"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » 🐘 🐘 A Viagem do Elefante - de José Saramago🐘 🐘

Add to favorite 🐘 🐘 A Viagem do Elefante - de José Saramago🐘 🐘

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

secretário, deu m ais ou m enos o seguinte, Subhro. Subro, repetiu o rei, que diabo de nom e é esse, Com agá, m eu senhor, pelo m enos foi o que ele disse, aclarou o secretário, Devíam os ter-lhe cham ado Joaquim quando chegou a Portugal, resm ungou o rei.

Três dias depois, pela tardinha, o estribeiro-m or, à frente da sua escolta, bastante m enos luzida agora graças à suj eira dos cam inhos e aos inevitáveis e m alcheirosos suores, tanto os equinos com o os hum anos, desm ontou à porta do palácio, sacudiu-se da poeira, subiu a escada e entrou na antecâm ara que pressurosam ente acorreu a indicar-lhe o lacaio-m or, título que, m elhor é que o confessem os j á, não sabem os se realm ente existiu naquele tem po, m as que nos pareceu adequado pela com posição do olor corporal, um m isto de presunção e falsa hum ildade, que em volutas se desprendia da personagem . Ansioso por conhecer a resposta do arquiduque, o rei recebeu im ediatam ente o recém -chegado. A rainha catarina estava presente no salão de aparato, o que, considerando a transcendência do m om ento, a ninguém deverá surpreender, m orm ente sabendo-se que, por decisão do rei seu m arido, ela participa regularm ente nas reuniões de estado, onde nunca se com portou com o passiva espectadora. Havia outra razão para querer ouvir a leitura da carta logo à sua chegada, a rainha alim entava a vaga esperança, em bora não lhe parecesse plausível a hipótese, de que a m issiva do arquiduque m axim iliano viesse escrita em alem ão, caso em que a m ais bem colocada das tradutoras j á estaria ali, por assim dizer à m ão de sem ear, pronta para o serviço. Neste m eio-tem po, o rei havia recebido o rolo das m ãos do estribeiro-m or, ele próprio o desenrolou depois de lhe desatar as fitas seladas com as arm as do arquiduque, m as foi suficiente um sim ples relance de olhos para perceber que vinha escrita em latim . Ora, dom j oão, o terceiro de portugal com este nom e, em bora não ignorante em latinações, porque estudos tivera-os no tem po da sua j uventude, tinha perfeita consciência de que as inevitáveis dúvidas, as pausas dem asiado prolongadas, os m ais que prováveis erros de interpretação, iriam dar aos presentes um a m ísera e afinal não m erecida im agem da sua real figura. Com a agilidade de espírito que j á lhe conhecem os e a consequente fluidez de reflexos, o secretário tinha dado dois passos discretos em frente e esperava. Em tom natural, com o se a m arcação da cena tivesse sido ensaiada antes, o rei disse, O senhor secretário fará a leitura, traduzindo ao português a m ensagem na qual o nosso am ado prim o m axim iliano certam ente responde à oferta do elefante salom ão, parece-m e dispensável fazer leitura integral da carta, basta que neste m om ento conheçam os o essencial dela, Assim se fará, m eu senhor. O secretário passeou os olhos pelas extensas e redundantes fórm ulas de cortesia que o estilo epistolar do tem po fazia proliferar com o cogum elos depois da chuva, procurou m ais abaixo e encontrou. Não traduziu, anunciou apenas, O arquiduque m axim iliano de áustria aceita e agradece a oferta do rei de portugal. No real rosto, entre a m assa pilosa form ada pela barba e pelo bigode, espreitou um sorriso de satisfação. A rainha sorriu tam bém , ao m esm o tem po que j untava as m ãos num gesto de agradecim ento que, passando em prim eiro lugar pelo arquiduque m axim iliano de áustria, tinha a deus todo-poderoso com o últim o destinatário. As contradições que andavam a digladiar-se no íntim o da rainha haviam chegado a um a síntese, a m ais banal de todas, ou sej a, que ninguém foge ao seu destino. Tom ando novam ente a palavra, o secretário deu a conhecer, num a voz em que a gravidade m onacal do latim parecia ressoar na elocução do português corrente em que se expressava, outras disposições que a carta continha, Diz que não tem claro em que altura partirá

