"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » Portuguese Books » "O Guarani" José de Alencar

Add to favorite "O Guarani" José de Alencar

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

O índio não sabia o que responder; temia ter perdido a afeição de Cecília, e essa idéia martirizava os últimos momentos que lhe restavam a viver.

— Cecília não te disse, continuou a menina soluçando, que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida?

— Peri já te pediu que perdoasses! murmurou o índio.

— Oh! Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a tua senhora!... Mas ela te perdoa.

— Ah!... exclamou Peri, cuja fisionomia iluminou-se.

— Sim!... Cecília te perdoa tudo que sofreu, e tudo que vai sofrer! Mas será por pouco tempo...

A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação; conhecia que não havia mais esperança de salvação, e esta idéia quase a consolava.

Não pôde acabar porém; a palavra ficou-lhe presa aos lábios, trêmula, convulsa: seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento de terror e de espanto.

A fisionomia do índio se tinha decomposto; seus traços nobres alterados por contrações violentas, o rosto encovado, os lábios roxos, os dentes que se entrechocavam, os cabelos eriçados davam-lhe um aspecto medonho.

— O veneno!... gritaram os espectadores dessa cena horrorizados.

Cecília fez um esforço extraordinário, e lançando-se para o índio, procurou reanimá-lo.

— Peri!... Peri!... balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo.

— Peri vai te deixar para sempre, senhora.

— Não!... Não!... exclamou a menina fora de si. Não quero que tu nos deixes!...

Oh! tu és mau, muito mau!... Se estimasses tua senhora, não a abandonarias assim!...

As lágrimas orvalhavam as faces da menina, que no seu desespero não sabia o que dizia. Eram palavras entrecortadas, sem sentido; mas que revelavam a sua angústia.

— Tu queres que Peri viva, senhora? disse o índio com a voz comovida.

— Sim!... respondeu a menina suplicante. Quero que tu vivas!

Página 214

— Peri viverá!

O índio fez um esforço supremo, e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos, dirigiu-se à porta e desapareceu.

Todas as pessoas presentes o acompanharam com os olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo.

A última palavra que ele proferira tinha um momento restituído a esperança a D.

Antônio de Mariz; mas quase logo a dúvida apoderou-se do seu espírito; julgou que o índio se iludia.

Cecília porém tinha mais do que uma esperança; tinha quase uma certeza de que Peri não se enganara: a promessa de seu amigo lhe inspirava uma confiança profunda. Nunca Peri lhe havia dito uma coisa que se não realizasse; o que parecia impossível aos outros, tornava-se fácil para sua vontade firme e inabalável, para o poder sobre-humano, de que a força e a inteligência o revestia.

Quando D. Antônio de Mariz e sua família se recolheram tristemente impressionados, Álvaro, de pé na porta do gabinete, fez um gesto de espanto ao fidalgo, e apontou-lhe para o oratório.

A parede do fundo, prestes a tombar, oscilava sobre a sua base como uma árvore balançada pelo vento.

D. Antônio sorriu; e ordenando à sua família que entrasse no gabinete, tirou a pistola da cinta, armou-a e esperou na porta ao lado de Álvaro.

No mesmo instante ouviu-se um grande estrondo, e no meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruínas, seis homens precipitaram-se na sala.

Loredano foi o primeiro; apenas tocou o chão, ergueu-se com extraordinária rapidez, e seguido pelos seus companheiros caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a família.

Recuaram, porém, lívidos e trêmulos, horrorizados diante da cena muda e terrível que se apresentava aos seus olhos espantados.

No meio do aposento via-se um desses grandes vasos de barro vidrado, feitos pelos índios, e que continha pelo menos uma arroba de pólvora. De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia perder-se no fundo do paiol, onde se achavam enterradas todas as munições de guerra do fidalgo.

Duas pistolas, a de D. Antônio de Mariz e a de Álvaro esperavam um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca ao vulcão. D. Lauriana, Cecília e

Isabel de joelhos, oravam julgando a cada momento ver confundirem-se no turbilhão todos os espectadores dessa cena.

Era esta a arma terrível de que falara há pouco D. Antônio, quando dizia à Álvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar todos os seus inimigos. O moço compreendeu então a razão por que o fidalgo o tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Peri, julgando-se bastante forte para defender, ele só, a sua família

Quanto aos aventureiros, lembraram -se do juramento solene de D. Antônio de Mariz; o fidalgo os tinha a todos fechados na sua mão, e bastava apertar essa mão para esmagá-los como um torrão de argila. Lançando um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quiseram fugir, mas não tiveram animo de dar um passo e ficaram como pregados ao solo.

Ouviu-se então um rumor de vozes da parte de fora, e Aires Gomes seguido pelos aventureiros apresentou-se à porta da sala.

Página 215

Loredano conheceu que desta vez estava irremediavelmente perdido, e assentou de vender caro a sua vida; mas a desgraça pesava sobre ele. Dois dos seus companheiros caíram a seus pés estorcendo-se em convulsões horríveis, e soltando gritos que metiam dó e compaixão.

A princípio ninguém compreendeu a causa dessa morte súbita e violenta; mas a lembraça do veneno de Peri acudiu logo à memória de alguns e explicou tudo.

Are sens

Copyright 2023-2059 MsgBrains.Com