Sem dúvida, o caso de Saramago é um desses pensadores que anteveem o que viveremos: além de saber olhar para o futuro e compreender para onde caminhávamos, ele fez um apanhado belo e certeiro do passado. Ensaio sobre a cegueira é um romance no qual se pode observar, sob uma lente altamente crítica e nem um pouco otimista, o ser humano em sua essência, no que temos de pior, mas também de melhor. Tudo isso através das relações sociais que estabelecemos, através de nosso comportamento em grupo e da maneira como nos protegemos da morte, como nos relacionamos com ela. Ao mesmo tempo que o romance nos dá a ver nossas características mais animalescas e brutais, também deixa evidente que, diante da nossa fragilidade individual, a única resposta possível reside em nos unirmos, nem que seja para lutar contra o irreversível peso da morte. Talvez esse olho português tão crítico tenha escrito esse livro como um chamado à consciência. Será que soubemos ou saberemos escutá-lo?
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Amplitude da cegueira: relação entre o romancee outras áreas do conhecimento
Diante da amplitude temática desse romance, abordá-lo em sala de aula permite o diálogo com diversas outras áreas do conhecimento, como a antropologia e a sociologia, o que fica evidente pela complexidade da narrativa e por suas articulações com a história da humanidade. Além disso, a obra também aponta para caminhos que nos permitem repensar a cidadania como um tema contemporâneo urgente, pois deixa evidente os contratos sociais presentes na formação das relações entre os homens e seus grupos, e revela a que servem e quais são suas origens.
A atualidade de Ensaio sobre a cegueira deve-se, claro, ao trabalho do autor que o escreveu, mas não devemos nos esquecer que o livro é recente: sua primeira publicação data de 1995, de forma que não está tão distante de nós. Assim como muitos países do mundo, incluindo o Brasil, Portugal pas-sou, no século xx — mais especificamente de 1933 a 1974 —, por um período de ditadura militar, chamado de Estado Novo. Sem dúvida alguma, essa vivência o influenciou muito, na medida em que ocupou metade da vida de José Saramago, que viveu entre 1922 e 2010. No caso do romance em questão, percebemos como o autoritarismo e a crueldade imperam nas dinâmicas relacionais que se desenvolvem ali. Como veremos adiante, a violência, que tem um peso muito grande nesse livro e é descrita de maneira bastante explícita, está presente como uma forma de dominação de alguns grupos. É impossível não relacionar essas estratégias de violência como dominação com o período salazarista em Portugal, assim chamado em referência a António de Oliveira Salazar (1889-1970), ditador e líder do regime.
Em relação às opressões de seu país, não foi apenas como escritor que José Saramago se manifestou, mas também de maneira mais incisiva e ativa, no jornalismo. Após a Revolução dos Cravos, que depôs em 1974 o regime salazarista, Saramago ingressou na direção do Diário de Notícias, um dos principais jornais de Lisboa na época, e declarou que pretendia usar seu posto como ferramenta política para a construção do socialismo.
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Sobre a atuação de Saramago como “jornalista revolucionário”, ver o texto “Quando Saramago exigia ‘violência revolucionária’”: https://
www.dn.pt/arquivo/2005/quando-saramago-exigia-violencia-
revolucionaria-620488.html. Acesso em: 28 out. 2020.
Estamos falando de um homem multifacetado, que exerceu, durante seus 87 anos de vida, diversas funções e profissões. Tendo nascido em 1922, numa família de camponeses do Ribantejo, foi também serralheiro, desenhis-ta, funcionário público e editor. Talvez seu profundo conhecimento do mundo e da alma humana possam ter vindo daí, de suas múltiplas relações e de sua experiência em diversas áreas do conhecimento.
Relevância literária do autor e da obra
No romance sobre o qual falaremos neste material, as personagens, depois de serem acometidas por uma cegueira branca, descrita como um “mar de leite”, são forçosamente isoladas em um manicômio desativado, pois esse mal teria características endêmicas e atingiria rapidamente quem se aproxi-masse de alguém contaminado. A princípio, vemos só alguns poucos cegos presos numa quarentena extremamente rigorosa e relegados a condições animalescas. Porém, há nesse local uma variada seleção de seres humanos, advin-dos das mais diferentes profissões e realidades, todos completamente cegos.
