— Não agradece; Peri nada te fez; quem te salvou foi a senhora.
Álvaro sorriu-se da franqueza do índio e corou da alusão que havia em suas palavras.
— Se tu morresses, a senhora havia de chorar; e Peri quer ver a senhora contente.
— Tu te enganas; Cecília é boa, e sentiria da mesma maneira o mal que sucedesse a mim, como a ti, ou a qualquer dos que está acostumada a ver
— Peri sabe por que fala assim; tem olhos que vêem, e ouvidos que ouvem; tu és para a senhora o sol que faz o jambo corado, e o sereno que abre a flor da noite.
— Peri!... exclamou Álvaro.
— Não te zanga, disse o índio com doçura; Peri te ama, porque tu fazes a senhora sorrir. A cana quando está à beira d’água, fica verde e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-ci. Tu és o rio; Peri é o vento que passa docemente, para não abafar o murmúrio da corrente; é o vento que curva as folhas até tocarem na água.
Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?
A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que produzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu.
Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o cedro gigante; quem no reino animal desce do tigre e do tapir, símbolos da ferocidade e da força, até o lindo beija-flor e o inseto dourado; quem olha este céu que passa do mais puro anil aos reflexos
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bronzeados que anunciam as grandes borrascas; quem viu, sob a verde pelúcia da relva esmaltada de flores que cobre as nossas várzeas deslizar mil répteis que levam a morte num átomo de veneno, compreende o que Álvaro sentiu.
Com efeito, o que exprime essa cadeia que liga os dois extremos de tudo o que constitui a vida? Que quer dizer a força no ápice do poder aliada à fraqueza em todo o seu mimo; a beleza e a graça sucedendo aos dramas terríveis e aos monstros repulsivos; a morte horrível a par da vida brilhante?
Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta?
Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.
Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza fez sorrindo.
A sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio que se despenha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, outras desce e rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa.
Eis o que a decoração da cena majestosa, no meio da qual se achava, à beira do Paquequer, disse a Álvaro, mas rapidamente, por uma dessas impressões que se projetam no espírito como a luz no espaço.
O moço recebeu a confissão ingênua do índio sem o mínimo sentimento hostil; ao contrário apreciava a dedicação que o selvagem tinha por Cecília, e ia ao ponto de amar a tudo quanto sua senhora estimava.
— Assim, disse Álvaro sorrindo, tu só me amas por que pensas que Cecília me quer? disse o moço.
— Peri só ama o que a senhora ama; porque só ama a senhora neste mundo: por ela deixou sua mãe, seus irmãos e a terra onde nasceu.
— Mas se Cecília não me quisesse como julgas?
— Peri faria o mesmo que o dia com a noite; passaria sem te ver.
— E se eu não amasse a Cecília?
— Impossível!
— Quem sabe? disse o moço sorrindo.
— Se a senhora ficasse triste por ti!... exclamou o índio cuja pupila irradiou.
— Sim? o que farias?
— Peri te mataria.
A firmeza com que eram ditas estas palavras não deixava a menor duvida sobre a sua realidade; entretanto Álvaro apertou a mão do índio com efusão.
Peri temeu ofender o moço; para desculpar a sua franqueza, disse-lhe com um tom comovido:
— Escuta, Peri é filho do sol; e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o céu; e não levantava a vista, se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci.
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— Compreendo-te, amigo; votaste a tua vida inteira à felicidade dessa menina.
Não receies que te ofenda nunca na pessoa dela. Sabes se eu a amo; e não te zangues, Peri, se disser que a tua dedicação não é maior do que a minha. Antes que me matasses, creio que me mataria a mim mesmo se tivera a desgraça de fazer Cecília infeliz.
— Tu és bom; Peri quer que a senhora te ame.
O índio contou então a Álvaro o que se tinha passado na noite antecedente; o moço empalideceu de cólera, e quis voltar em busca do italiano; desta vez não lhe perdoara.
— Deixa! disse o índio Ceci teria medo; Peri vai endireitar isto.
Os dois tinham chegado perto da casa e iam entrar a cerca do vale, quando Peri segurou o braço de Álvaro:
— O inimigo da casa quer fazer mal; defende a senhora; se Peri morrer, manda dizer à sua mãe, e veras todos os guerreiros da tribo chegarem para combaterem contigo, e salvarem Ceci.