Durante essa experiência, os participantes aguçam seus outros sentidos diante da falta da visão. Além de ser uma bela aula sobre empatia, também estabelece relações com a obra de Saramago.
Para saber mais sobre essa exposição, basta acessar o site: www.
dialogonoescurorio.com.br.
Para essa proposta da experiência sensorial da cegueira, a interação com o público é essencial. Desse modo, mesmo antes de começar a produção, seria importante definir um público-alvo, seja na comunidade escolar ou fora dela.
A decisão prévia de um público vai influenciar o planejamento e guiar a produção. Lembrar que durante o evento sempre é recomendável coletar depoimentos em livros de visita, no caso de uma exposição, ou abrir um espaço para comentários se o produto audiovisual for divulgado em uma plataforma digital.
Outra possibilidade é produzir uma obra que não esteja necessariamente relacionada com o livro de forma direta, mas que se aproveite da proposta de produção de um texto ficcional (anteriormente descrita neste material), na qual os estudantes tiveram de descrever sua própria cegueira, distinta daquela que aparece no livro. Nesse caso, em parceria com o componente curricular de Arte, pode-se produzir algo a partir daquele texto.
Do ponto de vista organizacional, essa atividade pode ser feita com os estudantes organizados em grupos, dada suas dimensões. Nesse caso, o texto de um dos integrantes precisaria ser escolhido para servir como base, ou então pode-se usar o próprio texto do Saramago. Essa proposta se relaciona intimamente com a seguinte habilidade da bncc: 32
(EM13LP54) Criar obras autorais, em diferentes gêneros e mídias —
mediante seleção e apropriação de recursos textuais e expressivos do repertório artístico —, e/ou produções derivadas (paródias, esti-lizações, fanfics, fanclipes etc.), como forma de dialogar crítica e/ou subjetivamente com o texto literário.
CONS T RU Ç Ã O DE PE R S ON AGE NS E G Ê N E RO
Ensaio sobre a cegueira é um livro que estimula a pensar sobre a condição feminina e a construção desse gênero na literatura e na sociedade. Em parceria com o componente curricular de Sociologia, é possível aprofundar-se nessas questões.
Em primeiro lugar, a principal personagem e a mais complexa de todo o romance é uma mulher intrigante e única que, em meio a uma epidemia de cegueira, não fica cega, mantendo-se imunizada em relação a esse mal que afeta todos. Diante dessa informação, nos perguntamos: Será que seu gênero teria algo a ver com isso? O que faz essa mulher — que abdica de si mesma para cuidar do marido, que ajuda a todos o tempo inteiro e tem uma ética pessoal inabalável — a não cegar? Seriam suas qualidades morais?
Por um lado, poderíamos pensá-la como alguém que cuida dos outros e que, dessa forma, atua em um papel muitas vezes atribuído a mulheres, o de cuidadora, assim são as babás, as faxineiras, as professoras, as mães, as enfermeiras. Ou pelo menos é assim que a sociedade as vê. Essa característica altruísta talvez a colocasse numa posição um tanto estereotipada; no entanto, trata-se de um cuidado ativo, repleto de inteligência e coragem. Quando é preciso ser violenta e matar, ela o faz, e age de maneira extremamente perspi-caz e planejada, em alguma medida até fria. Portanto, não é possível encaixá-
-la em nenhum estereótipo de gênero.
Ainda outra camada de complexidade se acrescenta à composição dessa personagem: ela é a mulher do médico, não tem uma profissão própria, ou pelo menos nós, leitores, não chegamos a saber. Ao contrário de seu marido, não é nomeada pelo ofício, mas por ser a esposa de alguém. Essas e outras 33
questões demonstram que não se trata de uma personagem plana, mas esférica, segundo a classificação do teórico Edward Morgan Forster (1879-1970) trazida à literatura brasileira por Antonio Candido (1918-2017), em seu fa-moso texto “A personagem do romance”:
As “personagens esféricas” não são claramente definidas por forster, mas concluímos que as suas características se reduzem ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender. (2009, p. 63) Não há dúvida de que a mulher do médico surpreende os leitores —
mais de uma vez, inclusive. Como no momento que seu marido, num gesto imprevisto e impensado, vai até a cama da mulher de óculos escuros e se dei-ta com ela. Apesar de estar ali acompanhando esse homem, cuidando dele, mesmo podendo ver e tendo passado pelos maiores horrores que alguém poderia imaginar, em vez de perceber a ação do seu marido como uma traição e ficar brava, ou incomodada, ela apenas passa a mão sobre o rosto da mulher de óculos, que está em prantos ao saber que foi descoberta nessa traição, e pede que ninguém ali se explique. Demonstra assim compreender a situação que a distancia de todos que ali estão e que, ao mesmo tempo, a conecta pro-fundamente com essa mulher. Uma cena simbólica e bela, que nos faz refletir sobre as dinâmicas relacionais entre as mulheres.
As questões de gênero não se encerram, porém, nessa personagem, e são apresentadas em diversos momentos do livro. Um dos mais emblemáti-cos é o terrível estupro que ocorre no manicômio desativado. Naquela situação, as mulheres são exigidas pelos homens malvados que estão controlando as camaratas em troca da comida e então são violentadas; trata-se de uma das partes mais terríveis do romance. Isso poderia ser interpretado como uma cena que demonstra a fragilidade feminina, que deve ceder diante da dominação masculina, no entanto, essas mulheres enfrentam a situação de terrível violência com coragem imensa, o que deixa evidente o tamanho da resistência e da força necessária para ser uma mulher.