Apesar da diversidade de personagens, acompanhamos uma delas de maneira mais próxima, por meio da narração — a única que, surpreendente-mente, não se contamina e consegue ver. Não sabemos como se chama, pois Saramago não dá nomes próprios a nenhuma das personagens nesse romance, mas ela é chamada “a mulher do médico”. Seu marido, oftalmologista, foi um dos primeiros a perder a visão, ao tentar tratar do primeiro homem que havia cegado; desse modo, o casal é colocado em quarentena logo no início da epidemia. A mulher do médico é a protagonista dessa história, junto de seu marido, e também uma das personagens mais interessantes e complexas da história da literatura. Dotada de um senso ético e uma moral impressionantes, acompanha seu marido de forma voluntária e atua de maneira ir-9
repreensível nessa jornada na qual ela mesma é o único norte na brancura luminosa à qual estão relegados os pobres homens.
Em termos formais, a construção das personagens é uma característica impressionante do escritor português. Ele traça perfis humanos altamente complexos sem precisar de muitas adjetivações e através das ações — e mesmo essas ações, que servem como traço para compreender as personagens, não são óbvias nem previsíveis, mas surpreendentes. Como leitores, ficamos a todo momento tentando entender o que leva uma ou outra personagem a agir daquela maneira.
Saramago nos chama à reflexão, cutuca nossa ética pessoal e nossos valores, nos interroga e nos faz pensar: o que faríamos no lugar daquelas pessoas? Ele faz isso não apenas pela complexidade das figuras, mas também por meio de seu narrador, outra instância muito interessante do romance e que pode ser tematizada em sala de aula, por ser surpreendente.
A relevância literária do narrador desse romance se mescla à manipulação altamente ardilosa que o escritor faz da pontuação. Sem indicar com travessões ou aspas as falas das personagens, e sem esclarecer sempre de quem é a fala que estamos lendo, Saramago mistura a voz do narrador com a das personagens, de uma maneira impressionante e fluida. Há vezes em que de fato não sabemos até que ponto o narrador interfere e opina na história e até que ponto está apenas repercutindo o pensamento de alguma personagem. Veremos com mais detalhamento essas estratégias durante a apresentação das atividades e também na análise estética aprofundada.
Essas características formais tão complexas localizam Saramago ao lado de grandes escritores mundiais contemporâneos a ele, como o israelense Amós Oz (1939-2018), e também deixam evidente sua influência em escritores da geração seguinte, como o também português Valter Hugo Mãe (1971).
A manipulação maestral da pontuação, por exemplo, é uma característica da produção de Saramago conhecida por todos os amantes da literatura, de modo que estamos falando de alguém que deixou sua marca no mundo, im-primiu um estilo próprio em sua obra e fez-se notar não só pela autenticidade formal, mas também pela enorme relevância dos temas tratados. Assim, não podemos deixá-lo de fora dos currículos do Novo Ensino Médio brasileiro, ainda mais tendo a chance de lê-lo no original.
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Propostas de atividades I:
O livro e as aulas de língua
portuguesa
Nas páginas seguintes, você encontrará sugestões de atividades para trabalhar Ensaio sobre a cegueira com os estudantes do Novo Ensino Médio.
Esta parte do material foi dividida em pré-leitura, que sugere o que fazer antes da primeira leitura do livro; leitura, que apresenta encaminhamentos dentro e fora da sala de aula, para acompanhar a apreciação do livro; por fim, pós-
-leitura, parte na qual você encontrará propostas de finalização e expansão da experiência com o escritor José Saramago. Em cada uma dessas partes haverá mais de uma possibilidade de encaminhamento da(s) atividades(s), de modo que o leque de trabalho esteja aberto; logo, não é necessário realizar todas as propostas com seus estudantes. Procure, claro, contemplar esses três momentos da relação com o livro, dando prioridade para o meio, isto é, o processo de leitura. Selecione as propostas que mais se adequam à realidade e ao contexto no qual a sua escola está inserida, pensando inclusive em como fazer adaptações para tornar o material mais acessível, inclusivo e coerente com as turmas.
