A menina sorriu docemente.
— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água sobe, sobe...
— Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a todos os teus inimigos.
— Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Peri. Mas é Deus... É o seu poder infinito!
— Tu não sabes? disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente, o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento.
E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento. Falou com um tom solene:
“Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.
“Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.
“Quando todos subiram aos montes ele disse:
‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água.’
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“Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.
“Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; ai esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.
“A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a montanha desapareceu.
“A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.
“A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.
“Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.
“Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.
“Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.”
Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento.
Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras, como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes, e vinha embeber-se no seu coração, que se abria para recebê-la.
A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia das roupas de Cecília.
A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:
— Meu Deus!... Peri!...
Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade.
Houve um momento de respouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível:
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.
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A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:
— Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!...
O anjo espanejava-se para remontar ao berço.
— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.