Cecília, que desde o primeiro dia sentia-se abatida e lânguida, tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons dias.
O rosto mimoso conservava ainda a sombra melancólica que lhe deixaram impressas as cenas tristes de que fora testemunha, e sobretudo a última desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãe.
Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma expressão angélica, e tal mansuetude e suavidade, que dava novo encanto à sua beleza ideal.
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Deixando seu companheiro distraído com a sua obra, chegou à beira do rio e sentou-se junto de uma moita de uvaias, à qual estava amarrada a canoa.
Peri viu-a afastar-se, e sempre seguindo-a com os olhos, continuou a preparar a vergôntea que devia servir-lhe de arco, e as canas selvagens, as quais o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira.
A menina, com a face apoiada na mão e os olhos postos na correnteza do rio, cismava; às vezes as pálpebras cerravam -se; os lábios se agitavam imperceptivelmente; nesses momentos parecia que conversava com algum espírito invisível.
Outras vezes, um doce sorriso despontava nos seus lábios e desfazia-se logo, como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a esconder-se no fundo do coração, donde se tinha escapado.
Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha, que às vezes tomava a sua cabecinha loura, à qual só faltava o diadema; a fisionomia mostrou uma expressão de energia, que lembrava o caráter de D. Antônio de Mariz.
Tinha tomado uma resolução; uma resolução firme, inabalável, que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdara de seu pai, e dormia no fundo de sua alma, para só revelar-se nas ocasiões extremas.
Levantou os olhos ao céu, e pediu a Deus um perdão para uma falta, e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa ação que ia praticar; sua oração foi breve, mas ardente e cheia de fervor.
Enquanto isso se passava, Peri, vendo que as sombras da terra já se deitavam sobre o leito do Paraíba, conheceu que era tempo de partir, e preparou-se para continuar a viagem.
No momento em que levantava-se, Cecília correu para ele, e colocou-se em face, de modo a lhe ocultar a vista do rio.
— Tu sabes? disse ela sorrindo; tenho uma coisa a pedir-te.
Esta só palavra bastava para que Peri não visse mais nada senão os olhos e os lábios de sua senhora, que iam dizer-lhe o que ela desejava.
— Quero que apanhes muito algodão para mim e me tragas uma pele bonita.
Sim?
— Para quê? perguntou o índio admirado.
— Do algodão fiarei um vestido; da pele tu cobrirás os meus pés.
Peri, cada vez mais admirado, ouvia sua senhora sem compreendê-la:
— Assim, disse a menina sorrindo, tu me deixarás acompanhar-te, os espinhos não me farão mal.
O espanto do índio tinha-o tornado imóvel; mas de repente soltou um grito, e quis precipitar-se para o rio.
A mãozinha de Cecília apoiando-se no seu peito, reteve-o.
— Espera!
— Olha! respondeu o índio inquieto apontando para o rio.
A canoa, desprendida do tronco a que estava amarrada, resvalava à discrição das águas, e, girando sobre si, desaparecia levada pela correnteza.
Cecília depois de olhar se voltou sorrindo:
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— Fui eu que soltei!
— Tu, senhora! Por quê?
— Porque não precisamos mais dela.
Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis, disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável.
— Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.
Era essa idéia que ela há pouco acariciava no seu espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.
Não foi sem algum esforço que ela conseguiu dominar os primeiros temores que a assaltaram, quando encarou em face essa existência longe da sociedade, na solidão, no isolamento.
Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?
A cidade lhe aparecia apenas como um recordação da primeira infância, como um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos, e nunca mais ali voltara.
O campo, esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes; a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas auras; o botão desatara aos raios desse sol esplêndido.
Toda a sua vida, todos os seus belos dias, todos os seus prazeres infantis viviam ali, falavam naqueles ecos da solidão, naqueles murmúrios confusos, naquele silêncio mesmo.
Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade; era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus gostos prendiam-se mais as pompas singelas da natureza, do que às festas e às galas da arte e da civilização.