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A sala estava deserta; D. Antônio de Mariz tinha saído para dar as suas ordens; sua mulher, ajoelhada no oratório sobre um montão de ruínas, rezava ao pé de uma cruz que ficara junto ao altar. No fundo do aposento, sobre o sofá, destacava-se o vulto imóvel do cavalheiro, aos pés do qual ardia uma vela de cera, lançando pálidos clarões.

Cecília é que estava perto dele, e apertava no seio a sua cabeça desfalecida, procurando reanimá-lo.

Quando o olhar de Isabel caiu sobre o corpo de seu amante, ela ergueu-se como impelida por uma força sobrenatural, atravessou rapidamente a sala, e foi por sua vez ajoelhar-se em face desse leito mortuário. Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava, era para embeber -se na contemplação desse rosto lívido e gelado, desses lábios frios, desses olhos extintos, que ela amava apesar da morte.

Cecília respeitou a dor de sua prima, e por um instinto de delicadeza que só possuem as mulheres, compreendeu que o amor, mesmo em face de um cadáver, tem o seu pudor e a sua castidade; saiu para deixar que Isabel chorasse livremente.

Passado algum tempo depois da saída de Cecília, a moça ergueu-se, percorreu automaticamente a casa, e vendo Peri de longe aproximou-se dele e tocou-lhe no ombro.

O índio e a moça se odiavam desde o primeiro dia em que se tinham visto; em Isabel era o ódio de uma raça que a rebaixava a seus próprios olhos; em Peri era essa repugnância natural que sente o homem por aqueles em quem reconhece um inimigo.

Por isso Peri, vendo Isabel junto dele, ficou extremamente admirado, sobretudo quando reparou no gesto suplicante que a moça lhe dirigia, como se esperasse dele uma graça.

— Peri!...

O índio sentiu-se comovido ao aspecto daquele sofrimento, e pela primeira vez na sua vida dirigiu a palavra a Isabel.

— Precisas de Peri? disse ele.

— Vinha pedir-te um serviço. Não mo negarás, sim? balbuciou a moça.

— Fala! se for coisa que Peri possa fazer, ele não te negará.

— Prometes então? exclamou Isabel cujos olhos brilharam com uma expressão de alegria.

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— Sim, Peri te promete.

— Vem!

Dizendo essa palavra, a mova fez um gesto ao índio e dirigiu-se acompanhada por ele à sala que ainda estava deserta como tinha deixado. Parou junto do sofá, e apontando para o corpo inanimado de seu amante, acenou a Peri que o tomasse nos seus braços.

O índio obedeceu, e acompanhou Isabel até um gabinete retirado a um lado da casa; ai deitou o seu fardo sobre um leito, cujas cortinas a moça entreabriu, corando como uma noiva.

Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o quarto em que habitara e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu amor; porque o leito, que recebia seu amante, era o seu leito de virgem casta e pura; porque ela era realmente uma noiva do túmulo.

Peri, tendo satisfeito o desejo da moça, retirou-se e voltou ao seu trabalho, que ele prosseguia com uma constância infatigável.

Apenas ficou só, Isabel sorriu; mas o seu sorriso tinha um quer que seja do êxtase da dor, da voluptuosidade do sofrimento, que faz sorrir na sua última hora os mártires e os desgraçados.

Tirou do seio a redoma de vidro onde guardava os cabelos de sua mãe e fitou nela um olhar ardente; mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinível. Tinha mudado de resolução; o segredo que encerrava essa jóia, o pó sutil que empenava a face interior do cristal, a morte que sua mãe lhe confiara não a satisfazia; era muito rápida, quase instantânea.

Saiu então furtivamente e acendeu uma vela de cera, que havia sobre a cômoda ao lado de um crucifixo de marfim; depois fechou a porta, cerrou as janelas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia penetrar. O gabinete ficou às escuras; apenas em torno do círio que ardia, uma auréola pálida se destacava no meio das trevas e iluminava a imagem do Cristo.

A moça ajoelhou e fez uma oração breve: pedia a Deus uma última graça: pedia a eternidade e a ventura do seu amor, que tinha passado tão rápido pela terra.

Acabando a prece, tomou a luz, deitou-a na cabeceira do leito, afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com enlevo.

Álvaro parecia adormecido apenas; sua bela fisionomia não tinha a menor alteração; a morte, imprimindo nos seus traços a descor da cera e do mármore, havia unicamente imobilizado a expressão e feito do gentil cavalheiro uma bela estátua.

Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação para chegar-se de novo à cômoda, onde se viam algumas conchas de mariscos tintas de nácar que se apanham nas nossas praias, e uma cesta de palha matizada.

Esta cesta continha todas as resinas aromáticas, todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra; o anime da aroeira, as pérolas do benjoim, as lágrimas cristalizadas da embaíba, e gotas do bálsamo, esse sândalo do Brasil.

A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes, e acendeu algumas bagas de benjoim; o óleo de que estavam impregnadas alimentando a chama, comunicou-a às outras resinas.

Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes embriagadores se elevaram da caçoula em grossas espirais e encheram o gabinete de nuvens transparentes que oscilavam à luz pálida do círio.

Isabel sentada à beira do leito, com as mãos do seu amante nas suas e com os olhos embebidos naquela imagem querida, balbuciava frases entrecortadas, confidências intimas, sons inarticulados, que são a linguagem verdadeira do coração.

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Às vezes sonhava que Álvaro ainda vivia, que lhe murmurava ao ouvido a confissão do seu amor; e ela falava -lhe como se seu amante a ouvisse, contava-lhe os segredos de sua paixão, vertia toda a sua alma nas palavras que caiam dos lábios. Sua mão delicada afastava os cabelos do moço, descobria sua fronte, animava a sua face gelada, e rogava aqueles lábios frios e mudos como pedindo-lhe um sorriso.

— Por que não me falas? murmurava ela docemente; não conheces tua Isabel?...

Dize outra vez que me amas! Dize sempre essa palavra, para que minha alma não duvide da felicidade! Eu te suplico!...

E com o ouvido atento, com os lábios entreabertos, o seio palpitante, ela esperava o som dessa voz querida e o eco dessa primeira e última palavra de seu triste amor.

Mas o silêncio só lhe respondia; seu peito aspirava apenas as ondas dos perfumes inebriantes, que faziam circular nas suas veias uma chama ardente.

O aposento apresentava então um aspecto fantástico: no fundo escuro desenhava-se um circulo esclarecido, envolto por uma névoa espessa.

Nessa esfera luminosa como no meio de uma visão, surgiam Álvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante, a quem continuava a falar, como se ele a escutasse. A menina começava a sentir a respiração faltar-lhe; seu seio opresso sufocava-a; e entretanto uma voluptuosidade inexprimível a embriagava; um gozo imensa havia nessa asfixia de perfumes que se condensavam e rarefaziam no ar.

Louca, perdida, alucinada, ela ergueu-se, seu seio dilatou-se, e sua boca, entreabrindo-se, colou-se aos lábios frios e gelados de seu amante; era o seu primeiro e último beijo; o seu beijo de noiva.

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