Ai, filha! Estou que arrebento!
Passava a mão no estômago; tinha a face envelhecida.
—
E o Conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio. .
Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:
—
É muito simpático, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro fidalgo.
Que eles conhecem-se, filha!
Declarou-se muito fatigada, apenas saíram o portão. Era melhor tomarem um trem.
Basílio achava preferível subirem a pé até ao Largo do Loreto. A noite estava tão agradável! E o andar fazia bem à senhora D. Felicidade!
Depois diante do Martinho, falou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade; Luísa tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.
No Rossio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca "do Arsenal"; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu abafava — e na noite escura, a coluna da estátua de D.
Pedro tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada.
Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. "Que horror de cidade!" — pensava. —
"Que tristeza!" E lembrava-lhe Paris, de verão; subia, à noite, no seu faéton, os Campos Elísios devagar; centenares de vitórias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos e mimosos de
mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura aveludada, e os castanheiros espalham um aroma subtil. Dos dois lados, dentre os árvoredos, saltam as claridades violentas dos cafés cantantes, cheios do bruaá das multidões alegres, dos brios impulsivos das orquestras, os restaurantes flamejam; há uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sai das janelas dos palacetes, através dos estores de seda, a luz sóbria e velada das existências ricas. Ah! Se lá estivesse! — Mas ao passar junto dos candeeiros olhava de lado para Luísa; o seu perfil fino sob o véu branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava a linha da cinta de um modo lânguido e prometedor.
Veio-lhe uma certa ideia, começou a dizer: Que pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se pudesse ir tomar uma asa de perdiz e beber uma garrafa de champanhe frappe!
Luísa não respondeu. Devia ser delicioso — pensava. — Mas D. Felicidade exclamou:
—
Perdiz, a esta hora!
—
Perdiz ou outra qualquer coisa.
Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!
Subiam pela Rua Nova do Carmo. Os candeeiros davam uma luz mortiça; as altas casas dos dois lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem ruído, sinistra e subtil.
Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria; a sua voz aguda e chorosa prometia a fortuna, muitos contos de réis. D.
Felicidade ainda parou, com uma tentação. . Mas uma troça de rapazes bêbedos que descia de chapéu na nuca, falando alto, aos tropeções, assustou muito as duas. Luísa encolheu-se logo contra Basílio; D. Felicidade enfiada agarrou-lhe ansiosamente o braço, quis-se meter numa carruagem; e até ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem largar o braço de Basílio. Da fileira de tipoias, ao lado das grades da Praça de Camões, um cocheiro lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada apanhando confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, excitado, gritando:
—
Pronto, meu amo, pronto!
Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou — e Luísa desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito da pêra.
Entraram para a caleche. Luísa ainda se voltou para ver Basílio imóvel no largo, com o seu chapéu na mão; depois acomodou-se, pôs os pezinhos no outro assento e balançada pelo trote largo viu passar, calada, as casas apagadas
da Rua de São Roque, as árvores de São Pedro de Alcântara, as fachadas estreitas do Moinho de Vento, os jardins adormecidos da Patriarcal. A noite estava imóvel, de um calor mole, e desejava, sem saber porque, rolar assim sempre, infinitamente, entre ruas, entre grades cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino, sem cuidados, para alguma coisa de feliz que não distinguia bem! Um grupo em frente da Escola ia tocando o Fado do Vimioso; aqueles sons entraram-lhe na alma como um vento doce, que fazia agitar brandamente muitas sensibilidades passadas, suspirou baixo.
—
Um suspirozinho que vai para o Alentejo — disse D. Felicidade, tocando-lhe no braço.
Luísa sentiu todo o sangue abrasar-lhe o rosto. Davam onze horas quando entrou em casa.
Juliana veio iluminar. — O chá estava pronto, quando a senhora quisesse. .
Luísa subiu daí a pouco com um largo roupão branco, muito fatigada; na poltrona; sentia vir-lhe uma sonolência; a cabeça pendia-lhe; cerravas as pálpebras... E Juliana tardava tanto com o chá! Chamou-a. Onde estava?
Credo!
Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luísa. E aí tomando o vestido, as saias engomadas que ela despira e atirara para cima da poltrona, desdobrou-as, examinou-as, e com uma certa ideia, cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo lavado e quente, com uma pontinha de suor e de água-de-colónia.
Quando a sentiu chamar, impacientar-se em cima, subiu, correndo. — Fora abaixo dar uma arrumadela. Era o chá? Estava pronto...
E entrando com as torradas: