Peri abaixou a cabeça com uma profunda tristeza.
— Dize à senhora que Peri deve morrer; que vai morrer por ela. E tu parte, porque senão seria tarde.
Álvaro olhou a fisionomia inteligente do índio para ver se descobria nela algum sinal de perturbação de espírito; porque o moço não compreendia, nem podia compreender a causa dessa obstinação insensata.
O rosto de Peri, calmo e sereno, não lhe deixou ver senão uma resolução firme, inabalável, tanto mais profunda quanto se mostrava sob uma aparência de sossego e tranqüilidade.
— Assim, tu não obedeces à tua senhora? Peri custou a arrancar a palavra dos lábios.
— A ninguém.
Quando pronunciava esta palavra, um grito fraco soou ao lado dele; voltando-se viu a índia que lhe haviam destinado por esposa caindo atravessada por uma flecha. O tiro fora destinado a Peri por um dos selvagens; e a menina lançando-se para cobrir o corpo daquele que amara uma hora, recebera a seta no peito.
Seus olhos negros, desmaiados pelas sombras da morte, volveram a Peri um último olhar; e cerrando tornaram a abrir-se já sem vida e sem brilho. Peri sentiu um movimento de piedade e simpatia vendo essa vitima de sua dedicação, que
como ele sacrificava sem hesitar a sua existência para salvar aquele a quem amava.
Álvaro nem se apercebeu do que acabava de passar; lançando um olhar para seus homens que batiam-se valentemente com os Aimorés fez um aceno a Aires Gomes.
— Escuta, Peri; tu sabes se costumo cumprir a minha palavra; jurei a Cecília levar-te; e ou tu me acompanhas, ou morreremos todos neste lagar.
— Faze o que quiseres! Peri não sairá daqui.
— Vês estes homens?... são os únicos defensores que restam à tua senhora; se todos eles morrem, bem sabes que é impossível que ela se salve.
Peri estremeceu. Ficou um momento pensativo; depois sem dar tempo a que o seguissem, lançou-se entre as árvores.
D. Antônio de Mariz e sua família, tendo ouvido os tiros de arcabuzes, esperavam com ansiedade o resultado da expedição.
Dez minutos haviam decorrido na maior impaciência, quando sentiram tocar na porta e ouviram a voz de Peri; Cecília correu, e o índio ajoelhou-se a seus pés pedindo-lhe perdão.
O fidalgo, livre do pesar de perder um amigo, assumira a sua costumada severidade, como sempre que se tratava de uma falta grave.
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— Cometeste uma grande imprudência, disse ele ao índio; fizeste sofrer teus amigos; expuseste a vida daqueles que te amam; não precisas de outra punição além desta.
— Peri ia salvar-te!
— Entregando-te nas mãos do inimigo?
— Sim!
— Fazendo-te matar por eles?
— Matar e...
— Mas qual era o resultado dessa loucura?
O índio calou-se.
— É preciso explicares-te, para que não julguemos que o amigo inteligente e dedicado de outrora tornou-se um louco e um rebelde.
A palavra era dura; e o tom em que foi dita ainda agravava mais a repreensão severa que ela encerrava.
Peri sentiu uma lágrima umedecer-lhe as pálpebras:
— Obrigas Peri a dizer tudo!
— Deves fazê-lo, se desejas reabilitar-te na estima que te votava, e que sinto perder.
— Peri vai falar.
Álvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto da esplanada os seus companheiros já livres de perigo, e quites por algumas feridas que não eram felizmente muito graves.
Cecília apertou as mãos do moço com reconhecimento; Isabel enviou-lhe num olhar toda a sua alma.
As pessoas presentes se gruparam ao redor da poltrona de D. Antônio, em face do qual Peri de pé com a cabeça baixa, confuso e envergonhado como um criminoso, ia justificar-se.
Dir-se-ia que confessava uma ação indigna e vil; ninguém adivinhava que sublime heroísmo, que concepção gigantesca havia neste ato, que todos condenavam como uma loucura.
Ele começou:
“Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para não tornar a erguê-lo, chamou Peri e disse:
‘Filho de Ararê, teu pai vai morrer; lembra-te que tua carne é a minha carne; e o teu sangue e o meu sangue. Teu corpo não deve servir ao banquete do inimigo.’
“Ararê disse, e tirou suas contas de frutos que deu a seu filho: estavam cheias de veneno; tinham nelas a morte.