Durante semanas ele não se deitara — a velá-la, a conchegar-lhe a roupa, a dando-lhe os caldos, os remédios, com toda a sorte de palavras doces que lhe faziam tão bem!. . Falava-lhe como a criancinha pequena; dizia-lhe: "Isso vai passar, amanhã estás boa, vamos passear". Mas o seu olhar ansioso estava marejado de lágrimas! Ou então pedia-lhe: "Melhora, sim? Faz-me a vontade, minha querida, melhora!. ." E ela queria tanto melhorar, que sentia como uma ligeira onda de vida que lhe voltava, lhe refrescava o sangue!
Nos primeiros dias da convalescença era ele que a vestia; ajoelhava-se para lhe calçar os sapatos, embrulhava-a no roupão, vinha estendê-la na poltrona, sentava-se ao pé dela a ler-lhe romances, desenhar-lhe paisagens, recortar-lhe soldados de papel. E dependia toda dele; não tinha mais ninguém no mundo para a tratar, para sofrer, chorar por ela — senão ele! Adormecia sempre com as mãos nas suas, porque a doença deixara-lhe um vago medo dos pesadelos da febre; e o pobre Jorge, para a não acordar, ali ficava com a mão presa, horas, sem se mover. Deitava-se vestido num colchãozito ao pé dela. Muitas vezes, acordando de noite, o tinha visto a limpar as lágrimas; de alegria, decerto, porque ela então estava salva! O médico, o bom Dr. Caminha, tinha-
o dito: "Está livre de perigo; agora é refazer esse corpinho". E Jorge, o pobre Jorge, coitado, sem dizer nada, tinha tomado as mãos do velho — tinha-as coberto de beijos!
E agora, quando ele soubesse, quando ele voltasse! Quando ao entrar ali na alcova — visse os dois travesseirinhos, ainda! Ela iria longe, com outro, por caminhos estranhos, ouvindo outra língua. Que horror! E ele ali estaria, naquela casa só, chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memórias dela para o torturar! Os seus vestidos, as suas chinelinhas, os seus pentes, toda a casa!
Que vida triste, a dele! Dormiria ali só! Já não teria ninguém para o acordar de manhã com um beijinho, passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe: "É tarde, Jorge!" Tudo acabará para ambos. Nunca mais! — Rompeu a chorar, de bruços sobre a cama. .
Mas a voz de Juliana falou alto no corredor com Joana. Ergueu-se aterrada.
Viria ter com ela, aquela infame? Os passos achinelados afastaram-se devagar, e Joana entrou com o rol e com a lamparina.
—
A Sra. Juliana — disse — levantou-se um momento, mas diz que ainda está mal, coitada. Foi-se deitar. A senhora não precisa mais nada?
—
Não — disse da alcova.
Despiu-se; e, prostrada, adormeceu profundamente.
Juliana em cima não dormia. A dor passara-lhe — e agitava-se sobre o enxergão, "com o diabo da espertina"! Como tantas outras noites, nas últimas semanas. Porque desde que apanhara a carta no sarcófago vivia numa febre; mas a alegria era tão aguda, a esperança tão larga que a sustentavam, lhe davam saúde! Deus enfim tinha-se lembrado dela! Desde que Basílio começara a vir a casa, tivera logo um palpite, uma coisa que lhe dizia que tinha chegado enfim a sua vez! A primeira satisfação fora naquela noite em que achara, depois de
Basílio sair às dez horas, a travessinha de Luísa caída ao pé do sofá. Mas que explosão de felicidade, quando, depois de tanta espionagem, de tanta canseira, apanhou enfim a carta no sarcófago! Correu ao sótão, leu-a avidamente, e quando viu a importância da "coisa" arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; arremessou a sua alma perversa para as alturas, bradando em si, num triunfo:
—
Bendito seja Deus! Bendito seja Deus!
