— És goitacá?
— Sou teu inimigo!
— Defende-te!
O índio sorriu:
— Tu não mereces.
Os olhos do velho fuzilaram de raiva: a mão cerrou o punho da tangapema; mas ele reprimiu logo o assomo da cólera.
A esposa do prisioneiro atravessou o campo e ofereceu ao vencedor um grande vaso de barro vidrado cheio de vinho de ananás ainda espumante.
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O selvagem virou de um trago a bebida aromática, e endireitando o seu alto talhe, lançou ao prisioneiro um olhar soberbo:
— Guerreiro goitacá, tu és forte e valente; tua nação é temida na guerra. A nação Aimoré é forte entre as mais fortes, valente entre as mais valentes. Tu vais morrer.
O coro dos selvagens respondeu a esta espécie de canto guerreiro, que preludiava o tremendo sacrifício.
O velho continuou:
— Guerreiro goitacá, tu és prisioneiro; tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos de sua tribo; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança Tu vais morrer.
Os gritos dos selvagens responderam de novo: e o canto se prolongou por muito tempo lembrando os feitos gloriosos da nação Aimoré e as ações de valor de seu chefe.
Enquanto o velho falava, Peri o escutava com a mesma calma e impassibilidade; nem um dos músculos do seu rosto traia a menor emoção; seu olhar límpido e sereno ora fitava-se no rosto do cacique, ora volvia-se pelo campo examinando os preparativos do sacrifício.
Apenas quem o observasse veria que de braços cruzados como estava, uma das mãos desfazia imperceptivelmente um dos nós que havia na ponta de seu saio de algodão.
Quando o velho acabou de falar, encarou o prisioneiro, e recuando dois passos elevou lentamente a pesada clava que empunhava na mão esquerda. Os Aimorés ansiosos esperavam; as velhas com as suas navalhas de pedra estremeciam de impaciência; as jovens índias sorriam, enquanto a noiva do prisioneiro voltava o rosto para não ver o espetáculo horrível que ia apresentar-se.
Nesse momento Peri levando as duas mãos aos olhos cobriu o rosto, e curvando a cabeça ficou algum tempo nessa posição sem fazer um movimento que revelasse a menor perturbação.
O velho sorriu.
— Tens medo!
Ouvindo estas palavras, Peri ergueu a cabeça com ar senhoril. Uma expressão de júbilo e serenidade irradiava no seu rosto; dir-se-ia o êxtase dos mártires da religião que na última hora, através do túmulo, entrevêem a felicidade suprema.
A alma nobre do índio prestes a deixar a terra parecia exalar já do seu invólucro; e pousando nos seus lábios, nos seus olhos, na sua fronte, esperava o momento de lançar-se no espaço para ir se abrigar no seio do Criador.
Erguendo a cabeça, fitou os olhos no céu, como se a morte que ia cair sobre ele fosse uma visão encantadora que descesse das nuvens sorrindo-lhe. Era que nesse último sonho da existência via a linda imagem de Cecília, feliz, alegre e contente; via sua senhora salva.
— Fere!... disse Peri ao velho cacique.
Os instrumentos retumbaram de novo; os gritos e os cantos se confundiram com aqueles sons roucos, e reboaram pela floresta como o trovão rolando pelas nuvens.
A tangapema coberta de plumas girou no ar cintilando aos raios do sol que feriam as cores brilhantes.
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No meio desse turbilhão ouviu-se um estrondo, uma ânsia de agonizante e o baque de um corpo: tudo isto confusamente, sem que no primeiro instante se pudesse perceber o que havia passado.
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III SORTIDA
O estrondo que se ouviu, fora causado por um tiro que partiu dentre as árvores.
O velho Aimoré vacilou; seu braço que vibrava o tacape com uma força hercúlea, caiu inerte; o corpo abateu-se como o ipê da floresta cortada pelo raio.
A morte tinha sido quase instantânea; apenas um estertor de agonia ressoou no seu peito largo e ainda há pouco vigoroso; caíra já cadáver.
Enquanto os selvagens permaneciam estáticos diante do que se passava, Álvaro com a espada na mão e a clavina ainda fumegante precipitava-se no meio do campo. De dois talhos rápidos cortou os laços de Peri; e com as evoluções de sua espada conteve os selvagens, que voltando a si calam sobre ele bramindo de furor.
Imediatamente ouviu-se uma descarga de arcabuzes; dez homens destemidos tendo à sua frente Aires Gomes saltaram por sua vez com a arma em punho, e começaram a talhar de alto a baixo a grandes golpes de espada.
Não pareciam homens, e sim dez demônios, dez máquinas de guerra vomitando a morte de todos os lados; enquanto a sua mão direita imprimia à lamina da espada mil voltas, que eram outros tantos golpes terríveis, a esquerda jogava a adaga com destreza e segurança admiráveis.
O escudeiro e seus homens tinham feito um semicírculo em roda de Álvaro e de Peri e apresentavam uma barreira de ferro e fogo às ondas de inimigos que bramiam, recuavam, e lançavam-se de novo quebrando-se de encontro a esse dique.
No curto instante que mediou entre a morte do cacique e o ataque dos aventureiros, Peri de braços cruzados olhava impassível para tudo o que se passava em torno dele. Compreendia então o gesto que sua senhora há pouco lhe fizera do alto da esplanada, e o raio de esperança e de alegria que ele julgara ver brilhar no seu semblante.
Com efeito no primeiro momento de aflição Cecília se lançara para ver o índio, chamá-lo ainda, e suplicar-lhe mesmo que não expusesse a sua vida inutilmente.
Não tendo mais visto Peri, a menina sentiu um desespero cruel; voltou-se para seu pai e com as faces orvalhadas de lágrimas, com o seio anelante, com a voz cheia de angústia, pediu-lhe que salvasse Peri.