"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Ensaio sobre a cegueira'' - de José Saramago

Add to favorite ,,Ensaio sobre a cegueira'' - de José Saramago

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Ensaio sobre a cegueira é um livro que estimula a pensar sobre a condição feminina e a construção desse gênero na literatura e na sociedade. Em parceria com o componente curricular de Sociologia, é possível aprofundar-se nessas questões.

Em primeiro lugar, a principal personagem e a mais complexa de todo o romance é uma mulher intrigante e única que, em meio a uma epidemia de cegueira, não fica cega, mantendo-se imunizada em relação a esse mal que afeta todos. Diante dessa informação, nos perguntamos: Será que seu gênero teria algo a ver com isso? O que faz essa mulher — que abdica de si mesma para cuidar do marido, que ajuda a todos o tempo inteiro e tem uma ética pessoal inabalável — a não cegar? Seriam suas qualidades morais?

Por um lado, poderíamos pensá-la como alguém que cuida dos outros e que, dessa forma, atua em um papel muitas vezes atribuído a mulheres, o de cuidadora, assim são as babás, as faxineiras, as professoras, as mães, as enfermeiras. Ou pelo menos é assim que a sociedade as vê. Essa característica altruísta talvez a colocasse numa posição um tanto estereotipada; no entanto, trata-se de um cuidado ativo, repleto de inteligência e coragem. Quando é preciso ser violenta e matar, ela o faz, e age de maneira extremamente perspi-caz e planejada, em alguma medida até fria. Portanto, não é possível encaixá-

-la em nenhum estereótipo de gênero.

Ainda outra camada de complexidade se acrescenta à composição dessa personagem: ela é a mulher do médico, não tem uma profissão própria, ou pelo menos nós, leitores, não chegamos a saber. Ao contrário de seu marido, não é nomeada pelo ofício, mas por ser a esposa de alguém. Essas e outras 33

questões demonstram que não se trata de uma personagem plana, mas esférica, segundo a classificação do teórico Edward Morgan Forster (1879-1970) trazida à literatura brasileira por Antonio Candido (1918-2017), em seu fa-moso texto “A personagem do romance”:

As “personagens esféricas” não são claramente definidas por forster, mas concluímos que as suas características se reduzem ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender. (2009, p. 63) Não há dúvida de que a mulher do médico surpreende os leitores —

mais de uma vez, inclusive. Como no momento que seu marido, num gesto imprevisto e impensado, vai até a cama da mulher de óculos escuros e se dei-ta com ela. Apesar de estar ali acompanhando esse homem, cuidando dele, mesmo podendo ver e tendo passado pelos maiores horrores que alguém poderia imaginar, em vez de perceber a ação do seu marido como uma traição e ficar brava, ou incomodada, ela apenas passa a mão sobre o rosto da mulher de óculos, que está em prantos ao saber que foi descoberta nessa traição, e pede que ninguém ali se explique. Demonstra assim compreender a situação que a distancia de todos que ali estão e que, ao mesmo tempo, a conecta pro-fundamente com essa mulher. Uma cena simbólica e bela, que nos faz refletir sobre as dinâmicas relacionais entre as mulheres.

As questões de gênero não se encerram, porém, nessa personagem, e são apresentadas em diversos momentos do livro. Um dos mais emblemáti-cos é o terrível estupro que ocorre no manicômio desativado. Naquela situação, as mulheres são exigidas pelos homens malvados que estão controlando as camaratas em troca da comida e então são violentadas; trata-se de uma das partes mais terríveis do romance. Isso poderia ser interpretado como uma cena que demonstra a fragilidade feminina, que deve ceder diante da dominação masculina, no entanto, essas mulheres enfrentam a situação de terrível violência com coragem imensa, o que deixa evidente o tamanho da resistência e da força necessária para ser uma mulher.

34

Se, por um lado, o livro em alguns momentos faz afirmações questio-náveis sobre o gênero feminino, por outro, o narrador é essa figura bastante misteriosa que o leitor não conhece. Ele se insere no discurso, fala com o leitor, interroga-o, põe-se como observador, é onisciente, de modo que pode muito bem encarnar em si uma figura que representa o pensamento comum, que representa a voz coloquial:

[...] lá fora, no átrio, na cerca, arrastavam-se os cegos desamparados, do-ridos de golpes uns, pisados outros, eram sobretudo os anciãos, as mulheres e as crianças de sempre, seres em geral ainda ou já com poucas defesas, milagre foi não terem saído disto muitos mais mortos para enterrar.

[...] (p. 113)

Aqui temos uma visão que deixa evidente a noção de fragilidade feminina. É possível pensar que se trata de uma perspectiva do próprio autor, porém a presença do narrador nos impede de concluir isso. Esse tipo de máxima sobre o gênero feminino se repete em diversas outras partes do romance, como a que lemos a seguir:

[...] o que ela não queria era que o marido despertasse e desse pela ausên-cia a tempo ainda de perguntar-lhe Aonde vais, que é, provavelmente, a pergunta que os homens mais fazem às suas mulheres, a outra é Onde estives-te. [...] (p. 150)

Suposições como essa dizem respeito a uma noção de que o homem controla sua esposa, ou que deveria fazer isso. Outra afirmação que se repete mais de uma vez no romance é: “entenda as mulheres quem puder”, o que reafirma a ideia recorrente de que as mulheres são seres incompreensíveis.

