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Propostas de atividades I:
O livro e as aulas de língua
portuguesa
Nas páginas seguintes, você encontrará sugestões de atividades para trabalhar Ensaio sobre a cegueira com os estudantes do Novo Ensino Médio.
Esta parte do material foi dividida em pré-leitura, que sugere o que fazer antes da primeira leitura do livro; leitura, que apresenta encaminhamentos dentro e fora da sala de aula, para acompanhar a apreciação do livro; por fim, pós-
-leitura, parte na qual você encontrará propostas de finalização e expansão da experiência com o escritor José Saramago. Em cada uma dessas partes haverá mais de uma possibilidade de encaminhamento da(s) atividades(s), de modo que o leque de trabalho esteja aberto; logo, não é necessário realizar todas as propostas com seus estudantes. Procure, claro, contemplar esses três momentos da relação com o livro, dando prioridade para o meio, isto é, o processo de leitura. Selecione as propostas que mais se adequam à realidade e ao contexto no qual a sua escola está inserida, pensando inclusive em como fazer adaptações para tornar o material mais acessível, inclusivo e coerente com as turmas.
Por tratar-se de um romance longo, será preciso escolher momentos para leitura compartilhada em sala e separar trechos a serem lidos de forma autônoma pelos estudantes, em casa.
Leitura colaborativa [ou compartilhada] é uma atividade de leitura cuja finalidade é estudar um determinado texto em colaboração com outros leitores e com mediação do professor. O foco do trabalho é o processo de leitura — e todos os seus conteúdos específicos —, e não o produto desse processo, como acontece em uma atividade de leitura silenciosa com questões para serem respondidas por escrito
— que permite apenas a verificação do que o aluno compreendeu do texto, ao invés de ensiná-lo como se faz para ler. (bräkling, s. d.) 11
Não se recomenda a leitura integral em casa. E, mesmo nos casos em que a maior parte do livro for lida em casa, também é importante garantir diversos momentos de discussão com os colegas e o professor, não só pela complexidade da narrativa, mas também porque essa leitura pode ser uma experiência altamente angustiante, conforme foi exposto na parte introdutó-ria deste material.
Antes de começar qualquer aproximação com a obra, sugerimos que o docente verifique se há deficientes visuais na turma ou na família dos estudantes. Uma vez que nesse livro há o tempo inteiro referências à deficiência visual, e nem sempre de uma maneira delicada, é preciso tematizar o fato de que a cegueira que aparece nesse contexto é metafórica — é a cegueira de todos nós, de toda a humanidade, e não a deficiência física que acomete apenas alguns. É preciso tematizar esse assunto para não nos prendermos à noção de que são equivalentes, a cegueira física e a metafórica, e para não ofender aqueles que carecem da visão.
Além disso, essa leitura pode ser uma excelente oportunidade de co-locar os eventuais estudantes com deficiência visual no lugar de protagonistas, por serem os únicos a ter alguma experiência para compartilhar com os outros sobre esse tema. De alguma maneira, eles serão os especialistas no assunto, então cabe ao professor valorizar o conhecimento deles, que às vezes pode ficar marginalizado das discussões em sala de aula. Seja como for, o imprescindível será escutá-los durante a leitura do romance.
Pré-leitura
CON T E X T UA LIZ AÇ Ã O DA OBR A : DIS TOPI A S
A leitura da obra Ensaio sobre a cegueira não requer do docente tanta contextualização prévia e pode até mesmo prescindir dela, uma vez que se trata de uma narrativa ficcional, que não ancora seus eventos e seus personagens em nenhum contexto histórico ou geográfico muito específico. Pelo contrário, o romance se passa em um mundo ficcional distópico, imaginário.
Como reflexão prévia, vale, no entanto, uma pequena apresentação sobre o fenômeno das distopias na literatura do século xx. Não há necessidade 12
de estender-se muito nesse assunto antes de começar o livro, pois ele pode ser retomado tanto no meio como no fim da leitura. Ainda assim, é interessante passar por esse assunto em algum momento, dada a impressionante quantidade de livros e filmes distópicos sendo produzidos nos últimos tempos.
Deve ter algum motivo que nos leve a reproduzir tantos mundos distópicos, e essa tendência no universo literário é inclusive encarada por alguns como uma “febre”. Pode haver nesse sentido algum diálogo com a sociologia e a filosofia para compreender esse contexto, na medida em que, para compreender o fenômeno, é preciso levar em consideração os desastres naturais que estamos vivendo, o esgotamento de recursos naturais, o avanço da tecnologia como força quase autônoma ao homem, o surgimento de novos vírus, a iminência de epidemias e pandemias. Todos esses elementos reunidos apon-tam para um possível fim do mundo que bate à nossa porta diariamente: está na mídia, nas catástrofes, na pandemia de covid-19, no aumento da tempe-ratura... E os jovens sabem disso. Há quem inclusive enxergue essa literatura como uma forma radical de análise dos nossos tempos. E por que não como denúncia também? Como problematização dos rumos da humanidade, como chamada à consciência e ao espelho?
