Caso se deseje investir mais ainda na exploração desse gênero em relação com o contexto social, é possível, após a leitura, propor a produção de um texto, por exemplo, que analise as relações entre a distopia de Saramago e o fim do século xx.
Outra possibilidade é pedir que os estudantes escrevam suas próprias distopias, pensando nas tendências do século xxi, com a ajuda dos professores e professoras de História e/ou Sociologia. Essas distopias inventadas podem ser exploradas em gêneros mais breves, como contos, ou então em 25
materiais audiovisuais, com uma narrativa que seja filmada, como curta-me-tragem ou animação.
CON T E X T UA LIZ AÇ Ã O HIS T Ó RI C A : O S A L A Z A RIS MO E
OU T ROS R EGIM E S TOTA LIT Á RIOS
Ensaio sobre a cegueira pode também ser lida como uma obra que aborda, de maneira alegórica, os regimes totalitários e as ditaduras do século xx. Na Itália, Benito Mussolini tomou o poder em 1922, Adolf Hitler fez o mesmo na Alemanha, em 1933, e Francisco Franco liderou um golpe militar em 1936, na Espanha. Portugal estava sob ditadura militar desde 1926, e em 1933 iniciou-se o período conhecido como salazarismo, ou Estado Novo português. Foi uma ditadura que durou até 1974, tendo sido derrubada pela Revolução dos Cravos.
Apesar de não haver nenhuma referência clara a um regime totalitário no romance, o autoritarismo extremamente violento que ocorre no manicômio desativado é perpetrado em primeiro lugar pelos militares, que contro-lam esse espaço usando do medo e da morte. Podemos pensar, na realidade, em diversos estados de exceção que justificam a dominação de determinadas parcelas da sociedade por outras, como ocorre no livro e na realidade: nas guerras, nas pandemias, nos momentos de instabilidade democrática.
Nesse sentido, pode ser interessante, antes de começar a leitura, abordar historicamente o contexto anterior à produção de Ensaio sobre a cegueira, tendo em vista esses regimes totalitários e mais especificamente o salazarismo. Nada impede essa abordagem de ser feita depois ou durante a leitura, dependendo da intenção. Caso se faça antes, isso influenciará o olhar dos estudantes para o texto. Caso se faça depois, haverá um olhar retrospectivo que permitirá uma releitura da obra.
Temos aqui mais uma chance de pedir uma análise aos estudantes em formato de texto, se o professor julgar interessante e se houver tempo. Op-tando-se por realizá-la, pode-se tentar observar quais são os elementos, no romance, que remetem ao regimes totalitários, como o militarismo e a violência autoritária, entre outros.
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Leitura
A F ILOS OF I A E M E NS A IO S OBR E A C EGU E IR A É difícil ler Ensaio sobre a cegueira sem pensar em Leviatã, de Thomas Hobbes (1588-1679). No romance de Saramago, a concepção acerca do homem sem dúvida remete à ideia hobbesiana da necessidade de um governo e uma sociedade fortes para lidar com esse estado natural humano. A própria noção de contrato social, que aparece na obra de Hobbes, é tocada e desenvolvida no livro de Saramago. No entanto, talvez o Leviatã, essa autoridade forte e inques-tionável sobre a qual fala Hobbes, não seja encontrado no romance, uma vez que essas autoridades entram apenas para perpetrar mais violência. Temos, por sua vez, a personagem da mulher do médico, que age de maneira muito ética, sempre pensando no coletivo, de maneira gentil e altruísta, e que acaba virando uma espécie de líder, de olhos em meio à cegueira. Desse modo, essa pode ser uma divergência central em relação à teoria hobbesiana, que aponta para outra maneira de encarar a natureza humana: menos autoritária e mais gentil, quiçá feminina, ou pelo menos aquilo que Saramago entende por feminilidade.