para viena, talvez aí por m eados de outubro, m as não é certo, E nós estam os nos princípios de agosto, anunciou desnecessariam ente a rainha, Tam bém diz o arquiduque, m eu senhor, que vossa alteza, querendo, não necessita ficar à espera de que se aproxim e a data da partida para enviar o solim ão a valladolid, Que solim ão é esse, perguntou, enxofrado, o rei, ainda não tem lá o elefante e j á lhe quer m udar o nom e, Solim ão, o m agnífico, m eu senhor, o sultão otom ano, Não sei o que faria eu sem si, senhor secretário, com o conseguiria saber quem é esse tal solim ão se a sua brilhante m em ória não estivesse aí para m e ilustrar e orientar a toda a hora, Peço perdão, m eu senhor, disse o secretário. Houve um silêncio em baraçoso em que todos os presentes evitaram olhar-se. A cara do funcionário, depois de um afluxo rápido de sangue, estava agora lívida. Sou eu quem deve pedir perdão, disse o rei, e peço-lho sem nenhum constrangim ento, salvo o da m inha consciência, Meu senhor, balbuciou pêro de alcáçova carneiro, não sou ninguém para lhe perdoar sej a o que for, É o m eu secretário, a quem acabo de faltar ao respeito, Por favor, m eu senhor. O rei fez um gesto a im por silêncio, e finalm ente disse, Salom ão, que assim continuará a cham ar-se enquanto aqui estiver, não im agina as perturbações que tem originado entre nós a partir do dia em que decidi dá-lo ao arquiduque, creio que, no fundo, ninguém aqui quer que ele se vá, estranho caso, não é gato que se roce nas nossas pernas, não é cão que nos olhe com o se fôssem os o seu criador, e, no entanto, aqui estam os aflitos, quase em desespero, com o se algo nos estivesse a ser arrancado, Ninguém o teria expressado m elhor que vossa alteza, disse o secretário, Regressem os à questão, em que ponto tínham os ficado nesta história do envio de salom ão a valladolid, perguntou o rei, Escreve o arquiduque que seria bom que ele não tardasse dem asiado a fim de se ir habituando à m udança das pessoas e do am biente, a palavra latina utilizada não significa exatam ente isso, m as é o m elhor que posso encontrar agora, Não será preciso dar-lhe m ais voltas, nós com preendem os, disse o rei. Depois de um m inuto de reflexão acrescentou, O senhor estribeiro-m or tom ará a responsabilidade de organizar a expedição, dois hom ens para aj udarem o cornaca no seu trabalho, uns quantos m ais para se encarregarem do abastecim ento de água e de forragens, um carro de bois para o que for necessário, transportar a dorna, por exem plo, ainda que sej a certo que no nosso portugal não vão faltar rios nem ribeiras onde o salom ão possa beber e chafurdar, o pior é essa m aldita castela, seca e resseca com o um osso exposto ao sol, e, em rem ate, um pelotão de cavalaria para o im provável caso de alguém pretender roubar o nosso salom ãozinho, o senhor estribeiro-m or irá inform ando do andam ento do assunto o senhor secretário de estado, a quem peço desculpa por estar a m etê-lo nestas trivialidades, Não são trivialidades, m eu senhor, com o secretário, este assunto diz-m e particularm ente respeito porque o que aqui estam os fazendo é nada m ais nada m enos que alienar um bem do estado, Salom ão nunca deve ter pensado que era um bem do estado, disse o rei com um m eio sorriso, Bastaria que tivesse percebido que a água e a forragem não lhe caíam do céu, m eu senhor, A m im , interveio a rainha, ordeno e m ando que ninguém se lem bre de m e vir com unicar que o salom ão j á se foi em bora, eu o perguntarei quando entender, e então m e darão a resposta. A últim a palavra m al se percebeu, com o se o choro, subitam ente, tivesse constringido a real garganta. Um a rainha a chorar é um espetáculo de que, por decência, todos estam os obrigados a desviar os olhos. Assim o fizeram o rei, o secretário de estado e o estribeiro-m or.

