Adeus.
Minas, 12 de dezembro.
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AO LEITOR
Publicado este livro em 1857, se disse ser aquela primeira edição uma prova tipográfica, que algum dia talvez o autor se dispusesse a rever.
Esta nova edição devia dar satisfação do empenho, que a extrema benevolência do público ledor, tão minguado ainda, mudou em bem para dívida de reconhecimento.
Mais do que podia fiou de si o autor. Relendo a obra depois de anos, achou ele tão mau e incorreto quanto escrevera, que para bem corrigir, fora mister escrever de novo. Para tanto lhe carece o tempo e sobra o tédio de um labor ingrato.
Cingiu-se pois às pequenas emendas que toleravam o plano da obra e o desalinho de um estilo não castigado.
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PRIMEIRA PARTE
OS AVENTUREIROS
I CENÁRIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.
É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano.
Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.
Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade.
Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pêlo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem e apenas um simples comparsa.
No ano da graça de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.
Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semi-círculo irregular que teria quando muito cinqüenta braças quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte.
Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.
Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa.
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De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável.
A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda apresentam as nossas primitivas habitações; tinha cinco janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas.
Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até à borda da esplanada uma asa do edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.
No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista abraçava do alto do rochedo.
Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores copadas, um estendal de relvas, um fio de água, fingindo um rio e formando uma pequena cascata, tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável.
À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água, e o monte de grama, que tinha quando muito o tamanho de um divã, parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma miniatura.
O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados.
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem.
Agora que temos descrito o aspecto da localidade, onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta história, podemos abrir a pesada porta de jacarandá, que serve de entrada, e penetrar no interior do edifício.
A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente, respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto, como era então aquele sitio.
As paredes e o teto eram calados, mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco; nos espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa.
Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de armas em campo de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas.
No escudo, formado por uma brica de prata orlada de vermelho, via-se um elmo também de prata, paquife de ouro e de azul, e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.