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Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras armava a clavina, e apoiava a boca na fronte do italiano.

— Ides morrer. Fazei a vossa oração.

Peri abaixou a faca; recuou um passo, e esperou.

O italiano não respondeu; a sua oração foi uma blasfêmia horrível e satânica; as palpitações violentas do coração batiam de encontro ao pergaminho que tinha no seio, e lembravam-lhe o seu tesouro que ia talvez cair nas mãos de Álvaro e dar-lhe a riqueza de que não pudera gozar.

Entretanto, na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez, o orgulho do crime; não suplicou, não disse uma palavra; sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte, fechou os olhos e julgou-se morto.

Álvaro olhou-o um instante, e abaixou a clavina:

— Tu és indigno de morrer à mão de um homem, e por uma arma de guerra; pertences ao pelourinho e ao carrasco. Seria um roubo feito à justiça de Deus.

Loredano abriu os olhos; seu rosto iluminou-se com um raio de esperança.

— Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D. Antônio de Mariz, e nunca mais porás o pé neste sertão; por tal preço tens a vida salva.

— Juro! exclamou o italiano.

O moço tirou o colar que deva três voltas sobre os ombros, e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Cristo que lhe pendia do peito; o aventureiro estendeu a mão, e repetiu o juramento.

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— Ergue-te; e tira-te dos meus olhos.

E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza, o cavalheiro desarmou a sua clavina; voltou-se para continuar o seu caminho fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse.

O índio, enquanto se passava a rápida cena que descrevemos, refletia profundamente.

Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus dois companheiros, quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de fazer mal à sua senhora e a D. Antônio de Mariz, a sua primeira idéia tinha sido lançar-se aos três inimigos e matá-los.

Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava a sua indignação; mas imediatamente lembrou-se que ele podia morrer, e que nesse caso Cecília não teria quem a defendesse. Pela primeira vez na sua vida teve medo; teve medo por sua senhora, e sentiu não possuir mil vidas para sacrificá-las todas à sua salvação.

Fugiu então com bastante rapidez para não ser visto pelo italiano que subia à árvore; afastou-se deles; chegando à beira do rio, lavou a sua túnica de algodão, que ficara manchada de sangue; não queria que soubessem que estava ferido.

Enquanto se entregava a este trabalho, combinava um plano de ação.

Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse, nem mesmo a D. Antônio de Mariz: duas razões o levavam a proceder assim; a primeira era o receio de não ser acreditado, pois não tinha provas com que pudesse justificar a acusação, que ele, índio ia fazer contra homens brancos; a segunda era a confiança que tinha de que ele só bastava para desfazer todas as tramas dos aventureiros, e lutar contra o italiano.

Assentado este primeiro ponto, passou à execução do plano; esta reduzia-se para ele em uma punição; aqueles três homens queriam matar, portanto deviam morrer, mas deviam morrer ao mesmo tempo, do mesmo golpe. Peri receava que, combinados como estavam, se um escapasse vendo sucumbir seus companheiros, se deixaria levar pelo desespero e anteciparia a realização do crime antes que ele o pudesse prevenir.

A sua inteligência sem cultura, mas brilhante como o sol de nossa terra, vigorosa como a vegetação deste solo, guiava-o nesse raciocínio com uma lógica e uma

prudência, dignas do homem civilizado; previa todas as hipóteses, combinava todas as probabilidades, e preparava-se para realizar o seu plano com a certeza e a energia de ação que ninguém possuía em grau tão elevado.

Assim dirigindo-se para a casa onde o chamava um outro dever, o de avisar a D.

Antônio da eventualidade de um ataque dos Aimorés, ele tinha passado junto de Bento Simões e Rui Soeiro, e guiado pelos olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o cavalheiro.

Correr, cair sobre o italiano, desviar a pontaria, e dobrá -lo sobre os joelhos, foi um movimento tão rápido que os dois aventureiros apenas o viram passar, viram ao mesmo tempo o seu companheiro subjugado.

A realização do projeto de Peri apresentava-se naturalmente, sem ser procurada.

Tinha o italiano na sua mão; depois dele caminhava aos dois aventureiros para os quais bastava a sua faca; e quando tudo estivesse consumado, iria ter com D.

Antônio de Mariz e lhe diria:

— Esses três homens vos traiam, matei-os; se fiz mal, puni-me.

A intervenção de Álvaro, cuja generosidade salvou a vida de Loredano, transtornou completamente esse plano; ignorando o motivo por que Peri ameaçava o aventureiro, julgando que era unicamente para puni-lo da tentativa que acabava de cometer perfidamente contra ele,

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o cavalheiro a quem repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade, satisfez-se com o juramento e a certeza de que deixaria a casa.

Enquanto isto se dava, Peri refletia na possibilidade de fazer as coisas voltarem à mesma posição; mas conheceu que não o conseguiria.

Álvaro tinha recebido de D. Antônio de Mariz todos os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV, os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós; o moço moldava todas as suas ações, todas as suas idéias, por aquele tipo de barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis, o rei cavalheiro.

Peri conhecia o caráter do moço; e sabia que depois de ter dado a vida a Loredano, embora o desprezasse, não consentiria que em presença dele lhe tocasse num cabelo; e se preciso fosse tiraria a sua espada para defender este homem, que acabava de tentar contra sua existência.

E o índio respeitava a Álvaro, não por sua causa, mas por Cecília a quem ele amava; qualquer desgraça que sucedesse ao cavalheiro tornaria a senhora triste; e isto bastava para que a pessoa do moço fosse sagrada, como tudo o que pertencia à menina, ou que era necessário ao seu descanso, ao seu sossego e felicidade.

O resultado dessa reflexão foi Peri meter a sua faca à cinta; e sem importar-se mais com o italiano, acompanhar o cavalheiro.

Ambos seguiram em direção da casa, caminhando ao longo da margem do rio.

— Obrigado ainda uma vez, Peri; não pela vida que me salvaste, mas pela estima que me tens. E o moço apertou a mão do selvagem.

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