Depois, quando ela j á havia saído e tinha deixado de ouvir-se o ruído das suas saias varrendo o chão, o rei lem brou, Era o que eu dizia, não querem os que salom ão se vá, Vossa alteza ainda está a tem po de se arrepender, disse o secretário, Arrependido estou, creio, m as o tem po acabou-se,

salom ão j á vai a cam inho, Vossa alteza tem questões m ais im portantes a tratar, não perm ita que um elefante se torne em centro das suas preocupações, Com o se cham a o cornaca, perguntou subitam ente o rei, Subhro, creio, senhor, Que significa, Não sei, m as poderei perguntar-lho, Pergunte-lhe, quero saber em que m ãos vai ficar salom ão, As m esm as em que j á estava antes, m eu senhor, perm ita que lhe recorde que o elefante veio da índia com este cornaca, É diferente estar longe ou estar perto, até hoj e nunca m e tinha im portado saber com o se cham ava o hom em , agora sim , Com preendo-o, m eu senhor, É o que m e agrada na sua pessoa, não precisa que lhe digam as palavras todas para perceber de quê se está falando, Tive um bom m estre em m eu pai e vossa alteza não o é som enos, À prim eira vista o elogio não vale grande coisa, m as sendo seu pai a m edida dou-m e por satisfeito, Perm ite vossa alteza que m e retire, perguntou o secretário, Vá, vá ao seu trabalho, e não se esqueça das roupas novas para o cornaca, com o disse que se cham ava ele, Subhro, m eu senhor, com agá, Bem .

Aos dez dias desta conversação, ainda o sol m al apontava no horizonte, salom ão saía do cercado onde durante dois anos m alvivera. A caravana era a que havia sido anunciada, o cornaca, que presidia, lá no alto, sentado nos om bros do anim al, os dois hom ens para o aj udarem no que viesse a ser preciso, os outros que deveriam assegurar o abastecim ento, o carro de bois com a dorna da água, que os acidentes do cam inho constantem ente faziam ir e vir de um lado a outro, e um gigantesco carregam ento de fardos de forragem variada, o pelotão de cavalaria que responderia pela segurança da viagem e a chegada de todos a bom porto, e, por fim , algo de que o rei não se tinha lem brado, um carro da intendência das forças arm adas puxado por duas m ulas.

A hora, tão m atutina, e o segredo com que havia sido organizada a saída, explicavam a ausência de curiosos e outras testem unhas, havendo que ressalvar, no entanto, a presença de um a carruagem do paço que se pôs em m ovim ento na direção de lisboa quando elefante e com panhia desapareceram na prim eira curva da estrada. Dentro, iam o rei de portugal, dom j oão, o terceiro, e o seu secretário de estado, pêro de alcáçova carneiro, a quem talvez não vej am os m ais, ou talvez sim , porque a vida ri-se das previsões e põe palavras onde im aginám os silêncios, e súbitos regressos quando pensám os que não voltaríam os a encontrar-nos. Esqueci-m e do significado do nom e do cornaca, com o era ele, estava perguntando o rei, Branco, m eu senhor, subhro significa branco, ainda que não o pareça. Num a câm ara do palácio, na m eia escuridão do dossel, a rainha dorm e e tem um pesadelo. Sonha que levaram o salom ão de belém , sonha que pergunta a todas as pessoas, Por que não m e haveis avisado, m as, quando se decidir a acordar, a m eio da m anhã, não repetirá a pergunta nem saberá dizer se, por sua iniciativa, a fará algum a vez. Pode acontecer que dentro de dois ou três anos alguém , casualm ente, pronuncie diante de si a palavra elefante, e então, sim , então a rainha de portugal, catarina de áustria, perguntará, Já que se fala de elefante, que é feito do salom ão, ainda está em belém ou j á o despacharam para viena, e quando lhe responderem que, em bora estando em viena, o que sim está é num a espécie de j ardim zoológico com outros anim ais selvagens, dirá, fazendo-se desentendida, Que sorte acabou por ter esse anim al, a gozar a vida na cidade m ais bela do m undo, e eu aqui, entalada entre hoj e e o futuro, e sem esperança em nenhum dos dois. O rei, se estiver presente, fará de conta que não ouviu, e o secretário de estado, o m esm o pêro de alcáçova carneiro que j á conhecem os, em bora não sej a pessoa de rezos, baste recordar o que disse da inquisição e sobretudo o que achou prudente calar, lançará um a súplica m uda aos céus para que cubram o elefante com um espesso m anto de olvido que lhe m odifique as form as e o confunda, nas im aginações preguiçosas, com um drom edário qualquer, bicho tam bém de raro aspecto, ou com um qualquer cam elo, a quem a fatalidade de carregar com duas bossas realm ente não favorece, e m uito m enos lisonj eia a m em ória de quem se interesse por estas insignificantes histórias. O