Seja essa a voz de Saramago ou do narrador, trechos assim permitirão aos estudantes refletir sobre as construções de gênero na literatura e na sociedade.

35

A partir desse tipo de reflexão, sugere-se um debate entre os estudantes em torno desse tema. As questões a serem discutidas na ocasião podem ser mais polêmicas, como: seria Ensaio sobre a cegueira um livro machista? Num caso como esse, é evidente que não se deve chegar a um sim ou não, a ideia de um debate como esse não é responder a uma pergunta e muito menos condenar José Saramago a uma fogueira, mas sim debater o assunto. O que é importante considerar numa discussão como essa e que pode ser extremamente enriquecedor aos estudantes do Novo Ensino Médio é a noção de que a literatura não precisa ser combativa em relação à cruel realidade. Ela pode apresentar os preconceitos, os problemas e as desigualdades de gênero, entre outras questões, sem ter de apresentar soluções. Além disso, ao expor as entranhas de uma sociedade desigual, com heranças machistas, também o escritor está promovendo reflexões ao leitor.

O debate em questão pode ser, como foi dito, promovido a partir de questões mais ou menos abertas ou polêmicas. Além disso, pode ser interessante usar como base mais de um livro para pensar a construção das personagens e seus gêneros. Isso dependerá do currículo escolar.

Essa também pode ser uma atividade anunciada durante a leitura da obra, para que os estudantes leiam já com esse olhar e façam os debates conforme forem avançando na leitura e nos momentos em que a questão aparece no romance. O professor de Sociologia sem dúvida terá muito o que acres-centar nessa discussão.

Após os debates, os estudantes ainda podem produzir um texto individual opinativo sobre o que foi discutido, bem como uma análise do(s) livro(s).

Para que o debate ocorra, no entanto, é interessante que haja uma preparação prévia, com ajuda de colegas. As salas podem inclusive organizarem-se em grupos para preparar a argumentação que um ou dois dos participantes defenderá no debate. Essa também é uma boa ocasião para uma filmagem que registre a atividade. Quem sabe os melhores debates podem ser assistidos pelos estudantes do ano seguinte como inspiração.

36

Aprofundamento: Análise estética ecrítica da obra

Embora Saramago tenha ficado conhecido pelo estilo de escrita, que influenciou mundialmente o campo literário, não é apenas de longos períodos repletos de vírgulas que se compõem seus livros: a amplitude e a grandeza do escritor estão para além de um estilo. Saramago recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1998 e seu Ensaio sobre a cegueira (1995) marcou gerações de leitores e leitoras e foi adaptado para o cinema e outras linguagens artísticas, porque cala fundo no que nós todos temos de mais humano. Trata-se de uma obra literária que não nos deixa fugir de nós mesmos e nem nos poupa do pior.

O poder de fisgar os olhos dos leitores é inegável. Estamos falando de um romance que é conhecido por captar, por prender a atenção, e por isso vale ressaltar as estratégias que o autor usa para causar esse efeito.

Em primeiro lugar, o romance mantém grandes tensões, do começo ao fim. Isso porque o grande conflito em jogo, a epidemia de cegueira branca, surge nas primeiras páginas, sem a necessidade de interlocuções que in-termedeiem a relação com o livro, como apresentações das personagens, do contexto, do conflito. Somos logo jogados na trama complexa de ações do romance e vamos sendo mantidos nela por uma sequência de acontecimentos que não se resolvem completamente. A um conflito soma-se outro e mais outro. Alguns deles, claro, vão se solucionando pelo caminho, mas nunca voltamos à estaca zero de distensão. Nem mesmo quando a obra termina, com um fim um tanto aberto, temos uma resolução completa que esperamos como leitores — bem sabemos que é provável que todos recuperem a visão, mas sobre o que será de um mundo após essa pandemia, cabe a nós especu-larmos. A única certeza é a de que nada mais deve ser como antes, nem para as personagens dessa história, nem para nós mesmos.

Dessa forma, vivemos junto dessas pessoas feitas de palavras e quase nos esquecemos de que não somos nós que estamos ali, enfiados naquela história. Para captar-nos, porém, não basta apenas criar conflitos amarrados uns nos outros — apesar de essa ser uma estratégia bastante interessante.

Sentimo-nos presos à história também por conta da fluidez da linguagem e 37

da proximidade do narrador, e falaremos de cada um desses elementos sepa-radamente.

