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Nunca reparo para a fisionomia dos subalternos, Sr. Zuzarte.

Julião ergueu-se e enterrando as mãos nos bolsos, jovialmente:

Foi um grande erro abolir a escravatura!. .

E o princípio da liberdade? — acudiu logo o Conselheiro. — E o Princípio da liberdade? Que os pretos eram grandes cozinheiros, concordo. .

Mas a liberdade é um bem maior.

Alargou-se então em considerações: fulminou os horrores do tráfico, lançou suspeitas sobre a filantropia dos ingleses, foi severo com os plantadores da Nova Orleans, contou o caso da Charles et Georges: dirigia-se exclusivamente a Julião, que fumava, cabisbaixo.

D. Felicidade fora-se sentar ao pé de Luísa e muito inquieta, falando-lhe ao ouvido:

Tu conheces a criada do Conselheiro?

Não.

Será bonita?

Luísa encolheu os ombros.

Não sei que me diz o coração, Luísa! Estou a abafar!

E enquanto Acácio, de pé, perorava para Julião, D. Felicidade ia murmurando a Luísa as queixas da sua paixão.

Que alívio para Luísa quando eles saíram! O que ela sofrera, lá por dentro, toda aquela noite! Que maçadores, que idiotas! — E a outra sem vir! Oh, que vida a sua!

Foi à cozinha dizer a Joana:

Espere pela Juliana, tenha paciência. Que ela não pode tardar; aquilo a mulher achou-se pior!

Mas já passava de meia-noite, já Luísa estava deitada, quando a campainha tocou de leve; depois mais forte; enfim, com impaciência.

A rapariga adormeceu, pensou Luísa. Saltou da cama, subiu descalça à cozinha. Joana, estirada para cima da mesa, ressonava ao pé do candeeiro de petróleo, que fumegava fetidamente. Sacudiu-a, fê-la pôr de pé, estremunhada; voltou, correndo, deitar-se; e sentiu daí a pouco, no corredor, a voz de Juliana dizer com satisfação:

Já está tudo acomodado, hem? Pois eu estive no teatro. Muito bonito!

Do melhor, Sra. Joana, do melhor!

Luísa adormeceu tarde, e durante toda a noite um sonho inquieto agitou-a. —

Estava num teatro imenso, dourado como uma igreja. Era uma gala: joias faiscavam sobre seios mimosos, condecorações reluziam sobre fardas palacianas. Na tribuna, um rei triste e moço, imóvel numa atitude rígida e hierática, sustentava na mão a esfera armilar, e o seu manto de veludo escuro,

constelado de pedrarias como um firmamento, espalhava-se em redor em pregas de escultura, fazendo tropeçar a multidão dos cortesãos vestidos como valetes de paus.

Ela estava no palco; era atriz; debutava no drama de Ernestinho; e toda nervosa via diante de si na vasta plateia sussurrante, fileiras de olhos negros e acesos, cravados nela com furor; no meio a calva do Conselheiro, de uma redondeza nevada e nobre, sobressaia, rodeada como uma flor de um voo amoroso de abelhas. No palco oscilava a vasta decoração de uma floresta; ela notava sobretudo, à esquerda, um carvalho secular, de uma arrogância heroica

— cujo tronco tinha vaga configuração de uma fisionomia, e se parecia com Sebastião.

Mas o contrarregra bateu as palmas; era esguio, parecia-se com D. Quixote, trazia óculos redondos com aros de lata; brandia o Jornal do Comércio torcido em saca-rolhas, e gania: "Salta a cenazinha de amor! Salta-se essa maravilha!" Então a orquestra, onde os olhos dos músicos reluziam como granadas e as suas cabeleiras se eriçavam como montões de estopa, tocou com uma lentidão melancólica o fado de Leopoldina; e uma voz áspera e canalha cantava em falsete:

Vejo-as nas nuvens da tarde, Nas ondas do mar sem fim, E por mais longe que esteja Sinto-o sempre ao pé de mim.

Luísa achava-se nos braços de Basílio que a enlaçavam, a queimavam; toda desfalecida, sentia-se perder, fundir-se num elemento quente como o sol e doce como o mel; gozava prodigiosamente; mas, por entre os seus soluços, sentia-se envergonhada, porque Basílio repetia no palco, sem pudor, os delírios libertinos do Paraíso! Como consentia ela?

O teatro, numa aclamação imensa bradava: "Bravo! Bis! Bis!" Lenços aos milhares esvoaçavam como borboletas brancas num campo de trevo; os braços nus das mulheres lançavam com um gesto ondeado ramos de violetas dobradas; o rei erguera-se espectralmente, e, triste, arremessou como um buquê a sua esfera armilar; e o Conselheiro logo, num frenesi, para seguir os exemplos da sua Majestade, desaparafusando rapidamente a calva, atirou-lha, com um berro de dor e de glória! O contrarregra gania: — "Agradeçam!

Agradeçam!" Ela curvava-se: os seus cabelos de Madalena rojavam pelo tablado; e Basílio, ao seu lado, seguia com olhos vivos os charutos que lhe atiravam, apanhando-os com a graça de um toureiro e a destreza de um clown!

Subitamente, porém, todo o teatro teve um "ah!" de espanto. Fez-se um silêncio ansioso e trágico; e todos os olhos, milhares de olhos atónitos se fitavam nó pano de fundo, onde um caramanchão arqueava a sua estrutura toda estrelada de rosinhas brancas. Ela voltou-se também como magnetizada, e viu Jorge, Jorge que se adiantava, vestido de luto, de luvas pretas, com um punhal na mão; e a lâmina reluzia — menos que os olhos dele! Aproximou-se da rampa e curvando-se, disse com uma voz graciosa:

Real Majestade, senhor infante, senhor governador civil, minhas senhoras, e os meus senhores — agora é comigo! Reparem neste trabalhinho!

Caminhou então para ela com passos marmóreos que faziam oscilar o tablado; agarrou-lhe os cabelos, como um molho de erva que se quer arrancar; Curvou-lhe a cabeça para trás; ergueu de um modo clássico o punhal; fez a pontaria ao seio esquerdo; e balançando o corpo, piscando o olho, cravou-lhe o ferro!

Muito bonito! — disse uma voz. — Rico trabalho!

Era Basílio que fizera entrar nobremente na plateia o seu faéton! Direito na almofada, com o chapéu ao lado, uma rosa na sobrecasaca, continha com a mão negligente a inquietação soberba dos seus cavalos ingleses; e ao seu lado, sentado como um trintanário coberto das suas vestes sacerdotais, vinha o patriarca de Jerusalém! — Mas Jorge arrancara o punhal todo escarlate; as gotas de sangue corriam até a ponta, coalhavam; caíam depois com um som cristalino, punham-se a rolar pelo tablado como continhas de vidro vermelho.

Ela deitara-se, expirante, sob o carvalho que se parecia com Sebastião; então, como a terra era dura, a árvore estendeu por baixo dela as suas raízes, macias como coxins de penas; como o sol a mordia, a árvore desdobrou sobre ela as suas ramagens, como os panos de uma tenda; e das folhas deixava-lhe escorrer sobre os lábios gotas de vinho da Madeira! Ela via no entanto com terror o

seu sangue sair da ferida, vermelho e forte, correr, alastrar-se, fazendo poças aqui, ribeirinhos tortuosos além. E ouvia a plateia berrar:

O autor! Fora o autor!

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