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Se, por um lado, o livro em alguns momentos faz afirmações questio-náveis sobre o gênero feminino, por outro, o narrador é essa figura bastante misteriosa que o leitor não conhece. Ele se insere no discurso, fala com o leitor, interroga-o, põe-se como observador, é onisciente, de modo que pode muito bem encarnar em si uma figura que representa o pensamento comum, que representa a voz coloquial:
[...] lá fora, no átrio, na cerca, arrastavam-se os cegos desamparados, do-ridos de golpes uns, pisados outros, eram sobretudo os anciãos, as mulheres e as crianças de sempre, seres em geral ainda ou já com poucas defesas, milagre foi não terem saído disto muitos mais mortos para enterrar.
[...] (p. 113)
Aqui temos uma visão que deixa evidente a noção de fragilidade feminina. É possível pensar que se trata de uma perspectiva do próprio autor, porém a presença do narrador nos impede de concluir isso. Esse tipo de máxima sobre o gênero feminino se repete em diversas outras partes do romance, como a que lemos a seguir:
[...] o que ela não queria era que o marido despertasse e desse pela ausên-cia a tempo ainda de perguntar-lhe Aonde vais, que é, provavelmente, a pergunta que os homens mais fazem às suas mulheres, a outra é Onde estives-te. [...] (p. 150)
Suposições como essa dizem respeito a uma noção de que o homem controla sua esposa, ou que deveria fazer isso. Outra afirmação que se repete mais de uma vez no romance é: “entenda as mulheres quem puder”, o que reafirma a ideia recorrente de que as mulheres são seres incompreensíveis.
Seja essa a voz de Saramago ou do narrador, trechos assim permitirão aos estudantes refletir sobre as construções de gênero na literatura e na sociedade.
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A partir desse tipo de reflexão, sugere-se um debate entre os estudantes em torno desse tema. As questões a serem discutidas na ocasião podem ser mais polêmicas, como: seria Ensaio sobre a cegueira um livro machista? Num caso como esse, é evidente que não se deve chegar a um sim ou não, a ideia de um debate como esse não é responder a uma pergunta e muito menos condenar José Saramago a uma fogueira, mas sim debater o assunto. O que é importante considerar numa discussão como essa e que pode ser extremamente enriquecedor aos estudantes do Novo Ensino Médio é a noção de que a literatura não precisa ser combativa em relação à cruel realidade. Ela pode apresentar os preconceitos, os problemas e as desigualdades de gênero, entre outras questões, sem ter de apresentar soluções. Além disso, ao expor as entranhas de uma sociedade desigual, com heranças machistas, também o escritor está promovendo reflexões ao leitor.
O debate em questão pode ser, como foi dito, promovido a partir de questões mais ou menos abertas ou polêmicas. Além disso, pode ser interessante usar como base mais de um livro para pensar a construção das personagens e seus gêneros. Isso dependerá do currículo escolar.
Essa também pode ser uma atividade anunciada durante a leitura da obra, para que os estudantes leiam já com esse olhar e façam os debates conforme forem avançando na leitura e nos momentos em que a questão aparece no romance. O professor de Sociologia sem dúvida terá muito o que acres-centar nessa discussão.
Após os debates, os estudantes ainda podem produzir um texto individual opinativo sobre o que foi discutido, bem como uma análise do(s) livro(s).
Para que o debate ocorra, no entanto, é interessante que haja uma preparação prévia, com ajuda de colegas. As salas podem inclusive organizarem-se em grupos para preparar a argumentação que um ou dois dos participantes defenderá no debate. Essa também é uma boa ocasião para uma filmagem que registre a atividade. Quem sabe os melhores debates podem ser assistidos pelos estudantes do ano seguinte como inspiração.
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Aprofundamento: Análise estética ecrítica da obra
Embora Saramago tenha ficado conhecido pelo estilo de escrita, que influenciou mundialmente o campo literário, não é apenas de longos períodos repletos de vírgulas que se compõem seus livros: a amplitude e a grandeza do escritor estão para além de um estilo. Saramago recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1998 e seu Ensaio sobre a cegueira (1995) marcou gerações de leitores e leitoras e foi adaptado para o cinema e outras linguagens artísticas, porque cala fundo no que nós todos temos de mais humano. Trata-se de uma obra literária que não nos deixa fugir de nós mesmos e nem nos poupa do pior.
O poder de fisgar os olhos dos leitores é inegável. Estamos falando de um romance que é conhecido por captar, por prender a atenção, e por isso vale ressaltar as estratégias que o autor usa para causar esse efeito.
Em primeiro lugar, o romance mantém grandes tensões, do começo ao fim. Isso porque o grande conflito em jogo, a epidemia de cegueira branca, surge nas primeiras páginas, sem a necessidade de interlocuções que in-termedeiem a relação com o livro, como apresentações das personagens, do contexto, do conflito. Somos logo jogados na trama complexa de ações do romance e vamos sendo mantidos nela por uma sequência de acontecimentos que não se resolvem completamente. A um conflito soma-se outro e mais outro. Alguns deles, claro, vão se solucionando pelo caminho, mas nunca voltamos à estaca zero de distensão. Nem mesmo quando a obra termina, com um fim um tanto aberto, temos uma resolução completa que esperamos como leitores — bem sabemos que é provável que todos recuperem a visão, mas sobre o que será de um mundo após essa pandemia, cabe a nós especu-larmos. A única certeza é a de que nada mais deve ser como antes, nem para as personagens dessa história, nem para nós mesmos.
Dessa forma, vivemos junto dessas pessoas feitas de palavras e quase nos esquecemos de que não somos nós que estamos ali, enfiados naquela história. Para captar-nos, porém, não basta apenas criar conflitos amarrados uns nos outros — apesar de essa ser uma estratégia bastante interessante.
Sentimo-nos presos à história também por conta da fluidez da linguagem e 37