passado é um im enso pedregal que m uitos gostariam de percorrer com o se de um a autoestrada se tratasse, enquanto outros, pacientem ente, vão de pedra em pedra, e as levantam , porque precisam de saber o que há por baixo delas. Às vezes saem -lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas ou crisálidas a ponto, m as não é im possível que, ao m enos um a vez,

apareça um elefante, e que esse elefante traga sobre os om bros um cornaca cham ado subhro, nom e que significa branco, palavra esta totalm ente desaj ustada em relação à figura que, à vista do rei de portugal e do seu secretário de estado, se apresentou no cercado de belém , im unda com o o elefante que deveria cuidar. Há razões para com preender aquele ditado que sabiam ente nos avisa de que no m elhor pano pode cair a nódoa, e isso foi o que sucedeu ao cornaca e ao seu elefante. Quando foram para ali lançados, a curiosidade popular subiu ao rubro e a própria corte chegou a organizar seletas excursões a belém de fidalgos e fidalgas, de dam as e cavalheiros para verem o paquiderm e, m as em pouco tem po o interesse com eçou a decair, e o resultado viu-se, as roupas indianas do cornaca transform aram -se em farrapos e os pelos e as pintas do elefante quase vieram a desaparecer sob a crosta de suj idade acum ulada durante dois anos. Não é, porém , a situação de agora. Tirando a infalível poeira dos cam inhos que j á lhe vem suj ando as patas até m etade, salom ão avança airoso e lim po com o um a patena, e o cornaca, em bora sem as coloridas roupas indianas, reluz no seu novo fato de trabalho que, ainda por cim a, fosse por esquecim ento, fosse por generosidade, não teve de pagar. Escarranchado sobre o encaixe do pescoço com o tronco m aciço de salom ão, m anej ando o bastão com que conduz a m ontada, quer por m eio de leves toques quer com castigadoras pontoadas que fazem m ossa na pele dura, o cornaca subhro, ou branco, prepara-se para ser a segunda ou terceira figura desta história, sendo a prim eira, por natural prim azia e obrigado protagonism o, o elefante salom ão, e vindo depois, disputando em valias, ora este, ora aquele, ora por isto, ora por aquilo, o dito subhro e o arquiduque. Porém , quem neste m om ento leva a voz cantante é o cornaca. Olhando a um lado e a outro a caravana, percebeu nela um certo desalinho, com preensível se levarm os em conta a diversidade de anim ais que a com põem , isto é, elefante, hom ens, cavalos, m ulas e bois, cada um com a sua andadura própria, tanto natural com o forçada, pois está claro que nesta viagem ninguém poderá ir m ais depressa que o m ais vagaroso, e esse, j á se sabe, é o boi. Os bois, disse subhro, subitam ente alarm ado, onde estão os bois. Não se via som bra deles nem da pesada carga que arrastavam , a dorna cheia de água, os fardos de forragens. Ficaram para trás, pensou, tranquilizando-se, não há outro rem édio que esperar. Preparava-se para se deixar escorregar do elefante, m as desistiu. Podia ter necessidade de voltar a subir, e não o conseguir. Em princípio, era o próprio elefante que o levantava com a trom ba e praticam ente o depunha no assento.

