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Cecília, deitada no fundo, meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado, engolfava -se nos seus pensamentos, e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas, e a frescura do ar e das águas.

Quando os seus olhos encontravam os de Peri, os longos cílios desciam ocultando um momento o seu olhar doce e triste.

A noite estava serena.

A canoa, vogando sobre as águas do rio, abria essas flores de espuma, que brilham um momento à luz das estrelas, e se desfazem como o sorriso da mulher.

A brisa tinha escasseado; e a natureza adormecida respirava a calma tépida e perfumada das noites americanas, tão cheias de enlevo e encanto.

A viagem fora silenciosa: essas duas criaturas abandonadas no meio do deserto, sós em face da natureza, emudeciam, como se temessem despertar o eco profundo da solidão.

Cecília repassava na memória toda a sua vida inocente e tranqüila, cujo fio dourado tinha-se rompido de uma maneira tão cruel; mas era sobretudo o último ano dessa existência, desde o dia do aparecimento imprevisto de Peri, que se desenhava na sua imaginação.

Por que interrogava ela assim os dias que tinha vivido no remanso da felicidade?

Por que o seu espírito voltava ao passado, e procurava ligar todos esses fatos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros anos dera tão pouco apreço?

Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia; sua alma inocente e ignorante tinha-se iluminado com uma súbita revelação; novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento.

Volvendo ao passado admirava-se de sua existência, como os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo; não se reconhecia na imagem do que fora outrora, na menina isenta e travessa.

Página 239

Toda a sua vida estava mudada: a desgraça tinha operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher.

Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança; as cores tinham tons harmoniosos, o ar perfumes inebriantes, a luz reflexos aveludados, que seus sentidos não conheciam.

Uma flor, que antes era para ela apenas uma bela forma, parecia-lhe agora uma criatura que sentia e palpitava; a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras, murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis, notas místicas que ressoavam no seu coração.

Peri, julgando sua senhora adormecida, remava docemente para não perturbar o seu repouso; a fadiga começava a vencê-lo; apesar de sua coragem indomável e de sua vontade poderosa, as forças estavam exaustas.

Apenas vencedor da luta terrível que travara com o veneno, tinha começado a empresa quase impossível da salvação de sua senhora; havia três dias que seus olhos não se cerravam, que seu espírito não repousava um instante.

Tudo quanto a natureza permitia à inteligência e ao poder do homem, ele tinha feito; e contudo não era a fadiga do corpo que o vencia, eram sim as emoções violentas por que passara durante esse tempo.

O que ele tinha sentido quando plainava sobre o abismo, e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso, de uma oscilação da haste frágil que lhe servia de ponte pênsil, ninguém compreenderia.

O que sofreu quando Cecília no seu desespero pela morte de seu pai o acusava por tê-la salvado, e lhe dava ordem de levá-la ao lugar onde repousavam as cinzas do velho fidalgo, é impossível de descrever.

Foram horas de martírio, de sofrimento horrível, em que sua alma sucumbiria, se não achasse na sua vontade inflexível e na sua dedicação sublime um conforto para a dor, e um estimulo para triunfar de todos os obstáculos.

Eram essas emoções que o venciam, e ainda depois de vencidas; ele conheceu que seus músculos de aço, escravos submissos que obedeciam ao seu menor desejo, se distendiam como a corda do arco depois do combate. Lembrou-se que

sua senhora precisava dele e que devia aproveitar esses momentos em que ela repousava para pedir ao sono novo vigor e novas forças.

Ganhou o meio do rio, e escolhendo um lugar onde não chegava nem um galho das árvores que cresciam nas ribanceiras,- amarrou a canoa nos nenúfares que boiavam à tona da água.

Tudo estava quieto; a terra ficava a uma distancia de muitas braças; portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão prateado, debaixo da abobada azul do céu; as ondinhas a embalariam no seu berço, as estrelas vigiariam o seu sono.

Livre de inquietação, Peri encostou a cabeça na borda da canoa; um momento depois suas pálpebras entorpecidas cerraram-se a pouco e pouco; seu último olhar, esse olhar vago e incerto que adeja na pupila já meio adormecida, viu desenhar-se na sombra uma forma alva e graciosa que se reclinava docemente para ele.

Não era um sonho, essa linda visão. Cecília sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações; sentou-se, e debruçando-se um pouco viu que seu amigo dormia, e acusou-se por não ter há mais tempo exigido dele esse instante de repouso.

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O primeiro sentimento que se apoderou da menina, vendo-se só, foi o terror solene e respeitoso que infunde a solidão no meio do deserto, nas horas. monas da noite.

O silêncio parece falar; as sombras se povoam de seres invisíveis; os objetos, na sua imobilidade, como que oscilam pelo espaço.

É ao mesmo tempo o nada com o seu vácuo profundo, imenso, infinito; e o caos com a sua confusão, as suas trevas, as suas formas incriadas; a alma sente que falta-lhe a vida ou a luz em torno.

Cecília recebeu essa impressão com um temor religioso; mas não se deixou dominar pelo susto; a desgraça a habituara ao perigo; e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta, que mesmo dormindo parecia-lhe que Peri velava sobre ela.

Contemplando essa cabeça adormecida, a menina admirou-se da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza.

Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar, não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os olhos da alma.

Peri, que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado, aparecia-lhe de repente como um herói; no seio de sua família estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o.

Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o selvagem precisava do deserto para revelar-se em todo o esplendor de sua beleza primitiva.

No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia e marcava o lagar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.

Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem.

As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as árvores seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza.

Que efusão de reconhecimento e de admiração não havia no olhar de Cecília! Era nesse momento que ela compreendia toda a abnegação do culto santo e respeitoso que o índio lhe votava!

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