E que havia de fazer aquilo? — foi então a sua inquietação. Ora pensava na vender a Luísa por uma forte soma. . Mas onde tinha ela o dinheiro? Não; o melhor era esperar a volta de Jorge, e com ameaças de a publicar, extorquir-lhe um ror de libras por meio de outra pessoa, já se vê, e ela à capa! E em certos dias em que a figura, as toaletes, as passeatas de Luísa a irritavam mais, vinham-lhe venetas de sair para a rua, chamar os vizinhos, ler o papel, pô-la mais rasa que a lama, vingar-se da cabra!
Foi a tia Vitória que a calmou, e a dirigiu. Disse-lhe logo que para a armadilha ser completa era necessário uma carta do janota. Começara então o lento trabalho de lha apanhar! Fora preciso muita finura, muita chave experimentada, duas feitas por moldes de cera, paciência de gato, habilidades de ratoneiro! Mas pilhou-a, e que carta! Tinha-a lido com a tia Vitória — que rira, rira!.. Sobretudo o bilhete em que Basílio lhe dizia: "Hoje não posso ir, mas espero-te amanhã às duas; mando-te essa rosinha, e peço-te que faças o que fizeste à outra, trazê-la no seio, porque é tão bom quando vens assim, sentir-te o peitinho perfumado!. . " A tia Vitória, sufocada, a quis mostrar à sua velha amiga, a Pedra, a Pedra gorda, que estava na saleta.
A Pedra torceu-se! Os seus enormes seios, pendentes como odres mal cheios tinham sacudidelas furiosas de hilaridade. E com as mãos nas ilhargas, rubra, roncando, com o seu vozeirão de trombone:
—
Essa é das boas, tia Vitória! Essa é de mestre. Não, isso merece ir para os papéis. Ai os bêbedos! Raios do diabo!
A tia Vitória, então, disse muito seriamente a Juliana:
—
Bem; agora tens a faca e o queijo! Com isso já podes falar do alto. E
esperar a ocasião. Muito bons modos, cara prazenteira, sorrisos a fartar para ela não desconfiar, e o olho alerta. Tens o rato seguro, deixa-o dar ao rabo!
E desde esse dia Juliana saboreava com delicias, com gula, muito consigo —
aquele gozo de a ter "na mão", a Luisinha, a senhora, a patroa, a Piorrinha!
Via-a aperaltar-se, ir ao homem, cantarolar, comer bem — e pensava com uma voluptuosidade felina: "Anda, folga, folga, que eu cá ta tenho armada!"
Aquilo dava-lhe um orgulho perverso. Sentia-se vagamente senhora da casa.
Tinha ali fechada na mão a felicidade, o bom nome, a honra, a paz dos patrões! Que desforra!
E o futuro, estava certo! Aquilo era dinheiro, o pão da velhice. Ah! Tinha-lhe chegado o seu dia! Todos os dias rezava uma salve-rainha de graças a Nossa Senhora, mãe dos homens!
Mas agora, depois daquela cena com Luísa — não podia ficar de braços cruzados, com as cartas na algibeira. Devia sair de casa, pôr-se em campo, fazer alguma coisa. O quê? A tia Vitória é que havia de dizer..
Logo pela manhã às sete horas, sem tomar o seu café, sem falar a Joana, desceu devagar, saiu.
A tia Vitória não estava em casa. Gente na saleta esperava. O Sr. Gouveia, com a borla do barretinho muito arrebitada, escrevinhava, dobrado, cuspilhando o seu catarro. Juliana deu os bons-dias em redor, e sentou-se a um canto, direita com a sua sombrinha nos joelhos.
Conversava-se; e uma mulher de trinta anos, picada das bexigas, que estava sentada no canapé, depois de ter dado um sorriso a Juliana, continuou, voltada para uma gordita com um xale de quadrados vermelhos:
—
Pois não imagina, Sra. Ana, não faz ideia! É uma desgraça! É todas as noites como um carro. As vezes até acordo com o barulho que ele faz a falar só, a tropeçar na escada. . Eu, do que tenho mais medo, é que o demónio adormeça com a luz e haja um rogo. Ah! É de todo!
—
Quem? — perguntou um rapazola bonito, com uma blusa de trintanário, que falava de pé a um criado alto, de suíças e gravata branca enxovalhada.
—