As horas correram silenciosamente nessa muda contemplação; a aragem fresca que anuncia o despontar do dia bafejou o rosto da menina; e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do horizonte.
Sobre o relevo que formava o perfil escuro da floresta, nas sombras da noite, luziu límpida e brilhante a estrela-d’alva; as águas do rio arfaram docemente; e os leques das palmeiras se agitaram rumorejando.
A menina lembrou-se do seu despertar tão plácido de outrora, de suas manhãs tão descuidosas, de sua prece alegre e risonha em que agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ela e sua família.
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Uma lágrima pendeu nos cílios dourados e caiu sobre a face de Peri; abrindo os olhos e vendo ainda a mesma doce visão que o adormecera, o índio julgou que o sonho continuava.
Cecília sorriu-lhe; e passou a mãozinha pelas pálpebras ainda meio cerradas de seu amigo:
— Dorme, disse ela, dorme; Ceci vela.
A música dessas palavras despertou completamente o selvagem.
— Não! balbuciou ele envergonhado de ter cedido à fadiga. Peri sente-se forte.
— Mas tu deves ter necessidade de repouso! Há tão pouco tempo que adormeceste!
— O dia vai raiar; Peri deve velar sobre sua senhora.
— E por que tua senhora não velará também sobre ti? Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!
O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina:
— Peri não entende o que tu dizes. A rolinha quando atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte; e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme, que vai buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha, senhora.
Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo.
— E tu? perguntou ela confusa e trêmula de emoção.
— Peri... é teu escravo, respondeu o índio naturalmente. A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:
— A rolinha não tem escravo.
Os olhos de Peri brilharam; uma exclamação partiu de seus lábios:
— Teu...
Cecília com o seio palpitante, as faces vermelhas, os olhos úmidos, levou a mãozinha aos lábios de Peri, e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado.
— Tu és meu irmão! disse ela com um sorriso divino.
Peri olhou o céu como para fazê-lo confidente de sua felicidade.
A claridade da alvorada estendia-se sobre a floresta e os campos como um véu finíssimo; a estrela da manhã cintilava em todo o seu fulgor.
Cecília ajoelhou-se.
— Salve, rainha!...
O índio contemplava-a com uma expressão de ventura inefável.
— Tu és cristão, Peri! disse ela lançando-lhe um olhar suplicante.
Seu amigo compreendeu-a, e ajoelhando, juntou as mãos como ela. — Tu repetirás todas as minhas palavras; e faze por não esquecê-las. Sim?
— Elas vêm de teus lábios, senhora.
— Senhora, não! irmã!
Daí a pouco os murmúrios das águas confundiam-se com os acenos maviosos da voz de Cecília que recitava o hino cristão repassado de tanta unção e poesia.
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A palavra de Peri repetia como um eco a frase sagrada.
Terminada a prece cristã, talvez a primeira que tinha ouvido aquelas árvores seculares, a viagem continuou.
Logo que o sol chegou ao zênite, Peri procurou como na véspera um abrigo para passar as horas de calma.
A canoa pojou num pequeno seio do rio; Cecília saltou em terra; e seu companheiro escolheu uma sombra onde ela repousasse.
— Espere aqui; Peri já volta.
— Onde vais? perguntou a menina inquieta.
— Ver frutos para ti.