Contudo, a prudência m andava prever aquelas situações em que o anim al, por m á disposição, por irritação, ou só para contrariar, se negasse a prestar serviço de ascensor, e aí é que a escada entraria em ação, em bora fosse difícil de crer que um elefante enfadado aceitasse tornar-se num sim ples ponto de apoio e perm itir, sem qualquer tipo de resistência, a subida do cornaca ou de quem quer que fosse. O valor da escada era m eram ente sim bólico, com o um relicário ao peito ou um a m edalhinha com a figura de um a santa qualquer. Neste caso, de toda a m aneira, a escada não podia valer-lhe, vinha no carro dos atrasados. Subhro cham ou um dos seus aj udantes para que fosse avisar o com andante do pelotão de cavalaria de que teriam de esperar pelo carro de bois. O descanso faria bem aos cavalos, que, verdade se diga, tam bém não haviam tido que esforçar-se m uito, nem um só galope, nem um só trote, tudo em passinho curto desde lisboa.

Nada que se parecesse à expedição do estribeiro-m or a valladolid, ainda na m em ória de alguns dos que ali iam , veteranos dessa heroica cavalgada. Os cavaleiros desm ontaram , os hom ens de a pé sentaram -se ou deitaram -se no chão, não poucos aproveitaram para dorm ir. Em poleirado no elefante, o cornaca deitou contas à viagem e não ficou satisfeito. A j ulgar pela altura do sol,

deviam ter andado um as três horas, m aneira de dizer dem asiado conciliatória porque um a parte não pequena desse tem po tinha-a gasto salom ão a tom ar banhos no tej o, alternando-os com voluptuosas chafurdices na lam a, o que, por sua vez, era m otivo, segundo a lógica elefantina, para novos e m ais prolongados banhos. Era evidente que salom ão estava excitado, nervoso, lidar com ele ia necessitar m uita paciência, sobretudo não o tom ar dem asiado a sério. Devem os ter perdido um a hora com as traquinices do salom ão, pensou o cornaca, e depois, passando dum a reflexão sobre o tem po a um a m editação sobre o espaço, Quanto cam inho terem os feito, um a légua, duas, perguntou-se. Cruel dúvida, transcendente questão. Se estivéssem os ainda entre os antigos gregos e rom anos, diríam os, com a tranquilidade que sem pre conferem os saberes adquiridos na vida prática, que as grandes m edidas itinerárias eram , nessa época, o estádio, a m ilha e a légua. Deixando em paz o estádio e a m ilha, com a sua divisão em pés e passos, fixem o-nos na légua, que foi a palavra que subhro em pregou, distância que tam bém se com punha de passos e pés, m as que tem a enorm e vantagem de nos colocar em terra conhecida.

Ora, ora, léguas toda a gente sabe o que são, dirão com o inevitável sorriso de ironia fácil os contem porâneos que nos couberam em sorte. A m elhor resposta que podem os dar-lhes é a seguinte, Sim , tam bém toda a gente o sabia na época em que viveu, m as só e unicam ente na época em que viveu. A velha palavra légua, ou leuga, que, dir-se-ia, parecia igual para todos e por todos os tem pos, por exem plo, fez um a longa viagem desde os sete m il e quinhentos pés ou m il e quinhentos passos que teve entre os rom anos e a baixa idade m édia até aos quilóm etros e m etros em que hoj e dividim os a distância, nada m enos que cinco e cinco m il, respectivam ente.

