, por onde, se alguma das moças olhasse, seria ele impreterivelmente visto. A posição do estudante era penosa, certamente; por último, saltou-lhe uma pulga à ponta do nariz, e por mais que o infeliz a soprasse, a teimosa continuou a chuchá-lo com a mais descarada impunidade.
- Antes mil vezes cinco batinas seguidas, em tempo de barracas no Campo!... dizia ele consigo.
Mas as moças falam já há cinco minutos; façamos por colher algumas belezas, o que é, na verdade, um pouco difícil, pois, segundo o antigo costume, falam todas quatro ao mesmo tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitará.
- Que calor!... exclamou D. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todo o donaire de uma espanhola; oh! não parece que estamos no mês de julho; mas, por minha vida, vale bem o incômodo que sofremos, o regalo que têm tido nossos olhos.
- Bravo, D. Gabriela!... então seus olhos...
- Têm visto muita coisa boa. Olhe, não é por falar, mas, por exemplo, há objeto mais interessante do que D. Luísa mostrar-se gorda, esbelta, bem feita?...
- É um saco!
- E como é feia!...
- É horrenda!
- É um bicho!
- E não vimos a filha do capitão com sua dentadura postiça?... Agora não faz senão rir!...
- Coitadinha! aperta tanto os olhos!
- Se ela pudesse arranjar também um postiço para o queixo!
- Ora, D. Clementina, não me obrigue a rir!...
- D. Joaninha, você reparou no vestido de chalim de D. Carlota?... Quanto a mim, está absolutamente fora da moda.
- Ainda que estivesse na moda, não há nada que nela assente bem.
- Ora... é um pau vestido!... tem uma testa maior que a rampa do Largo do Paço!...
- Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!...
- E a boca?... ah! ah! ah!
- Parece que anda sempre pedindo boquinhas.
- E que língua que ela tem!
- É uma víbora!
- Eu não sei por que as outras não hão de ser como nós, que não dizemos mal de nenhuma delas.
- É verdade, porque se eu quisesse falar...
- Diga sempre, D. Quinquina.
- Não... não quero. Mas, passando a outra coisa... D. Josefina aplaude com prazer a moda dos vestidos compridos!
- Por quê?
- Ora... porque tem pernas de caniço de sacristão.
- Pernas finas também é moda presentemente.
- Deus me livre!... acudiu D. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, pois não posso emendar a natureza, que me deu pernas grossas.