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Tinha pela direção do olhar do prisioneiro visto Cecília sobre a esplanada; tinha percebido o gesto da menina, e compreendera vagamente a razão por que Peri recusara a liberdade e o seu amor. Precipitou-se sobre o arco que estava atirado ao chão; mas apesar da rapidez desse movimento, quando ela estendia a mão, já Peri tinha posto o pé sobre a arma.

A selvagem, com os olhos ardentes, os lábios entreabertos, trêmula de ciúme e de vingança, leventou sobre o peito do índio a faca de pedra com que lhe cortara os laços há pouco; mas a arma caiu-lhe da mão, e vacilando apoiou-se no seio que ameaçara.

Peri tomou-a nos braços, deitou-a sobre a relva e sentou-se de novo junto ao tronco da árvore, tranqüilo a respeito de Cecília, que desapareceu da esplanada e estava fora de perigo.

Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas e o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol.

O ar estrugiu com os sons roucos da inúbia e do maracá; ao mesmo tempo um canto selvagem, o canto guerreiro dos Aimorés, misturou-se com a harmonia sinistra daqueles instrumentos ásperos e retumbantes.

A índia deitada junto da árvore sobressaltou-se, e erguendo-se rapidamente, acenou ao prisioneiro mostrando-lhe a floresta e suplicando-lhe que fugisse. Peri

sorriu como da primeira vez; tomando a mão da menina a fez sentar perto dele, e tirou do pescoço a cruz de ouro que Cecília lhe havia dado.

Então começou entre ele e a selvagem uma conversa por acenos de que seria difícil dar uma idéia.

Peri dizia à menina que lhe dava aquela cruz como lembrança, mas que só depois que ele morresse é que devia tirá-la do pescoço. A selvagem entendeu ou julgou entender o que Peri procurava exprimir simbolicamente, e beijou-lhe as mãos em sinal de reconhecimento.

O prisioneiro obrigou-a a atar de novo os laços que o ligavam, e que ela no seu generoso impulso de dar-lhe a liberdade havia desfeito.

Nesse momento quatro guerreiros Aimorés dirigiam-se à árvore em que se achava Peri; e segurando as pontas da corda o conduziram ao campo, onde tudo estava já preparado para o sacrifício.

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O índio ergueu-se e caminhou com o passo firme e a fronte alta diante dos quatro inimigos, que não perceberam o olhar rápido que nessa ocasião ele lançou às pontas de sua túnica de algodão, torcidas em dois nós pequenos.

O campo cortado em elipse no meio das árvores estava cercado por cento e tantos guerreiros armados em guerra e cobertos de ornatos de penas.

No fundo as velhas pintadas de listras negras e amarelas, de aspecto hórrido, preparavam um grande brasido, lavavam a laje que devia servir de mesa, e afiavam as suas facas de ossos e lascas de pedra.

As moças grupadas de um lado guardavam os vasos cheios de vinho e bebidas fermentadas, que ofereciam aos guerreiros quando estes passavam diante delas entoando o canto de guerra dos Aimorés.

A menina que fora incumbida de servir ao prisioneiro, e o acompanhara ao lugar do sacrifício, conservava-se a alguma distancia e olhava tristemente todos esses preparativos; pela primeira vez seu instinto natural parecia revelar-lhe a atrocidade desse costume tradicional de seus pais, a que ela tantas vezes assistira com prazer.

Agora que ia representar como heroína no drama terrível, e como esposa do prisioneiro devia acompanhá-lo até o momento supremo, insultando-lhe a dor e a desgraça, o seu coração confrangia-se porque realmente amava Peri, tanto quanto era possível a uma natureza como a sua amar.

Chegados ao campo, os selvagens que conduziam o prisioneiro passaram as pontas da corda ao tronco de duas árvores, e esticando o laço o obrigaram a ficar imóvel no meio do terreiro. Os guerreiros desfilaram em roda entoando o canto da vingança; as inúbias retroaram de novo; os gritos confundiram-se com o som dos maracás, e tudo isso formou um concerto horrível.

