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Ela não respondeu; duas lágrimas silenciosas, correram-lhe pelos cantos dos olhos.

Devia ser a última sensação; a prostração comatosa ia-a imobilizando, apenas a sua cabeça rolava num movimento doce e vagaroso sobre o travesseiro, gemendo sempre com um cansaço triste; a pele empalidecia como um vidro de janela, por trás do qual lentamente uma luz se apaga; e mesmo os ruídos da rua que começavam não a impressionavam, como se fossem muito distantes e abafados em algodão.

Ao meio-dia D. Felicidade apareceu. Ficou petrificada quando a viu tão mal; e ela que a vinha buscar para irem à Encarnação, talvez às lojas! Tirou logo o chapéu, instalou-se; fez arranjar a alcova, tirar as bacias, os velhos sinapismos que arrastavam, compor a cama — porque não havia pior para um doente que desarranjo no quarto; e muito corajosamente animava Jorge.

Uma carruagem parou à porta. Era o Dr. Caminha, enfim!. . Entrou atabafado no seu cachené de quadrados verdes e pretos queixando-se muito do frio; — e tirando devagar as grossas luvas de casimira, que pós dentro do chapéu metodicamente, adiantou-se para a alcova com um passo cadenciado, acamando com a mão as suas repas grisalhas já muito coladas ao crânio pela escova.

Julião e ele ficaram sós na alcova.

No quarto os outros esperavam calados, ao pé de Jorge, pálido como cera, com os olhos vermelhos como carvões.

Vai-se-lhe pôr um cáustico na nuca — veio dizer Julião.

Jorge devorava com o olhar ansioso o Dr. Caminha, que se pusera a calçar tranquilamente as suas luvas de casimira, dizendo:

Vamos a ver com o cáustico. Não está bem. . Mas há ainda pior. E eu volto, meu amigo, eu volto.

O cáustico foi inútil. Não o sentia, imóvel e branca, com as feições crispadas; e tremuras passaram-lhe de repente nos nervos da face como vibrações fugitivas.

Está perdida — disse Julião baixo a Sebastião.

D. Felicidade ficou muito aterrada, falou logo nos sacramentos.

Para quê? — resmungou Julião impaciente.

Mas D. Felicidade declarou que tinha escrúpulos, que era um pecado mortal; e chamando Jorge para o vão da janela, toda trémula:

Jorge, não se assuste, mas seria bom pensar nos sacramentos. .

Ele murmurava como assombrado:

Os sacramentos!

Julião chegou-se bruscamente, e quase zangado:

Nada de tolices! Qual sacramentos! Para quê? Ela nem ouve, nem compreende, nem sente. E necessário deitar-lhe outro cáustico, talvez ventosas, e é o que é! Isso é que são os sacramentos!

Mas D. Felicidade escandalizada, muito abalada, começou a chorar.

Esqueciam Deus, e em Deus é que está o remédio! — dizia, assoando-se com estrondo.

Pelo que Deus faz por mim... — exclamou Jorge, saindo do seu torpor.

E batendo as mãos, como revoltado por uma injustiça: — porque realmente, que fiz eu para isto? Que fiz eu?. .

Julião ordenara outro cáustico. Havia agora na casa um movimento alucinado.

Joana entrava de repente com um caldo inútil que ninguém pedira, os olhos muito vermelhos de chorar. Mariana soluçava pelos cantos. D. Felicidade ia, vinha pelo quarto, refugiando-se na sala para rezar, fazendo promessas, lembrando que se chamasse o Dr. Barbosa, o Dr. Barral.

E Luísa no entanto estava imóvel; uma cor macilenta ia-lhe dando às faces tons cavados e rígidos.

Julião extenuado pediu um cálice de vinho, uma fatia de pão. Lembraram-se então que desde a véspera não tinham comido, e foram à sala de jantar onde

Joana, sempre lavada em lágrimas, serviu uma sopa, e ovos. Mas não achava as colheres, nem os guardanapos; murmurava rezas, pedia desculpa; enquanto Jorge, com os olhos inchados, fitos na borda da mesa, a face contraída, fazia dobras na toalha.

Depois de um momento pousou devagarinho a colher, desceu ao quarto.

Mariana estava sentada aos pés do leito; Jorge disse-lhe que fosse servir os senhores; e apenas ela saiu, deixou-se cair de joelhos, tomou uma das mãos de Luísa, chamou-a baixo; depois mais forte:

Escuta-me. Ouve, pelo amor de Deus. Não estejas assim, faz por melhorar. Não me deixes neste mundo, não tenho mais ninguém! Perdoa-me.

Diz que sim. Faz sinal que sim ao menos. Não me ouve, meu Deus!

E olhava-a ansiosamente. Ela não se movia.

Ergueu então os braços ao ar numa desesperação alucinada.

Sabes que creio em ti, meu Deus. Salva-a! Salva-a! — E arremessava a sua alma para as alturas: — Ouve, meu Deus! Escuta-me! Sê bom!

Olhava em roda, esperando um movimento, uma voz, um acaso, um milagre!

Mas tudo lhe pareceu mais imóvel. A face lívida cavava-se; o lenço que lhe envolvia a cabeça desarranjara-se, via-se o crânio rapado, de uma cor ligeiramente amarelada. Pôs-lhe então a mão na testa, hesitando, com medo;

pareceu-lhe que estava fria! Abafou um grito, correu para fora do quarto, e deu com o Dr. Caminha que entrava, tirando pausadamente as luvas.

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