O romance distópico pode então ser compreendido enquanto aviso de in-cêndio, o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar a atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos, embora já em curso, sejam inibidos. (hiláriO, 2013, p. 202) Como exemplo desse tipo de literatura, o docente pode usar livros como:
• Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley;
• 1984 (1949), de George Orwell;
• Farenheit 451 (1953), de Ray Bradbury;
• Jogos Vorazes (2008), de Suzanne Collins.
Provavelmente o último é o mais conhecido entre os adolescentes.
Ao explorar esses exemplos, os estudantes talvez percebam que Ensaio so-13
bre a cegueira tem várias semelhanças com esses mundos distópicos, mas também diferenças. Contextualizar a obra tendo em vista seus pares literários relaciona-se com a seguinte habilidade da Base Nacional Comum Curricular (bncc):
(EM13LP01) relacionar o texto, tanto na produção como na leitura/
escuta, com suas condições de produção e seu contexto sócio-histórico de circulação (leitor/audiência previstos, objetivos, pontos de vista e perspectivas, papel social do autor, época, gênero do discurso etc.), de forma a ampliar as possibilidades de construção de sentidos e de análise crítica e produzir textos adequados a diferentes situações.
No contexto dessa comparação com outras obras, é comum as distopias terem uma ancoragem muito grande no mundo tecnológico, mas no caso do livro de Saramago ocorre o contrário: não há celulares, os relógios para nada servem e nem funcionam, mal se escuta falar sobre telefones e não há menções a computadores. É evidente que talvez não se percebam essas características logo de cara, muito menos antes da leitura, mas vale nessa aula de apresentação ao livro estimulá-los a terem em vista esse contexto da produção distópica durante a leitura. Além, claro, de retomar essa discussão depois.
E NS A IO PA R A O E NS A IO S OBR E A C EGU E IR A Como forma de sensibilizar os estudantes para o livro, propõe-se que se faça uma espécie de ensaio para o Ensaio sobre a cegueira. Em primeiro lugar, será uma boa oportunidade para indagar-se sobre o título, perguntar aos estudantes por que Saramago chama essa obra de ensaio. Será que esse livro está nos preparando para algo, fazendo-nos ensaiar? Ou será que o sentido se refere ao gênero textual ensaio? Vale a pena levantar uma série de hipóteses e voltar a elas no fim da leitura, de preferência anotá-las em algum cartaz que fique visível a todos ou em algum documento.
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A partir daí, pode-se perguntar o que os estudantes acreditam que fa-riam se ficassem privados de visão de uma hora para a outra. Nesse momento, é importante tomar cuidado com a discussão, sobretudo se houver algum deficiente visual entre os estudantes ou entre os familiares deles.
Sugere-se que primeiro eles pensem individualmente e depois discu-tam com a classe toda ou em grupos. Por fim, cabe anotar as respostas em um documento que fique guardado até o final da leitura, para que essas anotações possam ser retomadas ao longo da leitura.
Em seguida, pode-se instigá-los perguntando o que acham que acon-teceria com a humanidade se, repentinamente, ficássemos todos cegos. Cha-má-los para suposições é uma maneira de implicá-los na leitura, trazer suas subjetividades para o tema. Sem dúvida Saramago fará isso muito bem com suas palavras quando eles começarem a ler o romance, mas sempre é válida uma sensibilização para todo tipo de leitura escolar, já que não se trata de uma escolha — ler ou não esse livro. Leitura
LE IT U R A DO PRIM E IRO C A P Í T U LO
Recomenda-se a leitura integral do primeiro capítulo em sala, porque ele traz tematizações bastante importantes que reaparecerão ao longo da narrativa, comportando-se como um microcosmo do livro.
Tudo começa com o primeiro homem que cega. Ele está ao volante, parado no farol vermelho, esperando abrir, e então é acometido pela cegueira branca. Alguém tem de socorrê-lo e levá-lo para casa. O sujeito que o levou pergunta se ele quer companhia em sua casa, até que alguém chegue, porém ele dispensa o homem, com medo do que o homem pode fazer ali, sem que ele possa ver. O homem então vai embora e ele permanece esperando sua esposa.
Quando ela chega, o casal então decide procurar um médico. No momento em que se dirigem ao consultório, percebem que o tão solícito homem que o levou até em casa acabou por roubar-lhe o carro. O oftalmologista pelo qual passam terá um papel muito importante nessa história.
