Mas podia ela, pobre selvagem, pressentir e mesmo compreender semelhante coisa? O que sabia era que Peri ia ser morto; que ela devia suavizar-lhe a última hora; e cumpria esse dever com um certo contentamento.
Peri sentindo os braços da menina cingirem seu colo, repeliu-a vivamente para longe de si; e voltando procurou ver por entre as folhas se descobria os preparativos que os Aimorés faziam para o sacrifício.
Tardava-lhe o momento supremo em que devia ser imolado à cólera e à vingança dos inimigos; sua altivez revoltava-se contra essa humilhação do cativeiro.
A índia continuava a olhá-lo tristemente, e sem compreender por que a repelia; ela era linda e desejada por todos os jovens guerreiros de sua tribo; seu pai, o velho cacique, tinha-a destinado para o mais valente prisioneiro, ou para o mais forte dos vencedores.
Depois de conservar-se muito tempo nesta posição, a menina adiantou-se de novo, tomou um vaso cheio de cauim, e apresentou-o a Peri sorrindo e quase suplicante.
Ao gesto de recusa que fez o índio, ela deitou o vaso no rio, e escolhendo sobre as folhas um cardo vermelho e doce como um favo de mel, estendeu a mão e tocou com o fruto a boca do prisioneiro.
Peri enjeitou o fruto como tinha enjeitado o vinho, e a virgem selvagem atirando-o por sua vez ao rio, aproximou-se e ofereceu ao prisioneiro seus lábios encarnados, ligeiramente distendidos como para receberem o beijo que pediam.
O índio fechou os olhos e pensou em sua senhora. Elevando-se até Cecília, seu pensamento desprendia-se do invólucro terrestre e adejava numa atmosfera pura e isenta da fascinação dos sentidos que escraviza o homem.
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Contudo Peri sentia o hálito ardente da menina que lhe requeimava as faces: entreabriu os olhos, e viu-a na mesma posição, esperando uma carícia, um afago daquele a quem a sua tribo mandara que amasse, e a quem ela já amava espontaneamente.
Na vida selvagem, tão próxima da natureza, onde a conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do coração, o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo, e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol.
Nos tempos de civilização, ao contrário, o sentimento torna-se planta exótica; que só vinga e floresce nas estufas, isto é, nos corações onde o sangue é vigoroso, e o fogo da paixão ardente e intenso.
Vendo Peri no meio do combate, só contra toda a sua tribo, a índia o admirara: contemplando-o depois quando prisioneiro, o achara mais belo do que todos os guerreiros.
Seu pai a destinara para esposa do inimigo que ia ser sacrificado; e portanto ela que começara por admirá-lo, acabava por desejá-lo, por amá-lo, algumas horas apenas depois que o tinha visto.
Mas Peri, frio e indiferente, não se comovia, nem aceitava essa afeição passageira e efêmera que tinha começado com o dia e devia acabar com ele; sua idéia fixa, a lembrança de seus amigos, o protegia contra a tentação.
Voltando as costas, levantou os olhos ao céu para evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua vista, como certas flores acompanham a rotação aparente do sol.
Entre a folhagem das árvores passava-se uma das cenas graciosas e singelas, que a cada momento no campo se oferecem à atenção daqueles que estudam a natureza nas suas pequenas criaturas.
Um casal de corrixos, que tinha feito o seu ninho num ramo, sentindo a habitação do homem e o fogo embaixo da árvore, mudava a sua pequena casa de palha e algodão.
Um desfazia com o bico o ninho, e o outro conduzia a palha para longe, para o lugar onde iam novamente fabricá-lo; quando acabaram este trabalho, acariciaram-se, e batendo as asas foram esconder o seu amor nalgum lindo retiro.
Peri se divertia em ver esse inocente idílio, quando a índia levantando-se de repente soltou um pequeno grito de alegria e de prazer, e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dois passarinhos que voavam um a par do outro sobre a cúpula da floresta.
Enquanto ele procurava compreender o que queria dizer este aceno, a virgem desapareceu, e voltou quase imediatamente trazendo um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco de guerra.
Aproximou-se do índio, soltou-lhe os laços que lhe ligavam os punhos, e partiu a muçurana que o prendia à árvore. Executou isto com uma extrema rapidez; e entregando a Peri o arco e as flechas, estendeu a mão na direção da floresta, mostrando-lhe o espaço que se abria diante deles.
Seus olhos e seu gesto falavam melhor do que a sua linguagem inculta, e exprimiam claramente o seu pensamento:
— Tu és livre. Partamos!
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QUARTA PARTE
A CATÁSTROFE
I ARREPENDIMENTO
Quando Loredano afastou-se de João Feio que o acabava de ameaçar, chamou quatro companheiros em que mais confiava, e retirou-se com eles para a despensa.
Fechou a porta a fim de interceptar a comunicação com os aventureiros e poder tranqüilamente tratar o negocio que tinha em mente.
Nesse curto instante havia feito uma modificação no seu plano da véspera: as palavras de ameaça há pouco proferidas lhe revelaram que o descontentamento começava a lavrar. Ora, o italiano não era homem que recuasse diante de um obstáculo e deixasse roubarem-lhe a esperança, que nutria desde tanto tempo.
Resolveu fazer as coisas rapidamente e executar naquele mesmo dia o seu intento: seis homens fortes e destemidos bastavam para levar ao cabo a empresa que projetara.
Tendo fechado a porta, guiou os quatro aventureiros à sala que tocava com o oratório e onde Martim Vaz continuava a sua obra de demolição, minando a parede que os separava da família.
— Amigos, disse o italiano, estamos numa posição desesperada; não temos força para resistir aos selvagens, e mais dia menos dia havemos de sucumbir.
Os aventureiros abaixaram a cabeça e não responderam; sabiam que aquela era a triste verdade.
— A morte que nos espera é horrível; serviremos de pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana; nossos corpos sem sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais!...
A expressão do horror se pintou na fisionomia daqueles homens, que sentiram um calafrio percorrer-lhes os membros e penetrar até à medula dos ossos.
Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz sobre esses rostos decompostos:
— Tenho porém um meio de salvar-vos.
— Qual? perguntaram todos a uma voz.