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Durante a primeira hora que sucedeu à partida, todos os que ficaram, com o ouvido atento escutaram, temendo ouvir a cada momento o estrondo de tiros que anunciasse um combate entre os aventureiros e os índios. Tudo conservou-se em silêncio; e uma esperança, bem que vaga e tênue, veio pousar nesses corações quebrados por tantos sofrimentos e tantas angústias.

A noite passou-se tranqüilamente; nada indicava que a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrível como os Aimorés.

D. Antônio admirava-se que os selvagens, depois do ataque da manhã, se conservassem tranqüilos no seu campo, e não tivessem investido a habitação uma só vez. Passou-lhe pelo espírito a idéia de que se tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principais guerreiros; mas ele conhecia de há muito o espírito vingativo e a tenacidade dessa raça para admitir semelhante suposição.

Cecília recostou-se num sofá, e alquebrada de fadiga conseguiu adormecer apesar das idéias tristes e das inquietações que a agitavam. Isabel, com o coração cerrado por um terrível pressentimento, lembrava-se de Álvaro, e acompanhava-o de longe na sua perigosa expedição, misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor.

Assim passou-se esta noite; a primeira, depois de três dias, em que a família de D. Antônio de Mariz pôde gozar alguns momentos de sossego.

De vez em quando o fidalgo chegando à janela via ao longe, perto do rio, brilharem os fogos do campo dos Aimorés; mas uma calma profunda reinava em toda aquela planície. Nem mesmo se ouvia o eco enfraquecido de uma dessas cantigas monótonas com que os selvagens costumam à noite acompanhar o embalançar de sua rede de palha; apenas o sussurrar do vento nas folhas, a queda da água sobre as pedras, e o grito do oitibó.

Contemplando a solidão, o fidalgo insensivelmente voltava a essa esperança que há pouco sorrira, e que o seu espírito tinha repelido como uma simples ilusão.

Tudo com efeito parecia indicar que os selvagens haviam abandonado o seu campo, deixando nele apenas os fogos que haviam servido para esclarecer os seus preparativos de partida.

Para quem conhecia, como D. Antônio, os costumes desses povos bárbaros, para quem sabia quanto era ativa, agitada, ruidosa esta existência nômada, o silêncio em que estava sepultada a margem do rio era um sinal certo de que os Aimorés já ali não estavam. Contudo o fidalgo, demasiadamente prudente para se fiar em aparências, recomendara aos seus homens que redobrassem de vigilância para evitar alguma surpresa.

Talvez que aquele sossego e aquela serenidade fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludiam as grandes tempestades, e durante as quais os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem nessa luta espantosa que tem por campo de batalha o espaço e o infinito.

As horas correram silenciosamente; a viuvinha cantou pela primeira vez; e a luz branca da alvorada veio empalidecer as sombras da noite.

Pouco e pouco o dia foi rompendo; o arrebol da manhã desenhou-se no horizonte, tingindo as nuvens com todas as cores do prisma. O primeiro raio do sol, desprendendo-se daqueles vapores tênues e diáfanos, deslizou pelo azul do céu, e foi brincar no cabeço dos montes.

O astro assomou, e torrentes de luz inundaram toda a floresta, que nadava num mar de ouro marchetado de brilhantes, que cintilavam em cada uma das gotas do orvalho suspensas às folhas das árvores.

Os habitantes da casa, despertando, admiravam esse espetáculo magnífico do nascer do dia, que depois de tantas tribulações e de tantas angústias, lhes parecia completamente novo.

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Uma noite de quietação e sossego os tinha como que restituído à vida; nunca esses campos verdes, esse rio puro e límpido, essas árvores florescentes, esses horizontes descortinados se haviam mostrado a seus olhos tão belos, tão risonhos como agora.

É que o prazer e o sofrimento não passam de um contraste; em lata perpétua e continua, eles se acrisolam um no outro, e se deparam: não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça.

Cecília, com a frescura da manhã, tinha-se expandido como uma flor do campo; suas faces coloriram-se de novo, como se um raio do sol, beijando-as lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado; os olhos brilharam; e os lábios entreabrindo-se para aspirarem o ar puro e embalsamado da manhã, arquearam-se graciosamente quase sorrindo.