Do ponto de vista da composição sintática, da organização das orações, temos uma conhecida marca do autor: longos períodos repletos de vírgulas, que resultam em longos parágrafos. A isso soma-se o fato de que ele não de-marca a presença do discurso direto com travessões ou aspas, de modo que as falas das personagens se misturam à fala do narrador a ponto de, muitas vezes, nem sequer sabermos quem está falando. Saramago consegue criar assim um efeito de fluidez que nos joga no meio da ação: não há distanciamen-to em relação ao que está acontecendo, é quase como se nos víssemos entre todas aquelas pessoas, dividindo suas aflições, medos e alegrias. Esse efeito de proximidade é corroborado pela presença de um narrador intruso que se coloca também ele no meio da história, opina sobre o que vê e nos conta, nos interpela como leitores e faz isso usando uma linguagem coloquial, sem arcaísmos e rebuscamentos, como podemos ver no seguinte trecho: A estas alturas já os outros cegos estão a fugir espavoridos para os corre-dores cheios de fumo, há fogo, há fogo, gritam, e aqui se pode observar ao vivo como têm sido mal pensados e organizados estes ajuntamentos humanos de asilo, hospital e manicómio, repare-se em como cada um dos ca-tres, só por si, com sua armação de ferros bicudos, pode tornar-se em uma mortal armadilha, vejam-se as consequências terríveis de haver uma só porta em camaratas que levam quarenta pessoas, fora as que dormem no chão, se o fogo chega lá primeiro e lhes tapa a saída, não escapa ninguém.

[...] (p. 205)

Esse excerto condensa todos esses recursos, pois há o discurso direto misturado à narração; o narrador que nos interpela, quase a conversar conosco; o longo período repleto de vírgulas. Aqui é possível perceber como a fluidez da linguagem se manifesta em uma cena de extrema tensão, logo quando o manicômio desativado pega fogo e os cegos ali quarentenados descobrem que na verdade estavam há algum tempo sem o controle dos militares, que 38

também já haviam cegado. Ao sair, percebem que a epidemia está fora de controle e ninguém mais vê, além da mulher do médico, claro.

Essa epidemia incontrolável, cujo contágio é quase imediato e produz um tipo de cegueira inédita — único sintoma da doença — traz os leitores para um universo fantástico. Ao longo da história, os laços com a realidade vão colapsando, sem que mergulhemos num mundo maravilhoso. E nesse universo deparamos com o fato de que não só há algo fora do lugar, mas que esse elemento fantástico em jogo, essa cegueira branca, muito tem a ver conosco.

Ensaio sobre a cegueira é, antes de tudo, uma narrativa alegórica, sendo esse mais um entre os recursos que tornam essa obra fascinante e tão próxima de cada um de nós. Numa mesma história, Saramago parece condensar elementos diversos que dizem respeito à maneira como nossa sociedade estabeleceu seus grupos, seus contratos sociais, suas organizações. E ele faz isso de uma maneira retrospectiva, como num processo de desconstrução de todas essas estruturas, que podem rapidamente desmoronar diante de nossos olhos. De uma sociedade plenamente organizada, nas qual os semáforos funcionam e as instituições agem de maneira extremamente rápida para conter uma epidemia, vamos parar em uma organização militarmente regida num estado de exceção. Daí conhecemos a barbárie a que um grupo de seres humanos pode chegar e, por fim, somos levados inclusive ao nomadismo como forma de sobrevivência. Ou seja, o autor desconstrói todas as nossas certezas e nos demonstra como erigimos uma sociedade através de inúmeras associa-ções que podem muito bem deixar de existir.

Além dessas alegorias, que travam uma batalha intensa com nosso imaginário, a visão absolutamente branca, o mar de claridade no qual estão enfiados esses pobres cegos, parece também nos dizer respeito:

[...] Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem. (p. 308) 39

Ficamos cegos de clareza, cegos de civilização: No mundo “normal”, a razão cegou o homem que pensava que tudo era permitido a ele e esqueceu dos próprios limites, pois, mesmo vendo, não enxergava, de fato. A alegoria da cegueira apresentada por Saramago mos-tra que é preciso cegar ou enlouquecer para depois ver corretamente, mas que não são todos que se revelam sensíveis e capazes desse novo olhar.

(SANTOS, 2019, p. 99)

Essa cegueira alegórica, portanto, nos convida a desconstruir o olhar, a desnaturalizar os saberes, a aprender a ver, porque, afinal, não há certeza.

Tudo o que vemos à nossa volta faz parte de uma construção, logo, comporta-se como ficção, como narrativa. Assim, não é de estranhar que as grandes obras de arte, como o romance de Saramago, nos sejam até mais impactan-tes e verdadeiras que a própria realidade, pois, assim como ela, trata-se de uma narrativa estruturada e construída sobre os pilares de uma sociedade em constante mudança.

40

Sugestões de referências complementares

A seguir, são indicadas algumas referências complementares para a abordagem de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Trata-se de possibilidades de diálogo com a obra e que podem promover intertextualidades ricas. Há referências de diferentes campos artísticos.

Filme: Ensaio sobre a cegueira. Direção: Fernando Meirelles. Brasil, 2008, 121

min. Não recomendado para menores de 16 anos.

Em 2008, o livro de Saramago ganhou uma adaptação para o cinema.

O filme, que tem no elenco Julianne Moore, Mark Rufallo e Gael Gar-cía Bernal, entre outros artistas, abriu o Festival de Cannes daquele ano. Foi filmado no Brasil, no Canadá e no Uruguai.

Are sens