O movimento foi tão rápido, que a palavra soou ao mesmo tempo que a ponta da lamina de aço batendo na face do italiano.
Loredano quis evitar o insulto, mas não era tempo; seus olhos injetaram-se de sangue:
— Sr. cavalheiro, deveis-me satisfação do insulto que me acabais de fazer.
— É justo, respondeu Álvaro com dignidade; mas não à espada que é a arma do cavalheiro; tirai o vosso punhal de bandido, e defendei-vos.
Proferindo estas palavras, o moço embainhou a espada com toda a calma, segurou-a à cinta para não embaraçar-lhe os movimentos e sacou o seu punhal, excelente folha de Damasco.
Os dois inimigos marcharam um para o outro, e lançaram-se; o italiano era ágil e forte, e defendia-se com suma destreza; por duas vezes já, o punhal de Álvaro, roçando-lhe o pescoço, tinha cortado o talho de seu gibão de belbute.
De repente Loredano, fincando os pés, deu um pulo para trás, e ergueu a mão esquerda em sinal de trégua.
— Estais satisfeito? perguntou Álvaro.
— Não, sr. cavalheiro; mas penso que em vez de nos estarmos aqui a fatigar inutilmente, melhor seria tomarmos um meio mais expedito.
— Escolhei o que quiserdes, menos a espada; o mais me é indiferente.
— Outra coisa ainda: se nos batermos aqui, podemos incomodar-nos reciprocamente; porque pretendo matar-vos, e creio que o mesmo desejo tendes a meu respeito. Ora é preciso que desapareça o que ficar e o outro não leve um vestígio que o possa denunciar.
— Que quereis fazer neste caso?
— O rio está aqui perto, tendes a vossa clavina; colocar-nos-emos cada um sobre uma ponta do rochedo; aquele que cair morto ou simplesmente ferido, pertencerá ao rio e à cachoeira; não incomodará o outro.
— Tendes razão, é melhor assim; eu me envergonharia se D. Antônio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade.
— Sigamos, sr. cavalheiro; nós nos odiamos bastante para não gastarmos tempo em palavras. Ambos tomaram na direção do rio, cujo estrépito ouvia-se distintamente.
Álvaro, valente e corajoso, desprezava muito o seu inimigo para ter o menor receio dele; demais a sua alma nobre e leal, incapaz da mais pequena vilania, não pensava na traição. Nunca podia lembrar-lhe que um homem que o viera provocar e ia medir-se com ele num combate franco, levasse a infâmia a ponto de querer feri-lo pelas costas.
Assim, continuou a caminhar, quando o italiano, deixando cair de propósito a cinta da espada, parou um instante para apanhá-la e prendê-la de novo.
O que passava então no seu espírito não estava de acordo com as idéias nobres do cavalheiro; vendo o moço adiantar-se, disse consigo: Página 90
— Preciso da vida desse homem, eu a tenho! Seria uma loucura deixá-la escapar, e pôr a minha em risco. Um duelo neste deserto, sem testemunhas, é um combate em que a vitória pertence ao mais esperto.
Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina com toda a cautela, e seguia de longe a Álvaro, a fim de que o ranger do ferro ou o silêncio de suas pisadas não excitassem a atenção do moço.
Álvaro caminhava tranqüilamente; seu pensamento estava bem longe dele, e esvoaçava em torno da imagem de Cecília, junto da qual via os grandes olhos negros e aveludados de Isabel embebidos numa languidez melancólica; era a primeira vez que aquele rosto moreno e aquela beleza ardente e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro dos seus amores.
Donde provinha isto? O moço não sabia explicar; mas um quer que seja, como um pressentimento, lhe dizia que naquela cena da janela havia entre as duas moças um segredo, uma confidência, uma revelação, e que esse segredo era ele.
Assim, quando a morte se aproximava, quando já o bafejava e ia tocá-lo, ele descuidoso e pensativo repassava no pensamento idéias de amor, e alimentava-se de esperanças. Não se lembrava de morrer; tinha consciência de si e fé em Deus; mas se por acaso uma fatalidade caísse sobre ele, consolava-o a idéia de que Cecília, ofendida, lhe perdoaria um resto de ressentimento que talvez conservasse.
Nisto meteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim que a moça lhe dera, e que já tinha murchado ao contato dos seus lábios ardentes; ia beijá-lo ainda uma vez, quando lembrou-se que o italiano podia vê-lo.
Mas não ouviu os passos do aventureiro; a primeira idéia que lhe veio foi que ele tinha fugido; e como a cobardia para as almas grandes se associa à baixeza, lembrou-se de uma traição.
Quis voltar-se, e entretanto não o fez. Mostrar que tinha medo daquele miserável revoltava os seus brios de cavalheiro; ergueu a cabeça com altivez e seguiu.
Mal sabia ele que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro caia, e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano.
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VI NOBREZA
Álvaro ouviu um sibilo agudo.
A bala rogando pela aba rebatida de seu chapéu de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro.
O moço voltou-se calmo, sereno, impassível; nem um músculo de seu rosto agitou-se; apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o lábio superior, sombreado pelo bigode negro.
O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos causou-lhe uma surpresa extraordinária: não esperava decerto ver o que se passava a dez passos dele.
Peri mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organização de aço, com a mão esquerda segura à nuca de Loredano, curvava-o sob a pressão violenta, e obrigava-o a ajoelhar.
O italiano lívido, com o rosto contraído e os olhos imensamente dilatados, tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante.
O índio arrancou-a, e sacando a longa faca, levantou o braço para cravá-la no alto da cabeça do italiano.
Mas Álvaro tinha-se adiantado e aparou o golpe; depois estendeu a mão ao índio
— Solta este miserável, Peri!
— Não!
— A vida deste homem me pertence; atirou sobre mim; é a minha vez de atirar sobre ele.