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— Sim, porque depois chegaremos.

— Aonde? perguntou a menina com vivacidade.

Aos campos dos goitacás, à cabana de Peri, onde tu mandarás a todos os guerreiros da tribo.

— E depois, como iremos ao Rio de Janeiro?

— Não te inquietes; os goitacás têm igaras grandes como aquela árvore que toca às nuvens; quando eles atiram o remo, elas voam sobre as águas como a atiati de asas brancas. Antes que a lua, que vai nascer, tenha desaparecido, Peri te deixará com a irmã de teu pai.

— Deixará!... exclamou a menina, empalidecendo. Tu queres me abandonar?

— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente; não pode viver na taba dos brancos.

— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és tu cristão como Ceci?

— Sim; porque era preciso ser cristão para te salvar; mas Peri morrerá selvagem como Ararê.

— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás comigo e não me deixarás nunca!

— Vê, senhora: a flor que Peri te deu já marchou porque saiu de sua planta; e a flor estava no teu seio. Peri na taba dos brancos, ainda mesmo junto de ti, será como esta flor; tu terás vergonha de olhar para ele.

— Peri!... exclamou a menina ofendida.

— Tu és boa; mas todas as que têm a tua cor, não têm o teu coração. Li o selvagem seria um escravo dos escravos; e quem nasceu o primeiro, pode ser teu escravo; mas é senhor dos campos, e manda aos mais fortes.

Cecília, admirando o reflexo de nobre orgulho que brilhava na fronte do índio, sentiu que não podia combater a sua resolução ditada por um sentimento

elevado. Reconheceu que havia no fundo de suas palavras uma grande verdade, que o seu instinto adivinhava: ela tinha a prova na revolução que se operara no seu espírito, vendo Peri no meio do deserto, livre, grande, majestoso como um rei.

Qual não seria pois a conseqüência dessa outra transição, muito mais brusca?

Numa cidade, no meio da civilização, o que seria um selvagem, senão um cativo, tratado por todos com desprezo?

No íntimo de sua alma quase que aprovava a resolução de Peri; mas não podia afazer-se à idéia de perder seu amigo, seu companheiro, a única afeição que talvez ainda lhe restava no mundo.

Durante esse tempo, o índio preparava a simples refeição que lhes oferecia a natureza. Deitou sobre uma folha larga os frutos que tinha colhido: eram os araçás, os jambos corados, os ingás de polpa macia, os cocos de várias espécies.

A outra folha continha favos de uma pequena abelha, que fabricara a sua colmeia no tronco de uma catuíba, de sorte que o mel puro e claro tinha perfumes deliciosos; dir-se-ia mel de flores.

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O índio tornou côncava uma palma larga e encheu-a com o suco do ananás, cuja fragrância é como a essência do sabor: era o vinho que devia servir ao banquete frugal.

Numa segunda palma, também côncava, apanhou a água cristalina da corrente que murmurava a alguns passos; devia servir para Cecília lavar as mãos depois da refeição.

Quando acabou esses preparativos que ele fazia com uma satisfação inexprimível, Peri sentou-se junto da menina e começou a trabalhar num arco de que precisava. O arco era a sua arma favorita, e sem ele, embora possuísse a clavina e as munições que por precaução deitara na canoa para servirem a D.

Antônio de Mariz, não tinha tranqüilidade de espírito e confiança plena na sua agilidade. Reparando, porém, que sua senhora não tocava nos alimentos, ergueu a cabeça e viu o rosto da menina banhado de lágrimas, que calam em pérolas sobre os frutos e os rociavam como gotas de orvalho.

Não era preciso adivinhar para conhecer a causa dessas lágrimas.

— Não chora, senhora, disse o índio aflito; Peri te falou o que sentia; manda, e Peri fará a tua vontade.

Cecília olhou-o com uma expressão de melancolia que partia a alma.

— Queres que Peri fique contigo? Ele ficará; todos serão seus inimigos; todos o tratarão mal; desejara defender-te e não poderá; quererá servir-te e não o deixarão; mas Peri ficará.

— Não, respondeu Cecília; não exijo de ti esse último sacrifício. Deves viver onde nasceste, Peri.

— Mas tu vais ainda chorar!

— Vê, disse a menina enxugando as lágrimas; estou contente.

— Agora toma uma fruta.

— Sim; juntaremos juntos, como jantavas outrora no meio das matas com tua irmã.

— Peri nunca teve irmã.

— Mas tens agora, respondeu ela sorrindo.

E como uma filha das florestas, uma verdadeira americana, a gentil menina fez a sua refeição, partilhando-a com seu companheiro, e acompanhando-a dos gestos inocentes e faceiros que só ela sabia ter.

Peri admirava-se da mudança brusca que se tinha operado em sua senhora, e no fundo do seu coração sentia um aperto, pensando que ela se consolara bem depressa com a lembrança da separação.

Mas ele não era egoísta, e preferia a alegria de sua senhora a seu prazer; porque vivia antes da vida dela do que da sua própria.

Depois da refeição, Peri voltou ao seu trabalho.

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