A esperança, esse anjo invisível, essa doce amiga dos que sofrem, tinha vindo pousar no seu coração, e murmurava-lhe ao ouvido palavras confusas, cantos misteriosos, que ela não compreendia, mas que a consolavam e vertiam em sua alma um bálsamo suave.

Sentia-se em todas as pessoas de casa um quer que seja, uma animação, um começo de bem-estar que revelava uma grande transformação operada na situação da véspera; era mais do que a esperança, menos do que a seguridade.

Só Isabel não partilhava essa impressão geral; como sua prima, ela também viera contemplar o raiar do dia; mas fora para interrogar a natureza, e perguntar ao sol, à luz, ao céu, se as lúgubres imagens que tinham passado e repassado na sua longa vigília, eram uma realidade ou uma visão.

E uma coisa singular! Esse sol tão brilhante, essa luz esplêndida, esse céu azul, que aos outros reanimara, e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento, pareceu-lhe ao contrário uma amarga ironia.

Comparou a cena radiante que se apresentava aos seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma; enquanto a natureza sorria, o seu coração chorava.

No meio dessa festa esplêndida do nascer do dia, a sua dor, só, isolada, não achava uma simpatia, e repelida pela criação voltava a recalcar-se em seu seio. A moça recostou a cabeça sobre o ombro de sua prima, e escondeu ai o rosto para não perturbar a doce serenidade que se expandia no semblante de Cecília.

Entretanto D. Antônio tinha tratado de averiguar se as suas suspeitas da véspera eram reais; certificou-se de que os selvagens haviam abandonado o campo. Aires Gomes, acompanhado de mestre Nunes, chegou mesmo a sair da casa e aproximar-se com todas as cautelas do lugar onde na véspera os Aimorés festejavam o sacrifício de Peri.

Tudo estava deserto; não se viam mais no campo os vasos de barro, as peças de caça suspensas aos galhos da árvore, e as redes grosseiras que indicavam a alta de uma horda selvagem. Não havia já dúvidas, os Aimorés tinham partido desde a véspera à noite, depois de enterrarem os seus mortos.

O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo, que recebeu-a menos favoravelmente do que se devia supor; ignorava a causa e o fim dessa partida repentina, e desconfiava dela.

Não há que admirar nisto; D. Antônio era um homem prudente e avisado; a sua experiência de quarenta anos o tinha tornado suspeitoso; por coisa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrar-se.

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VII PELEJA

Quando a família de D. Antônio de Mariz gozava dos primeiros momentos de tranqüilidade que sucediam a tantas aflições, soou um grito na escada de pedra.

Cecília levantou-se estremecendo de alegria e felicidade; tinha reconhecido a voz de Peri.

No momento em que ia correr ao encontro do seu amigo, mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça, e Peri chegava à porta da sala.

D. Antônio de Mariz, sua mulher e sua filha ficaram mudos de espanto e terror; Isabel caiu fulminada, como se a vida lhe faltasse de repente.

Peri trazia nos seus ombros o corpo inanimado de Álvaro; e no rosto uma expressão de tristeza profunda. Atravessando a sala, depôs sobre o sofá o seu fardo precioso, e olhando o rosto lívido daquele que fora seu amigo, enxugou uma lágrima que lhe corria pela face.

Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silêncio solene que envolvia aquela cena lúgubre; os aventureiros que haviam acompanhado Peri quando passara no meio deles correndo, pararam na porta, tomados de compaixão e respeito por aquela desgraça.

Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri salvo; seus olhos, apesar dos sofrimentos passados, ainda tinham lágrimas para chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar. Quanto a D. Antônio de Mariz, sua dor era de um pai que havia perdido um filho; era a dor muda e concentrada que abala as organizações fortes, sem contudo abatê-las.

Depois dessa primeira comoção produzida pela chegada de Peri, o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a narração breve dos acontecimentos, cuja peripécia tinha diante dos olhos.

Eis o que havia passado.

Partindo na véspera, no momento em que começava a sentir os primeiros efeitos do veneno terrível que tomara, Peri ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecília. Ia procurar a vida em um contraveneno infalível, cuja existência só era conhecida pelos velhos pajés da tribo, e pelas mulheres que os auxiliavam nas suas preparações medicinais.

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