Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distancia, e se agitava imperceptivelmente.
Ali por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.
Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.
Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraia-lhe as negras mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.
O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.
Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira.
Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pêlo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.
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O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado, endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.
Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha.
Como, porém, o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:
— É meu!... meu só!
Estas palavras foram ditas em português, com uma pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.
O italiano riu.
— Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa amiga?...
Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo; ela vo-lo agradecerá.
Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, como para exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demonstração ofensiva.
Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.
A um sinal de Álvaro de Sá, os cavaleiros prosseguiram a sua marcha, e entranharam-se de novo na floresta.
O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o pêlo eriçado, não ousara investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes; mas apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da mata, soltou um novo rugido de alegria e contentamento.
Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como se uma árvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário uma distancia de trinta palmos.
O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto: a onça, com os seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue, tinha visto os cavalos e desdenhava o homem, fraca presa para saciá-la.
Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço, e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço à sua altura.
Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado por um bramido da fera; a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda, açoitando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior.
O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente.
Era uma lata de morte a que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranqüilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava satisfeito.
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Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.
O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio
Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.
A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.
Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.
Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.
Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.
Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.
Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas.
Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.
Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera.
Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.
Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado.