Foi uma agonia lenta, um pesadelo horrível em que a dor lutava com o gozo, em que as sensações tinham um requinte de prazer e de sofrimento ao mesmo tempo; em que a morte, torturando o corpo, vertia na alma eflúvios celestes.
De repente pareceu a Isabel que os lábios de Álvaro se agitavam, que um tênue suspiro se exalava de seu peito, ainda há pouco insensível como o mármore.
Julgou que se iludia, mas não; Álvaro: estava vivo, realmente vivo, suas mãos apertavam as dela convulsamente; seus olhos, brilhando com um fogo estranho, se tinham fitado no rosto da moça; um sopro reanimou seus lábios, que exalaram uma palavra quase imperceptível:
— Isabel!...
A moça soltou um grito débil de alegria, de espanto, de medo; entre as idéias confusas que se agitavam na sua cabeça desvairada, lembrou-se com horror que era ela quem matava seu amante, quem o ia sacrificar por causa de um engano fatal. Fazendo um esforço extraordinário, conseguiu erguer a cabeça e ia precipitar-se para a janela, abri-la e dar entrada ao ar livre; sabia que a sua morte era inevitável; mas salvaria Álvaro.
No momento, porém, em que se levantava, sentiu as mãos do moço que apertavam as suas, e a obrigavam a reclinar-se sobre o leito; seus olhos encontraram de novo os olhos de seu amante.
Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heróico sacrifício; deixou cair a cabeça desfalecida, e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo, em que essas duas almas irmãs, confundindo-se numa só, voaram ao céu, e foram abrigar-se no seio do Criador.
As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original, impossível de descrever.
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Por volta de duas horas da tarde, a porta do gabinete, impelida por um choque violento, abriu-se; e um turbilhão de fumo lançou-se por essa aberta, e quase sufocou as pessoas que ai estavam.
Eram Cecília e Peri.
A menina inquieta pela longa ausência de sua prima, soube de Peri que ela estava no seu quarto; mas o índio ocultou parte da verdade, e não disse onde deitara o corpo de Álvaro.
Duas vezes Cecília viera até à porta, escutara e nada ouvira; por fim resolveu-se a bater, a falar a Isabel, e não teve a menor resposta. Chamou Peri e contou-lhe o que se passava; o índio, tomado de um pressentimento meteu o ombro à porta e abriu-a.
Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do aposento, Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos.
A menina recuou, e respeitando esse mistério de um amor profundo, fez um gesto a Peri e retirou-se.
O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua senhora.
— Ela morreu feliz! disse Peri.
Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis, e corou.
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IX O CASTIGO
O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estender-se sobre o verde-negro da floresta. D. Antônio de Mariz, apoiado ao umbral da porta, junto de sua mulher, passava o braço pela cintura de Cecília. O sol a esconder-se
iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro majestoso que lhe servia de baixo-relevo.
O fidalgo, Cecília e sua mãe, com os olhos no horizonte, recebiam esse último raio de despedida, e mandavam o adeus extremo à luz do dia, as montanhas que os cercavam, as árvores, aos campos, ao rio, a toda a natureza.
Para eles esse sol era a imagem de sua vida; o ocaso era a sua hora derradeira: e as sombras da eternidade se estendiam já como as sombras da noite.
Os Aimorés tinham voltado, depois do combate em que os aventureiros venderam caro a sua vida; e cada vez mais sequiosos de vingança, esperavam que anoitecesse para assaltar a casa. Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento, tinham tratado de destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos.
Isto era fácil: além da escada de pedra, o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados; e só a árvore, que lançava os galhos sobre a cabana de Peri, oferecia um ponto de comunicação praticável para quem tivesse a agilidade e a força do índio.
Os selvagens, que não queriam que lhes escapasse um só inimigo, e ainda menos que esse fosse Peri, abateram a árvore, e cortaram assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo, no momento do ataque.
Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do óleo, Peri estremeceu, e saltando sobre a sua clavina, ia despedaçar a cabeça do selvagem; mas sorriu-se, e encostou tranqüilamente a arma à parede. Sem inquietar-se com a destruição que faziam os Aimorés, continuou no seu trabalho interrompido, e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana.
Ele tinha o seu plano: e para realizá-lo, começara por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecília; depois rachou uma das árvores, e durante toda a manhã ocupou-se em torcer essa longa corda, a que dava uma extraordinária importância.
Quando Peri terminava a sua obra, ouviu o baque da árvore que tombava sobre o rochedo; chegou-se de novo à janela, e seu rosto exprimiu uma satisfação imensa. O óleo, cortado pela raiz, deitara-se sobre o precipício, elevando a uma grande altura os seus galhos seculares, mais frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta.
Os Aimorés, tranqüilos por esse lado, continuaram nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas da noite.
Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra, Peri dirigiu-se à sala.
Aires Gomes, sempre infatigável, guardava a porta do gabinete; D. Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar; e Cecília, sentada sobre seus joelhos, recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava.
— Bebe, minha Cecília, dizia o fidalgo; é um cordial que te fará muito bem.
— De que serve, meu pai? Por uma hora, se tanto nos resta viver, não vale a pena! respondia a menina, sorrindo tristemente.
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— Tu te enganas! Ainda não estamos de todo perdidos.
— Tendes alguma esperança? perguntou ela incrédula.
— Sim, tenho uma esperança, e esta não me iludirá! respondeu D. Antônio, com um acento profundo.
— Qual? Dizei-me!