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— Não tenho fome.

— Tu os guardarás.

— Pois bem; eu te acompanho.

— Não; Peri não consente.

— E por quê? Não me queres junto de ti?

— Olha tuas roupas; olha teu pé, senhora; os espinhos do cardo te ofenderiam.

Com efeito Cecília estava vestida com um ligeiro roupão de cambraia; e seu pezinho que descansava sobre a relva, calçava um borzeguim de seda.

— Então me deixas só? disse a menina entristecendo.

O índio ficou um momento indeciso; mas de repente sua fisionomia expandiu-se.

Cortou a haste de um íris que se balançava ao sopro da aragem, e apresentou a flor à menina.

— Escuta, disse ele. Os velhos da tribo ouviram de seus pais, que a alma do homem quando sai do corpo, se esconde numa flor, e fica ali até que a are do céu vem buscá-la e a leva li, bem longe. É por isso que tu vês o guanumbi, saltando de flor em flor, beijando uma, beijando outra, e depois batendo as asas e fugindo.

Cecília, habituada à linguagem poética do selvagem, esperava a última palavra que devia fazê-la compreender o seu pensamento.

O índio continuou:

— Peri não leva a sua alma no corpo, deixa-a nesta flor. Tu não ficas só. A menina sorriu, e tomando a flor escondeu-a no seio.

— Ela me acompanhará. Vai, meu irmão, e volta logo.

— Peri não se afastará; se tu o chamares, ele ouvirá.

— E me responderás, sim?... para que eu te sinta perto de mim...

O índio, antes de partir, circulou a alguma distancia o lugar onde se achava Cecília, de uma corda de pequenas fogueiras feitas de louro, de canela, urataí e outras árvores aromáticas.

Desta maneira tornava aquele retiro impenetrável; o rio de um lado, e do outro as chamas que afugentariam os animais daninhos, e sobretudo os répteis; o fumo odorífero que se escapava das fogueiras afastaria até mesmo os insetos. Peri não sofreria que uma vespa e uma mosca

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sequer ofendesse a cútis de sua senhora, e sugasse uma gota desse sangue precioso; por isso tomara todas essas precauções.

Cecília devia pois ficar tranqüila como se estivesse em um palácio; e de fato era um palácio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa, as folhas de dossel, as grinaldas em flores de cortinas, os sabiás de orquestra, as águas de espelho, e os raios do sol de arabescos dourados.

A menina viu de longe o desvelo com que seu amigo tratava de sua segurança, e acompanhou-o com o olhar até o momento em que ele desapareceu no mais espesso da mata.

Foi então que ela sentiu a soledade estender-se em torno e envolvê-la; insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flor que Peri lhe tinha dado.

Apesar de sua fé cristã, não pôde vencer essa inocente superstição do coração: pareceu-lhe, olhando o íris, que já não estava só e que a alma de Peri a acompanhava.

Qual é o seio de dezesseis anos que não abriga uma dessas ilusões encantadoras, nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor? Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer, e não vê numa borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança?

Como a humanidade na infância, o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia; mitologia mais graciosa e mais poética do que as criações da Grécia; o amor é o seu Olimpo povoado de deusas ou deuses de uma beleza celeste e imortal.

Cecília amava; a gentil e inocente menina procurava iludir-se a si mesma, atribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma afeição fraternal, e ocultando, sob o doce nome de irmão, um outro mais doce que titilava nos seus lábios, mas que seus lábios não ousavam pronunciar.

Mesmo só, de vez em quando um pensamento que passava no seu espírito, incendia-lhe as faces de rubor, fazia palpitar-lhe o seio e pender molemente a cabeça, como a haste da planta delicada quando o calor do sol fecunda a florescência.

Em que pensava ela, com os olhos fitos no íris, que o seu hálito bafejava, com as pálpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre os joelhos?

Pensava no passado que não voltaria; no presente que devia escoar-se rapidamente; e no futuro que lhe aparecia vago, incerto e confuso.

Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão de sangue, cujo destino ignorava, e um irmão de alma, em que tinha concentrado todas as afeições que perdera.

Um sentimento de tristeza profunda anuviava o seu semblante, lembrando-se de seu pai, de sua mãe, de Isabel, de Álvaro, de todos que amava e que formavam o universo para ela; então o que a consolava era a esperança de que os dois únicos corações que lhe restavam, não a abandonariam nunca.

E isto a fazia feliz; não desejava mais nada; não pedia a Deus mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e enchendo o futuro com as recordações do passado.

A sombra das árvores já beijava as águas do rio, e Peri ainda não tinha voltado; Cecília assustou-se, e, temendo que lhe tivesse sucedido alguma coisa, chamou por ele.

O índio respondeu longe, e pouco depois apareceu entre as árvores; o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado, a julgar pelos objetos que trazia.

— Como tardaste!... disse-lhe Cecília erguendo-se e indo ao seu encontro.

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— Tu estavas sossegada; Peri aproveitou para não te deixar amanhã.

— Amanhã só?

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