Por tratar-se de um romance longo, será preciso escolher momentos para leitura compartilhada em sala e separar trechos a serem lidos de forma autônoma pelos estudantes, em casa.
Leitura colaborativa [ou compartilhada] é uma atividade de leitura cuja finalidade é estudar um determinado texto em colaboração com outros leitores e com mediação do professor. O foco do trabalho é o processo de leitura — e todos os seus conteúdos específicos —, e não o produto desse processo, como acontece em uma atividade de leitura silenciosa com questões para serem respondidas por escrito
— que permite apenas a verificação do que o aluno compreendeu do texto, ao invés de ensiná-lo como se faz para ler. (bräkling, s. d.) 11
Não se recomenda a leitura integral em casa. E, mesmo nos casos em que a maior parte do livro for lida em casa, também é importante garantir diversos momentos de discussão com os colegas e o professor, não só pela complexidade da narrativa, mas também porque essa leitura pode ser uma experiência altamente angustiante, conforme foi exposto na parte introdutó-ria deste material.
Antes de começar qualquer aproximação com a obra, sugerimos que o docente verifique se há deficientes visuais na turma ou na família dos estudantes. Uma vez que nesse livro há o tempo inteiro referências à deficiência visual, e nem sempre de uma maneira delicada, é preciso tematizar o fato de que a cegueira que aparece nesse contexto é metafórica — é a cegueira de todos nós, de toda a humanidade, e não a deficiência física que acomete apenas alguns. É preciso tematizar esse assunto para não nos prendermos à noção de que são equivalentes, a cegueira física e a metafórica, e para não ofender aqueles que carecem da visão.
Além disso, essa leitura pode ser uma excelente oportunidade de co-locar os eventuais estudantes com deficiência visual no lugar de protagonistas, por serem os únicos a ter alguma experiência para compartilhar com os outros sobre esse tema. De alguma maneira, eles serão os especialistas no assunto, então cabe ao professor valorizar o conhecimento deles, que às vezes pode ficar marginalizado das discussões em sala de aula. Seja como for, o imprescindível será escutá-los durante a leitura do romance.
Pré-leitura
CON T E X T UA LIZ AÇ Ã O DA OBR A : DIS TOPI A S
A leitura da obra Ensaio sobre a cegueira não requer do docente tanta contextualização prévia e pode até mesmo prescindir dela, uma vez que se trata de uma narrativa ficcional, que não ancora seus eventos e seus personagens em nenhum contexto histórico ou geográfico muito específico. Pelo contrário, o romance se passa em um mundo ficcional distópico, imaginário.
Como reflexão prévia, vale, no entanto, uma pequena apresentação sobre o fenômeno das distopias na literatura do século xx. Não há necessidade 12
de estender-se muito nesse assunto antes de começar o livro, pois ele pode ser retomado tanto no meio como no fim da leitura. Ainda assim, é interessante passar por esse assunto em algum momento, dada a impressionante quantidade de livros e filmes distópicos sendo produzidos nos últimos tempos.
Deve ter algum motivo que nos leve a reproduzir tantos mundos distópicos, e essa tendência no universo literário é inclusive encarada por alguns como uma “febre”. Pode haver nesse sentido algum diálogo com a sociologia e a filosofia para compreender esse contexto, na medida em que, para compreender o fenômeno, é preciso levar em consideração os desastres naturais que estamos vivendo, o esgotamento de recursos naturais, o avanço da tecnologia como força quase autônoma ao homem, o surgimento de novos vírus, a iminência de epidemias e pandemias. Todos esses elementos reunidos apon-tam para um possível fim do mundo que bate à nossa porta diariamente: está na mídia, nas catástrofes, na pandemia de covid-19, no aumento da tempe-ratura... E os jovens sabem disso. Há quem inclusive enxergue essa literatura como uma forma radical de análise dos nossos tempos. E por que não como denúncia também? Como problematização dos rumos da humanidade, como chamada à consciência e ao espelho?
O romance distópico pode então ser compreendido enquanto aviso de in-cêndio, o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar a atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos, embora já em curso, sejam inibidos. (hiláriO, 2013, p. 202) Como exemplo desse tipo de literatura, o docente pode usar livros como: