Dezoito. Perdiam a vista da família real, era pena!. . Pois estava mais longe daquela noitada de teatro!. . — E erguendo-se passeava diante do toucador com olhares de lado, alisando os bandós, ajeitando as pulseiras, entalada nos espartilhos, a pupila luzidia.
Uma carruagem parou à porta.
—
O trem! — disse, toda risonha.
Luísa calçando as luvas, já com a capa, olhava em redor: o coração batia-lhe alto; nos seus olhos havia uma febre. Não lhe faltava nada? — perguntou D.
Felicidade. A chave da frisa? O lenço?
— Ai! O meu ramo!
Juliana ficou espantada quando a viu vestida para teatro. Foi iluminar, calada; e atirando a cancela com uma pancada insolente:
—
Não tem mesmo vergonha naquela cara! — rosnou.
O trem já rodava quando D. Felicidade rompeu a gritar, batendo nos vidros:
—
Ai? — Espere, pare! Que ferro, esqueceu-me o leque! Não posso ir sem leque!
—
Pare, cocheiro!
—
Faz-se tarde, filha, dou-te o meu. Toma! — fez Luísa impaciente.
Aquelas agitações abalavam a digestão comprimida de D. Felicidade; felizmente, como ela dizia, arrotava! Graças a Deus, louvada seja Nossa Senhora, que podia arrotar!
Mas a descida do Chiado alegrou-a muito. Grupos escuros, onde se gesticulava, destacavam às portas vivamente alumiadas da Casa Havanesa; os trens passavam para o lado do Picadeiro, com um rápido reluzir de lanternas ricas, que iluminavam as bandas brancas dos capotes dos criados. D.
Felicidade, com a sua face jubilosa à portinhola, gozava a claridade do gás nas vitrinas, o ar de inverno; e foi com uma satisfação que viu o guarda-portão do Gibraltar, de calções vermelhos, vir com o boné na mão, à portinhola.
Perguntaram por Jorge.
E caladas, olhavam a escada de lance decorativo onde globos foscos derramavam uma luz doce. D. Felicidade, muito curiosa da "vida de hotel", reparou na engomadeira que entrou com um cesto de roupa; depois numa senhora que lhe pareceu estabanada, e que descia, vestida de soirée, mostrando o pé calçado num sapato redondo de cetim branco; e sorria de ver sujeitos roçarem-se pelo trem, lançando para dentro olhares gulosos.
—
Estão a arder por saber quem somos.
Luísa calada apertava nas mãos o seu ramo. Enfim Jorge apareceu no alto da escada, conversando muito interessadamente com um sujeito magríssimo, de
chapéu ao lado, as mãos nos bolsos de umas calças muito estreitas, e um enorme charuto enristado ao canto da boca. Paravam, gesticulavam, cochichavam. Por fim o sujeito apertou a mão de Jorge, falou-lhe ao ouvido, riu baixo, torcendo-se, bateu-lhe no ombro, obrigou-o muito seriamente a aceitar outro charuto — e pondo o chapéu mais ao lado foi conversar com o guarda-portão.
Jorge correu à portinhola do trem, rindo:
— exclamou Luísa.
—
Então que extravagância é esta? Teatro, tipoias!. . Eu reclamo o divórcio! Parecia muito jovial. Somente tinha pena de não estar vestido..
Ficaria atrás no camarote. E para as não amarrotar subiu para a almofada.
CAPÍTULO XIII
Passava das oito horas quando o trem parou em São Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de contentamento, sentindo a cauda do vestido de seda arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.
O pano já estava levantado. Era à luz diminuída da rampa, a decoração clássica de uma cela de alquimista; embrulhado num roupão monástico, com uma abundância hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis, Fausto cantava, desiludido das ciências, pousando sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante. Um cheiro vago de gás extravasado errava sutilmente. Aqui e além tosses expetoravam. Havia ainda pouca gente. Entrava-se.
Na frisa, para se colocarem, D. Felicidade e Luísa cochichavam, com gestozinhos de recusa, olhares suplicantes:
—
Oh, D. Felicidade, por quem é!
—
Se estou aqui muito bem..
—