Também tens razão. Até ver em que param as modas, vem cá dormir.
Jantas cá hoje; tenho uma rica pescada. .
—
Mas não haverá perigo, tia Vitória, se o Brito vai à polícia. .
A tia Vitória encolheu os ombros, e impacientada:
—
Olha, vai-te, que me estás a enfrenesiar! Polícia! Qual polícia! Essas coisas levam-se lá à polícia... Deixa a coisa comigo! Adeus — e às quatro para jantar, hem!
Juliana saiu como levada pelo ar! Um conto de réis! Era o conto de réis que voltava, o que já um dia entrevira, que lhe fugira, que lhe vinha agora cair na mão, com um tlintlim de libras e um frufru de notas! E o cérebro enchia-selhe confusamente de perspetivas diferentes, todas maravilhosas; um mostrador de capelista onde ela venderia! Um marido ao seu lado, às horas da ceia! Pares de botinas das boas, das chiques. Onde poria o dinheiro? No banco? Não; no fundo da arca — para estar mais seguro, mais à mão!
Para passar a sua manhã, comprou uma quarta de rebuçados, e foi-se sentar no Passeio, com a sombrinha aberta, deliciando-se, ruminando já a sua vida rica, julgando-se já senhora; mesmo fez olho a um proprietário pacifico e rubicundo que se afastou escandalizado!
Aquela hora Luísa acordava. E sentando-se bruscamente na cama: — "É
hoje!" — foi o seu primeiro pensamento. Um susto, uma tristeza horrível contraíram-lhe o coração. Começou depois a vestir-se, muito nervosa com a ideia de ver Juliana! Estava mesmo imaginando fechar-se, não almoçar, sair pé ante pé às onze horas, ir procurar Basílio ao hotel, quando a voz de Joana disse à porta do quarto:
—
A senhora faz favor?
Começou logo a contar, muito espantada, que a Sra. Juliana tinha saído de manhã; ainda não voltara; estava tudo por arrumar..
—
Bem, arranje-me o almoço, eu já vou. . — Que alívio para ela!
Calculou logo que Juliana deixara a casa. Para quê? Para lhe armar alguma, decerto! O melhor era sair imediatamente. . Podia esperar Basílio no Paraíso.
Foi à sala de jantar, bebeu um gole de chá, de pé, à pressa.
—
A Sra. Juliana ter-lhe-á dado alguma coisa? — veio dizer Joana assombrada.
Luísa encolheu os ombros; respondeu vagamente:
—
Depois se saberá...
Era hora e meia; foi pôr o chapéu. O coração batia-lhe alto, e apesar do terror de ver entrar Juliana, não se decidia a sair; sentou-se mesmo, com o saco de marroquim nos joelhos. "Vamos!", pensou enfim. — Ergueu-se; mas parecia que alguma coisa de subtil e de forte a prendia, a enleava. . Entrou na alcova devagar; o seu roupão estava caído aos pés da cama, as suas chinelinhas sobre o tapete felpudo. . — Que desgraça! — disse alto. Veio ao toucador, mexeu nos pentes, abriu as gavetas; de repente entrou na sala, foi ao álbum, tirou a fotografia de Jorge, meteu-a toda trémula no saco de marroquim, olhou ainda em roda como desvairada, saiu, atirou com a porta, desceu a escada correndo.
À Patriarcal passava um cupê de praça. Tomou-o, mandou-o a ir ao Hotel Central.
O Sr. Brito saíra logo de manhã cedo, disse o porteiro muito azafamado.
Decerto algum paquete chegara, porque entravam bagagens, fortes malas cobertas de oleado, caixas de madeira debruadas de ferro; passageiros com ar espantado da chegada, ainda entontecidos do balouço do mar, falavam, chamavam. Aquele movimento animou-a; veio-lhe um desejo de viagens, do ruído noturno das gares à claridade do gás, da agitação alegre das partidas nas manhãs frescas, sobre o tombadilho dos paquetes!
Deu ao cocheiro a adresse do Paraíso. E à maneira que o trem trotava parecia-lhe que toda a sua vida passada, Juliana, a casa, se esbatiam, se dissipavam num horizonte abandonado. A porta de um livreiro julgou entrever Julião; debruçou-se pela portinhola, precipitadamente; não o avistou, teve pena; ia-se sem ver um amigo da casa! Todos agora,
Julião, Ernestinho, o Conselheiro, D. Felicidade lhe pareciam adoráveis, com qualidades nobres, que nunca percebera, que repentinamente tomavam um grande encanto. E o pobre Sebastião, tão bom! Nunca mais lhe ouviria tocar a sua malaguenha!
Ao fim da Rua do Ouro o cupê parou num embaraço de carroças, e Luísa viu no passeio ao lado o Castro, o Castro dos óculos, o banqueiro, o que Leopoldina lhe dizia que tinha uma paixão por ela; um rapazito roto ofereceu-
lhe cautelas; e o Castro nédio, com os dois polegares nas algibeiras do colete branco, dizia graças ao rapaz, com um desdém ricaço, dardejando olhadelas sobre Luísa, através dos seus óculos de ouro. Ela, pelo canto do olho, observava-o; tinha uma paixão por ela, aquele homem, que horror! Achava-o medonho, com o seu ventre pançudo, a perninha curta. A lembrança de Basílio atravessou-a, a sua linda figura!. . — e bateu nos vidros impaciente, com pressa de o ver.
O trem partiu enfim. O Rossio reluzia ao sol; do americano, parado à esquina, gente descia apressada, de calças brancas, vestidos leves, vinda de Belém, de Pedrouços; pregões cantavam. — Todos ali ficavam nas suas famílias, nas suas felicidades; só ela partia!
Na Rua Ocidental, viu vir a D. Camila — uma senhora casada com um velho, ilustre pelos seus amantes. Parecia grávida; e adiantava-se devagar, com a face branca satisfeita, uma lassitude do corpo arredondado, passeando um marmanjozinho de jaqueta cor de pinhão, uma pequerrucha de sainhas tufadas, e adiante uma ama, vestida de lavradeira, empurrava um carrinho de mão onde um bebé se babava. E a Camila, feliz, vinha tranquilamente pela rua expondo as suas fecundidades adúlteras! Era muito festejada; ninguém dizia mal dela; era rica, dava soirées. . — "O que é o mundo!" — pensava Luísa.
O trem parou à porta do Paraíso, era meio-dia. A portinha em cima estava fechada: e a patroa apareceu logo, ciciando que sentia muitíssimo, mas só o
senhor é que tinha a chavezinha; se a senhora quisesse descansar.. Nesse momento outra carruagem chegou, e Basílio apareceu galgando os degraus.
—
Até que enfim! — exclamou abrindo a porta. — porque não vieste ontem?...
—
Ah! Se tu soubesses. .
E, agarrando-lhe os braços, cravando os olhos nele: