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Os aventureiros que chegavam guiados por Aires Gomes apoderaram-se de Loredano e foram ajoelhar-se confusos e envergonhados aos pés de D. Antônio de Mariz, pedindo-lhe o perdão de sua falta.

O fidalgo tinha assistido a todos esses acontecimentos que se sucediam tão rapidamente, sem deixar a sua primeira posição; dir-se-ia que sobre essas paixões humanas que se debatiam a seus pés ele plainava como um gênio, prestes a vibrar o raio celeste.

— A vossa falta é daquelas que não se perdoam, disse D. Antônio; mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer todas as ofensas.

Levantai-vos e preparemo-nos todos para morrer como cristãos.

Os aventureiros ergueram-se, e arrastando Loredano para fora da sala, retiraram-se para o alpendre, com a consciência aliviada de um grande peso.

A família pôde então, depois de tantas emoções, gozar um pouco de sossego e repouso; apesar da posição desesperada em que se achavam, a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre de esperança.

Só D. Antônio de Mariz não se iludia, e desde aquela manhã tinha conhecido que, quando os Aimorés não o vencessem pelas armas, o venceriam pela fome. Todos os viveres estavam consumidos, e só uma sortida vigorosa podia salvar a família desse martírio que a ameaçava, martírio muito mais cruel do que uma morte violenta.

O fidalgo resolveu esgotar os últimos recursos antes de confessar-se vencido; queria morrer com a consciência tranqüila de haver cumprido o seu dever e de haver feito o que fosse humanamente possível. Chamou Álvaro e entreteve-se com o moço durante algum tempo em voz baixa; concertavam um meio de realizar essa idéia, de que dependia toda a esperança de salvação.

Ao mesmo tempo que isto se passava, os aventureiros reunidos em conselho, julgavam a Frei Ângelo di Luca, e o condenavam por um voto unânime.

Proferida a sentença apresentaram-se diversas opiniões sobre o suplício que devia ser infligido ao culpado; cada um lembrava o gênero de morte o mais cruel; porém a opinião geral adotou a fogueira como o castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges.

Fincaram no meio do terreiro um alto poste e o cercaram com uma grande pilha de madeira e outros combustíveis; depois sobre essa pira ligaram o frade, que sofria todos os insultos e todas as injúrias sem proferir uma palavra.

Uma espécie de atonia se apoderara do italiano desde o momento em que os aventureiros o haviam arrastado da sala de D. Antônio de Mariz; ele tinha a consciência do seu crime e a certeza de sua condenação.

Entretanto na ocasião em que o atavam à fogueira, um incidente despertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela idéia da morte, e pela convicção de que não podia escapar a ela.

Um dos aventureiros, um dos cinco cúmplices da última conspiração, chegou-se a Loredano, e tirando-lhe a cinta que prendia o seu gibão, mostrou-a aos seus companheiros. O italiano

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vendo-se separado do seu tesouro sentiu uma dor muito mais forte do que a que ia sofrer na fogueira; para ele não havia suplício, não havia martírio que igualasse a este.

O que o consolava na sua última hora era a idéia de que esse segredo que possuía, e do qual não pudera utilizar-se, ia morrer com ele, e ficaria perdido para todos; que ninguém gozaria do tesouro que lhe escapava.

Por isso apenas o aventureiro tirou-lhe a cinta onde guardava o roteiro; soltou um rugido de cólera e de raiva impotente; seus olhos injetaram-se de sangue, e seus membros crispando-se feriram-se contra as cordas que os ligavam ao poste.

Era horrível de ver nesse momento; seu aspecto tinha a expressão brutal e feroz de um hidrófobo; seus lábios espumavam, silvando como a serpente; e seus dentes ameaçavam de longe os seus algozes como as presas do jaguar.

Os aventureiros riram-se do desespero do frade por ver roubarem-lhe o seu precioso tesouro, e divertiram-se em aumentar-lhe o suplício, prometendo que apenas livres dos Aimorés fariam uma expedição às minas de prata.

A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou a cinta ao corpo, e disse-lhe sorrindo:

— Bem sabeis o provérbio: “O bocado não é para quem o faz”.

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VI TRÉGUA

Eram oito horas da noite.

Os aventureiros, sentados no terreiro em roda de um pequeno fogo, esperavam tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados à magra ceia.

A penaria tinha sucedido à abundância de outrora; privados da caça, sua alimentação ordinária, estavam reduzidos a simples vegetais. Os seus vinhos e as

bebidas fermentadas de que faziam largas libações, tinham sido envenenados por Peri; e foram pois obrigados a deitá-los fora muito felizes ainda por não terem sido vitimas deles.

Loredano fechando a porta da despensa é que os tinha salvado; apenas dois dos aventureiros que o haviam acompanhado tinham tocado nessas bebidas, e por isso poucas horas depois caíram mortos, como vimos, na ocasião em que iam atacar D. Antônio de Mariz.

Não eram porém essas cenas de lato e a situação critica em que se achavam, que infundiam nesses homens sempre alegres e tão galhofeiros aquela tristeza que não lhes era habitual. Morrer com as armas na mão, batendo-se contra o inimigo, era para eles uma coisa natural, uma idéia a que a sua vida de aventuras e de perigos os tinha afeito.

O que realmente os entristecia, era não terem uma boa ceia, e um canjirão de vinho diante de si; era o seu estômago que se contraia por falta de alimento, e que tirava-lhes toda a disposição de rir e de folgar.

A chama avermelhada da fogueira às vezes oscilava ao sopro do vento, e estendendo-se pelo terreiro ia iluminar a alguma distância com o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pira de lenha.

Os aventureiros tinham resolvido demorar o suplício e dar tempo a que o frade se arrepende-se dos seus crimes e se decidisse a morrer como cristão, humilde e penitente; por isso deixaram-lhe a noite para refletir.

Talvez entrasse também nessa resolução um requinte de maldade e de vingança; julgando o italiano a verdadeira causa da posição em que estavam colocados, os seus companheiros o odiavam e queriam prolongar o seu sofrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito.

Assim, de vez em quando algum deles se erguia, e chegando-se ao frade, exprobrava-lhe a sua perversidade e cobria-o de impropérios e de injúrias.

Loredano estorcia-se de raiva, mas não proferia uma palavra, porque os seus algozes o tinham ameaçado de cortar-lhe a língua.

Aires Gomes veio chamar os aventureiros da parte de D. Antônio de Mariz; todos se apressaram em obedecer, e pouco depois entraram na sala onde estava toda a família.

Tratava-se de uma sortida com o fim de procurar víveres que pudessem alimentar os habitantes da casa, até que D. Diogo tivesse tempo de chegar com o socorro que tinha ido procurar. D. Antônio de Mariz reservava dez homens para defender-se; os outros partiriam com Álvaro; se fossem felizes, havia ainda uma esperança de salvação; de fossem malsucedidos, uns e outros, os que fossem e os que ficassem morreriam como cristãos e portugueses.

Imediatamente a expedição preparou-se, a favorecida pelo silêncio da noite partiu e interno-se pela floresta; devia afastar-se sem ser percebida pelos Aimorés, e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla provisão de alimentos.

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