Há, sem dúvida, muito mais a explorar de discussões filosóficas no livro, então uma parceria com o componente curricular de Filosofia seria muito rica. Além do conceito anterior, seria possível pensar também na noção de panóptico, proposta por Michel Foucault (1926-84). Vejamos como ela se encaixa na obra de Saramago:
O panoptismo baseia-se, de acordo com a teoria da panóptica de michel foucault, em poder impor comportamentos em toda a população com base na ideia de que estamos sendo observados. Procura generalizar um comportamento típico dentro de um intervalo considerado normal, punição de desvios ou premiando-se bom comportamento. (“A teoria panóptica de michel foucault”, 2017)
Essa descrição tem íntima relação com Ensaio sobre a cegueira, em primeiro lugar, pois o óptico em determinado momento entra em colapso: ninguém mais vê ninguém, e nesse momento os comportamentos apresentam 27
desvios morais terríveis. Ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer de que o próprio espaço em que estão os cegos em quarentena — o manicômio e a prisão — pode ser considerado panóptico:
O próprio panóptico é uma forma de estrutura arquitetônica projetada para cárceres e prisões. A referida estrutura supunha um arranjo circular das células em torno de um ponto central, sem comunicação entre eles e poder ser o preso observado de fora. No centro da estrutura seria uma torre de vigia onde uma única pessoa poderia visualizar todas as células, podendo controlar o comportamento de todos os reclusos. (idem) Escolas, prisões e manicômios são considerados, portanto, panópticos, e são locais que têm entre si não só a estrutura física em comum, mas a dinâmica de funcionamento.
A depender de como for o currículo do componente curricular de Filosofia, é possível trabalhar com esses conceitos e também com outros, e sem dúvida o romance de Saramago permite diversas entradas. A partir deles, o docente pode propor um texto analítico-argumentativo que discuta como esses conceitos filosóficos aparecem na obra e em que medida se aplicam à narrativa. Essa pode inclusive ser uma proposta avaliada pelos professores de ambos os componentes curriculares, a partir da qual criem critérios de avaliação em comum.
A proposta pode ser apresentada no fim da leitura, pois uma análise integral da obra pressupõe uma visão completa. Ainda assim, uma parceria entre os componentes curriculares deve ir acontecendo ao longo do processo, não apenas no final, para que seja mais proveitoso.
Além disso, essa também pode ser uma oportunidade para, nas aulas de Filosofia, problematizar as estratégias de escrita própria desse tipo de texto, em diálogo com o docente de Língua Portuguesa, ao ajudar os estudantes a aprenderem como escrever uma análise filosófica, que requer estratégias muito diferentes da escrita em outras áreas do conhecimento.
Outra possível abordagem é pedir que os estudantes imaginem seus próprios espaços panópticos, numa perspectiva distópica, tendo em vista os 28
que já existem, claro, mas inventando uma nova configuração. Eles podem inventar uma descrição e também desenhar esse espaço, com ajuda do professor de Arte, mas o mais interessante é estimular que pensem em questões como: que tipos de locais de controle o mundo contemporâneo deve vir a produzir? Esse exercício fará com que reflitam sobre o livro, mas também olhem para o próprio entorno pensando nas tendências autoritárias do mundo hoje. Hoje em dia, essa discussão pode ganhar ainda mais uma camada de complexidade com a presença maciça da tecnologia, que também pode ser uma forma de controle contemporânea.
Por fim, como desdobramento da discussão filosófica aqui apresentada, a seguir estará sugerida outra proposta.
O QU E É A C EGU E IR A?
Tendo em vista os debates filosóficos em torno de Ensaio sobre a cegueira propostos antes, segue um desdobramento mais aprofundado.
Sugere-se uma conversa entre os estudantes sobre a cegueira como tema na filosofia e na literatura de Saramago. Pode ser um debate clássico, com pontos de vistas opostos e a defesa deles pelas duas partes, mas também pode ser um diálogo mais livre entre os estudantes, sem necessariamente envolver questões polêmicas. Nesse diálogo mais livre, o conceito de cegueira também é desenvolvido, mas sem a necessidade de explicitar as visões opostas.
Seria interessante haver uma preparação para o debate, orientando os estudantes a pesquisar como a cegueira aparece em autores da filosofia e ajudando-os a interpretar o que ela simboliza em Saramago. Eventualmente, se não for possível, não precisa haver essa preparação prévia, como num debate, pois os grupos podem fazer uso das reflexões que já apareceram nas aulas e das anotações, uma vez que a ideia não é uma fala necessariamente preparada, a defesa de um discurso, mas a discussão e o desenvolvimento do tema. Isso implica, por exemplo, que um jovem possa mudar de opinião durante a conversa ou falar a partir de perspectivas diferentes.
