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da proximidade do narrador, e falaremos de cada um desses elementos sepa-radamente.

Do ponto de vista da composição sintática, da organização das orações, temos uma conhecida marca do autor: longos períodos repletos de vírgulas, que resultam em longos parágrafos. A isso soma-se o fato de que ele não de-marca a presença do discurso direto com travessões ou aspas, de modo que as falas das personagens se misturam à fala do narrador a ponto de, muitas vezes, nem sequer sabermos quem está falando. Saramago consegue criar assim um efeito de fluidez que nos joga no meio da ação: não há distanciamen-to em relação ao que está acontecendo, é quase como se nos víssemos entre todas aquelas pessoas, dividindo suas aflições, medos e alegrias. Esse efeito de proximidade é corroborado pela presença de um narrador intruso que se coloca também ele no meio da história, opina sobre o que vê e nos conta, nos interpela como leitores e faz isso usando uma linguagem coloquial, sem arcaísmos e rebuscamentos, como podemos ver no seguinte trecho: A estas alturas já os outros cegos estão a fugir espavoridos para os corre-dores cheios de fumo, há fogo, há fogo, gritam, e aqui se pode observar ao vivo como têm sido mal pensados e organizados estes ajuntamentos humanos de asilo, hospital e manicómio, repare-se em como cada um dos ca-tres, só por si, com sua armação de ferros bicudos, pode tornar-se em uma mortal armadilha, vejam-se as consequências terríveis de haver uma só porta em camaratas que levam quarenta pessoas, fora as que dormem no chão, se o fogo chega lá primeiro e lhes tapa a saída, não escapa ninguém.

[...] (p. 205)

Esse excerto condensa todos esses recursos, pois há o discurso direto misturado à narração; o narrador que nos interpela, quase a conversar conosco; o longo período repleto de vírgulas. Aqui é possível perceber como a fluidez da linguagem se manifesta em uma cena de extrema tensão, logo quando o manicômio desativado pega fogo e os cegos ali quarentenados descobrem que na verdade estavam há algum tempo sem o controle dos militares, que 38

também já haviam cegado. Ao sair, percebem que a epidemia está fora de controle e ninguém mais vê, além da mulher do médico, claro.

Essa epidemia incontrolável, cujo contágio é quase imediato e produz um tipo de cegueira inédita — único sintoma da doença — traz os leitores para um universo fantástico. Ao longo da história, os laços com a realidade vão colapsando, sem que mergulhemos num mundo maravilhoso. E nesse universo deparamos com o fato de que não só há algo fora do lugar, mas que esse elemento fantástico em jogo, essa cegueira branca, muito tem a ver conosco.

Ensaio sobre a cegueira é, antes de tudo, uma narrativa alegórica, sendo esse mais um entre os recursos que tornam essa obra fascinante e tão próxima de cada um de nós. Numa mesma história, Saramago parece condensar elementos diversos que dizem respeito à maneira como nossa sociedade estabeleceu seus grupos, seus contratos sociais, suas organizações. E ele faz isso de uma maneira retrospectiva, como num processo de desconstrução de todas essas estruturas, que podem rapidamente desmoronar diante de nossos olhos. De uma sociedade plenamente organizada, nas qual os semáforos funcionam e as instituições agem de maneira extremamente rápida para conter uma epidemia, vamos parar em uma organização militarmente regida num estado de exceção. Daí conhecemos a barbárie a que um grupo de seres humanos pode chegar e, por fim, somos levados inclusive ao nomadismo como forma de sobrevivência. Ou seja, o autor desconstrói todas as nossas certezas e nos demonstra como erigimos uma sociedade através de inúmeras associa-ções que podem muito bem deixar de existir.

Além dessas alegorias, que travam uma batalha intensa com nosso imaginário, a visão absolutamente branca, o mar de claridade no qual estão enfiados esses pobres cegos, parece também nos dizer respeito:

[...] Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem. (p. 308) 39

Ficamos cegos de clareza, cegos de civilização: No mundo “normal”, a razão cegou o homem que pensava que tudo era permitido a ele e esqueceu dos próprios limites, pois, mesmo vendo, não enxergava, de fato. A alegoria da cegueira apresentada por Saramago mos-tra que é preciso cegar ou enlouquecer para depois ver corretamente, mas que não são todos que se revelam sensíveis e capazes desse novo olhar.