À medida que se animavam, a cadência apressava-se: de modo que a marcha triunfal dos guerreiros se tornava uma dança macabra, uma corrida veloz, uma valsa fantástica, em que todos esses vultos horrendos, cobertos de penas que brilhavam à luz do sol, passavam como espíritos satânicos envoltos na chama eterna.

A cada volta que fazia esse sabbat um dos guerreiros destacava-se do circulo, e adiantando-se para o prisioneiro o desafiava ao combate, e conjurava-o a que desse provas de sua coragem, de sua força e de seu valor.

Peri, sereno e altivo, recebia com um soberbo desdém a ameaça e o insulto, e sentia um certo orgulho pensando que no meio de todos aqueles guerreiros fortes e armados, ele, o prisioneiro, o inimigo que ia ser sacrificado, era o verdadeiro, o único vencedor.

Talvez pareça isso incompreensível; mas o fato é que Peri o pensava, e que só o segredo que ele guardava no fundo de sua alma podia explicar a razão desse pensamento e a tranqüilidade com que esperava o suplício.

A dança continuava no meio dos cantos, dos alaridos e das constantes libações, quando de repente tudo emudeceu, e o mais profundo silêncio reinou no campo dos Aimorés.

Todos os olhos se voltaram para uma cortina de folhas que ocultava uma espécie de cabana selvagem, construída a um lado do campo em face do prisioneiro.

Os guerreiros se afastaram, as folhas se abriram, e entre aquelas franjas de verdura assomou o vulto gigantesco do velho cacique. Duas peles de tapir ligadas sobre os ombros cobriam seu corpo como uma túnica; um grande cocar de penas escarlates ondeava sobre a sua cabeça e realçava-lhe a grande estatura.

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Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e oleosa, e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes do tucano; no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavam como dois fogos vulcânicos no seio das trevas.

Trazia na mão esquerda a tangapema coberta de plumas resplandecentes, e amarrada ao punho direito uma espécie de buzina formada de um osso enorme da canela de algum inimigo morto em combate.

Chegando à entrada do campo o velho selvagem levou à boca o seu instrumento bárbaro, e tirou dele um som estrondoso: os Aimorés saudaram com gritos de alegria e de entusiasmo o aparecimento do vencedor.

Ao cacique cabia a honra de ser o algoz da vitima, o matador do prisioneiro; seu braço devia consumar a grande obra da vingança, esse sentimento que constituía para aqueles povos fanáticos a verdadeira glória.

Apenas cessaram as aclamações com que foi acolhida a entrada do vencedor, um dos guerreiros que o acompanhavam adiantou-se e fincou na extrema do campo uma estaca destinada a receber a cabeça do inimigo, logo que ela fosse decepada do corpo.

Ao mesmo tempo a jovem índia que servia de esposa ao prisioneiro, tirou o tacape que pendia do ombro de seu pai, e caminhando para Peri desligou-lhe os braços e ofereceu-lhe a arma, fitando nele um olhar triste, ardente e cheio de amarga exprobração.

Nesse olhar dizia-lhe que se tivesse aceitado o amor que lhe oferecera, e com o amor a vida e a liberdade, ela não seria obrigada pelo costume tradicional de sua nação a escarnecer assim da sua morte.

Com efeito esse oferecimento que os selvagens faziam ao prisioneiro, de uma arma para se defender, era uma ironia cruel: ligado pelo laço que o prendia, imóvel pela tensão da corda, de que lhe servia vibrar o tacape no ar, se não podia atingir os inimigos?

Peri aceitou a arma que a menina lhe trazia; calcando-a aos pés cruzou os braços e esperou o cacique que avançava lentamente, terrível e ameaçador.

Chegando em face do prisioneiro, a fisionomia do velho esclareceu-se com um sorriso feroz, reflexo dessa embriaguez do sangue, que dilata as narinas do jaguar prestes a saltar sobre a presa.

— Sou teu matador! disse em guarani.

Peri não se admirou ouvindo a sua bela língua adulterada pelos sons roucos e guturais que saiam dos lábios do selvagem.

— Peri não te teme!

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