No dia da atividade, o professor pode propor à turma a pergunta inicial: o que é a cegueira? E, durante o desenvolvimento das falas dos estudantes, o docente pode fazer perguntas provocativas em alguns momentos-chave, para instigá-los a repensar, a elaborar melhor suas ideias. Nesse sentido, seria 29
importante estimulá-los a refletir de maneira mais metafórica, levando-os a pensar na cegueira de cada um, naquilo que não podemos ver, por sermos impedidos de alguma forma, ou então levando-os a imaginar algum tipo de cegueira coletiva que acometeria nossa sociedade. Além disso, seria interessante expandir o campo simbólico da cegueira, pensando sobre as diferenças entre ver e olhar, sobre pontos de vista... Será que todos vemos as mesmas coisas quando olhamos para uma situação ou um objeto, ou mesmo para a realidade?
O olhar está no mesmo campo do ver, mas pode transcender o limite do visível para o invisível. Ou seja, olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o “real” fora de nós, é sobretudo um mergulho no sensível. O visível e o invisível não são duas faces diferentes do olhar, mas o modo próprio e origi-nário de apreensão da realidade. (SilVA, 2002, p. 17) Essa discussão filosófica permitida pela obra de Saramago reverbera e expande noções de autores diversos da história da filosofia, como Platão (séculos v-iv a.C.), por exemplo, em seu mito da caverna, ou Maurice Mer-leau-Ponty (1908-61), em O visível e o invisível, de 1964. De alguma maneira, a filosofia tem como centro de todas as suas discussões a capacidade de ver os pontos de vista.
Essa conversa que os estudantes realizarão pode ser gravada em vídeo ou em podcast, por exemplo, e ser disponibilizada para a comunidade escolar, após uma edição. Caso se opte por essa divulgação do material, pode-se recorrer a alguma plataforma virtual que permita interação. A recepção da produção é uma etapa importante do processo criativo ao qual muitas vezes não damos a devida importância na escola. No processo de escolarização das práticas sociais, muitas vezes deixamos essa importante etapa de fora. Outra possibilidade de recepção das produções é deixar que as turmas assistam às conversas umas das outras, observando assim as semelhanças e as diferenças em relação às abordagens dos temas.
Essa é uma oportunidade de trabalhar a oralidade, habilidade que mui-30
tas vezes fica em segundo plano na escola e mesmo em sociedade — do ponto de vista da valorização do conhecimento produzido dessa maneira —, mas que merece tanto prestígio quanto a escrita. A importância dessa habilidade está também colocada na bncc:
(EM13LP16) Produzir e analisar textos orais, considerando sua adequação aos contextos de produção, à forma composicional e ao estilo do gênero em questão, à clareza, à progressão temática e à variedade linguística empregada, como também aos elementos relacionados à fala (modulação de voz, entonação, ritmo, altura e intensidade, respiração etc.) e à cinestesia (postura corporal, mo-vimentos e gestualidade significativa, expressão facial, contato de olho com plateia etc.).
Pós-leitura
E X PE RI Ê NCI A S E NS ORI A L
Um dos recursos mais interessantes de Saramago é nos sentirmos em vários momentos da obra , apesar de acompanharmos os acontecimentos pela perspectiva de uma personagem que não cegou. Isso acontece porque ele não descreve com tantos detalhes as cores, por exemplo, nem mesmo os locais, deixando a cabo de nossa imaginação o preenchimento desses detalhes.
Assim, após a leitura, propõe-se a elaboração de uma experiência sensorial de cegueira por meio da arte, usando outras linguagens que não a literatura — pode ser o audiovisual, produzindo um curta, ou uma instala-ção, elaborando uma exposição. Seria muito interessante conseguir alcançar a cegueira branca de Saramago, embora não seja tão fácil. No caso de uma produção audiovisual, isso se torna mais viável; já no caso de uma exposição em que os participantes usem uma venda, por exemplo, não seria possível promover essa brancura do romance. Nesse caso, os estudantes podem utili-zar-se de áudios ou serem os guias da experiência para contarem aos partici-31
pantes como é essa cegueira saramaguiana. Talvez seja o caso de ler trechos da obra, por exemplo, contar com as próprias palavras, ou até mesmo criar textos autorais para descrever essa experiência.
A exposição Diálogos no escuro pode ser uma inspiração para essa atividade. Nela, os participantes são vendados e passeiam pelo espaço com a ajuda de guias que são deficientes visuais.