(SANTOS, 2019, p. 99)

Essa cegueira alegórica, portanto, nos convida a desconstruir o olhar, a desnaturalizar os saberes, a aprender a ver, porque, afinal, não há certeza.

Tudo o que vemos à nossa volta faz parte de uma construção, logo, comporta-se como ficção, como narrativa. Assim, não é de estranhar que as grandes obras de arte, como o romance de Saramago, nos sejam até mais impactan-tes e verdadeiras que a própria realidade, pois, assim como ela, trata-se de uma narrativa estruturada e construída sobre os pilares de uma sociedade em constante mudança.

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Sugestões de referências complementares

A seguir, são indicadas algumas referências complementares para a abordagem de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Trata-se de possibilidades de diálogo com a obra e que podem promover intertextualidades ricas. Há referências de diferentes campos artísticos.

Filme: Ensaio sobre a cegueira. Direção: Fernando Meirelles. Brasil, 2008, 121

min. Não recomendado para menores de 16 anos.

Em 2008, o livro de Saramago ganhou uma adaptação para o cinema.

O filme, que tem no elenco Julianne Moore, Mark Rufallo e Gael Gar-cía Bernal, entre outros artistas, abriu o Festival de Cannes daquele ano. Foi filmado no Brasil, no Canadá e no Uruguai.

Livro: A peste, de Albert Camus. Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2017.

Em 1947, Albert Camus escreveu uma obra que tem como pano de fundo uma epidemia que mata diversas pessoas. As reflexões do personagem principal, médico, trazem questionamentos sobre a condição humana que podem ser relacionados tanto à situação alegórica apresentada em Ensaio sobre a cegueira como à pandemia.

Filme: Janela da alma. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Brasil, 2004, 73 min. Livre.

Este documentário foi construído com base no depoimento de deze-nove pessoas com deficiência visual — de uma miopia leve à cegueira total. Nele, aparecem grandes personalidades da literatura, como o poeta brasileiro Manoel de Barros e o próprio José Saramago, além dos cineastas Agnès Varda e Wim Wenders, entre outras personalidades. O

principal argumento desta produção é compreender como a deficiência visual influencia a personalidade dessas pessoas.

Filme: José e Pilar. Direção: Miguel Gonçalves Mendes. Brasil-Portugal-Espanha, 2010, 125 min. Livre.

Neste documentário, conhecemos o relacionamento entre o escritor 41

José Saramago e sua esposa, Pilar del Río, no cotidiano do casal. Como foi filmado próximo à morte do escritor, quando ele já tinha, aos 84

anos, consciência de que se aproximava esse momento, o documentário acaba retratando essa sua proximidade da morte.

Livro: Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Escrito quase uma década depois, este romance faz um diálogo com Ensaio sobre a cegueira. Quase como um desdobramento da obra anterior, neste há uma epidemia simbólica, pois, em uma situação de elei-ção, 70% da população vota em branco. Então, o governo e as autoridades políticas deixam a cidade à sua própria sorte, o que gera uma crise política que revela a fragilidade das instituições.

Vídeo: Entrevista com José Saramago. Programa Roda Viva, 13 out. 2003, 81

min.

Em 2003, numa visita ao Brasil, Saramago concede uma entrevista ao Roda Viva, programa da tv Cultura. A gravação pode ser acessada no canal de Youtube da própria emissora: https://www.youtube.com/

watch?v=k36uq02_fVY. Acesso em: 28 out. 2020. Bibliografia comentada

candido, Antonio. “A personagem do romance”. In: A personagem de ficção.

São Paulo: Perspectiva, 2009.

Este livro reúne textos de pensadores da crítica brasileira sobre a construção da personagem na literatura, no teatro e no cinema. Neste material, citamos especificamente o texto de Antonio Candido, que nos ajudou a conceitualizar as noções de personagem esférica e plana. No entanto, também vale muito a pena ler o texto de Anatol Rosenfeld, no qual ele desenvolve reflexões acerca da literatura, assim como os ensaios de Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Sales Gomes.

colomer, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.

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