Apenas nesse breve capítulo, há uma série de elementos a serem te-15
matizados. Será necessário, provavelmente, escolher quais discussões serão desenvolvidas, e a seguir são sugeridas algumas questões emblemáticas: Vulnerabilidade do corpo e a necessidade do outro: Na vida que levamos, principalmente nos centros urbanos, dificilmente nos damos conta do quanto nosso corpo é vulnerável e fraco. Contamos com pessoas que, desde o nascimento, nos ajudam a viver mais e melhor. Há, muitas vezes, quem cozinhe nossa comida, nos ajude a ver melhor, nos ensine a ler e escrever, costure nossas roupas, cuide de nossas enfermidades etc. Da forma como essa interdependência está internalizada em nossa vida cotidia-na, nem nos damos conta do quanto dependemos do outro e do quanto as formações sociais nos são úteis. No primeiro capítulo de Ensaio sobre a cegueira, a partir do momento que o primeiro cego deixa de ver, instanta-neamente precisa de pessoas dotadas de visão para ajudar-lhe, e também precisará da mulher para levar-lhe ao médico, mesmo que essa visita não adiante nada. A vulnerabilidade do corpo e a dependência dos outros apa-recerá de modo muito forte do começo ao fim da narrativa, então cabe logo ressaltar essa dinâmica para ajudar os estudantes a continuarem a leitura sozinhos, se for o caso.
A vileza humana: Aproveitando-se da fraqueza alheia, o homem que ajudou o primeiro cego acaba roubando-lhe o carro... A ocasião, nesse caso, fez o ladrão. Ainda nesse capítulo não fica tão claro se ele de fato roubou o carro ou estacionou em qualquer lugar fora do alcance, mas no seguinte isso será esclarecido. Assim, é um momento bem interessante para tratar da ética e da moral humanas, discussão tão presente no livro. Será que de fato nós nos aproveitamos dos outros quando nos é dada a chance? Somos todos passí-veis de enganar, ou fazemos isso apenas por medo de sermos pegos? A visão de Saramago quanto a isso parece que vai ficando clara durante o romance: quando são trancados no manicômio desativado, muitos se aproveitam dos outros de maneira completamente maldosa, com requintes de sadismo. Veremos que há estupros, mortes e outros comportamentos terríveis por parte dos cegos em quarentena; no entanto, outros se mantêm fiéis a uma moral que subverte o contexto degradante no qual estão inseridos, como a mulher do médico, a protagonista do livro.
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Brancura da cegueira: Uma das características mais interessantes da cegueira desse romance é o fato de ser inexplicavelmente branca. Contra-riando nossas expectativas, o que esses cegos veem é um mar de leite. Não foi à toa que Saramago teria escolhido tal conformação. Desse modo, vale tematizar mais de uma vez essa característica. A clareza e a brancura se dão a ver na presença de luz, então, não é de todo estranho pensar nessa cegueira como um excesso de luz. Se considerarmos o que a iluminação ou a luz trazem em si de concepções e simbologias, podemos imaginar que esse excesso de luz possa também significar um excesso de razão. Tendo em vista a história mundial no século xx, é plausível que haja uma perspectiva, por parte de Saramago e expressa em sua obra, de que a razão possa se tornar tóxica, se for tomada como positivismo, por exemplo. Seja como for, é bastante importante nesse começo já perguntar aos estudantes o que eles têm a dizer sobre isso, se imaginam o motivo de essa cegueira ser branca. Tais especulações já os trarão para a dimensão alegórica da obra.
Aspectos formais: É possível, já nesse começo, perceber a presença de um narrador intruso, onisciente, que narra e também parece participar da narrativa. Além disso, percebe-se a pontuação típica de Saramago, com períodos longuíssimos e muitas vírgulas. Além, é claro, da forma inusitada como ele desenvolve os diálogos, com muita fluidez e poucos pontos finais.
Durante o desenrolar da narrativa será possível notar como isso influencia o texto de maneira mais clara, mas é importante destacar essas características no começo da leitura.
Essas são apenas algumas perspectivas sobre o livro, e o mais importante aqui é deixar os estudantes falarem, dizerem como veem esse primeiro capítulo, se percebem as temáticas elencadas e o que pensam sobre elas. Não é interessante confirmar ou negar nenhuma das hipóteses que eles tenham acerca do livro, pois a própria narrativa lhes apontará se as hipóteses se con-firmam, e dessa forma o professor deixa que eles mesmos cheguem a conclu-sões. Tampouco é preciso passar por todos esses pontos, pode-se priorizar os que aparecerem nas falas.
Tanto esse momento de leitura e discussão como os outros que ainda virão se relacionam à seguinte habilidade da bncc do Novo Ensino Médio: 17
(EM13LP46) Compartilhar sentidos construídos na leitura/escuta de textos literários, percebendo diferenças e eventuais tensões entre as formas pessoais e as coletivas de apreensão desses textos, para exercitar o diálogo cultural e aguçar a perspectiva crítica.
É fundamental, no processo de aprendizagem, proporcionar aos estudantes esses momentos de fala e escuta do outro, envolvendo inclusive as tensões que esse encontro com outras subjetividades pode proporcionar: Compartilhar as obras com outras pessoas é importante porque torna possível beneficiar-se da competência dos outros para construir o sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa se sinta parte de uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades mútuas. (COlOmer, 2007, p. 143)