Aquela hora D. Felicidade e Luísa chegavam ao Passeio.
Era benefício; já de fora se sentia o bruaá lento e monótono, e via-se uma névoa alta de poeira, amarelada e luminosa.
Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram Basílio. Fez-se muito surpreendido, exclamou:
—
Que feliz acaso!
Luísa corou; apresentou-o a D. Felicidade.
A excelente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se dele, mas se não lhe dissessem talvez o não conhecesse! Estava muito mudado!
—
Os trabalhos, minha senhora. . — disse Basílio curvando-se. E
acrescentou rindo, batendo com a bengala na pedra do tanque:
—
E a velhice! Sobretudo a velhice!
Na água escura e suja as luzes do gás torciam-se até uma grande profundidade.
As folhagens em redor estavam imóveis, no ar parado, com tons de um verde lívido e artificial. Entre os dois longos renques paralelos de árvores mesquinhas, entremeadas de candeeiros de gás, apertava-se, num empoeiramento de macadame, uma multidão compacta e escura; e através do
rumor grosso, as saliências metálicas da música faziam passar no ar pesado, compassos vivos de valsa.
Tinham ficado parados, conversando.
—
Que calor, hem? Mas a noite estava linda! Nem uma aragem! Que enchente!
E olhavam a gente que entrava: moços muito frisados, com calças cor de flor de alecrim, fumando cerimoniosamente os charutos do dia santo; um aspirante com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado; duas meninas de cabelo riçado, de movimentos gingados que lhe desenhavam os ossos das omoplatas sob a fazenda do vestido atabalhoado; um eclesiástico cor de cidra, o ar mole, o cigarro na boca, e lunetas defumadas; uma espanhola com dois metros de saia branca muito rija, fazendo ruge-ruge na poeira; o triste Xavier, poeta; um fidalgo de jaquetão e bengalão, de chapéu na nuca, o olho avinhado; e Basílio ria muito de dois pequenos que o pai conduzia com um ar hilare e compenetrado — vestidos de azul-claro, a cinta ligada numa faixa escarlate, barretinas de lanceiros, botas à húngara, cretinos e sonâmbulos.
Um sujeito alto então passou rente deles, e voltando-se, revirou para Luísa dois grandes olhos langorosos e prateados; tinha uma pêra longa e aguçada; trazia o colete decotado mostrando um belo peitilho, e fumava por uma boquilha enorme que representava um zuavo.
Luísa quis-se sentar.
Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu a arranjar cadeiras; e acomodaram-se ao pé de uma família acabrunhada e taciturna.
—
Que fizeste tu hoje, Basílio? — perguntou Luísa.
Tinha ido aos touros.
—
E que tal? Gostaste?
—
Uma sensaboria. Se não fosse pelo trambolhão do Peixinho tinha-se morrido de pasmaceira. Gado fraco, cavaleiros infelizes, nenhuma sorte!
Touros em Espanha! Isso sim!
D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto em Badajoz, quando estivera de visita em Elvas à tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando. O
sangue, as tripas dos cavalos... "Puh! E muito cruel!"
Basílio disse, com um sorriso:
—
Que faria se visse os combates de galos, minha senhora!
D. Felicidade tinha ouvido contar — mas achava todos esses divertimentos bárbaros, contra a Religião.
E recordando um gozo que lhe punha um riso na face gorda:
—
Para mim não há nada como uma boa noite de teatro! Nada!
—