Encontraríam os casos sim ilares em qualquer área de m edição. E para não deixarm os a afirm ação sem prova, contem plem os o alm ude, m edida de capacidade que se dividia em doze canadas ou quarenta e oito quartilhos, e que em lisboa equivalia, núm eros redondos, a dezasseis litros e m eio, e, no porto, a vinte e cinco litros. E com o se entendiam eles, perguntará o leitor curioso e am ante do saber, E com o nos entenderem os nós, pergunta, fugindo à resposta, quem à conversação trouxe este assunto de pesos e m edidas. O qual, um a vez exposto com esta m eridiana clareza, nos perm itirá adotar um a decisão absolutam ente crucial, de certa m aneira revolucionária, a saber, enquanto o cornaca e os que o acom panham , porque não teriam outra m aneira de entender-se, irão continuar a falar de distâncias de acordo com os usos e costum es do seu tem po, nós, para que possam os perceber o que ali se vai passando nesta m atéria, usarem os as nossas m odernas m edidas itinerárias, sem ter de recorrer constantem ente a fastidiosas tábuas de conversão. No fundo, será, com o se num film e, desconhecido naquele século dezasseis, estivéssem os a colar legendas na nossa língua para suprir a ignorância ou um insuficiente conhecim ento da língua falada pelos atores. Terem os portanto neste relato dois discursos paralelos que nunca se encontrarão, um , este, que poderem os seguir sem dificuldade, e outro que, a partir deste m om ento, entra no silêncio. Interessante solução.

Todas estas observações, ponderações e cogitações levaram o cornaca a descer finalm ente do elefante, escorregando-lhe pela trom ba, e a encam inhar-se com voluntarioso passo para o pelotão de cavalaria. Era fácil distinguir onde se encontrava o com andante. Havia ali um a espécie de toldo que estaria protegendo do castigador sol de agosto um a personagem , logo a conclusão era facílim a de tirar, se havia um toldo, havia um com andante debaixo dele, se havia um com andante, teria de haver um toldo para o tapar. O cornaca levava um a ideia que não sabia

bem com o introduzir na conversação, m as o com andante, sem o saber, facilitou-lhe o trabalho, Então esses bois, aparecem ou não aparecem , perguntou, Saiba vossa senhoria que ainda não os vej o, m as pelo tem po devem estar a chegar, Esperem os que assim sej a. O cornaca respirou fundo e disse com a voz rouca de em oção, Se vossa senhoria m o perm ite, tive um a ideia, Se j á a tiveste não precisas da m inha perm issão, Vossa senhoria tem razão, m as eu, o português, falo-o m al, Diz lá então qual é a ideia, A nossa dificuldade está nos bois, Sim , ainda não apareceram , O

que quero dizer a vossa senhoria é que o problem a continuará m esm o depois de terem aparecido, Porquê, Porque os bois andam devagar por natureza, m eu senhor, Até aí, sei eu, e não precisei de nenhum indiano, Se tivéssem os um a outra j unta de bois e a engatássem os ao carro à frente da que está, andaríam os com certeza m ais depressa e todos ao m esm o, A ideia parece-m e boa, m as onde vam os nós arranj ar um a j unta de bois, Há por aí aldeias, m eu com andante. O com andante franziu a testa, não podia negar que haveria por ali aldeias, podia-se com prar um a j unta de bois.

Com prar, perguntou-se, nada disso, requisitam -se os bois em nom e do rei e à volta de valladolid deixam o-los cá, em tão bom estado com o espero que estej am agora. Ouviu-se um clam or, os bois tinham aparecido finalm ente, os hom ens aplaudiam e até o elefante levantou a trom ba e soltou um barrito de satisfação. A m á vista não lhe perm itia distinguir os fardos de forragens lá ao longe, m as na im ensa caverna do seu estôm ago ecoavam os protestos de que eram m ais do que horas de com er. Isto não significa que os elefantes devam alim entar-se a horas certas com o aos seres hum anos se diz que lhes convém pelo bem que faz à saúde. Por assom broso que pareça, um elefante necessita diariam ente cerca de duzentos litros de água e entre cento e cinquenta e trezentos quilos de vegetais. Não podem os portanto im aginá-lo de guardanapo ao pescoço, sentado à m esa, fazendo as suas três refeições diárias, um elefante com e o que pode, quanto pode e onde pode, e o seu princípio é não deixar nada para trás que possa vir a fazer-lhe falta depois. Foi preciso esperar ainda quase m eia hora antes que o carro de bois chegasse. Neste m eio-tem po, o com andante deu ordem de bivacar, m as foi necessário procurar para tal um sítio m enos castigado pelo sol, antes que m ilitares e paisanos se vissem transform ados em torresm os.

Havia a uns quinhentos m etros um a pequena m ata de choupos e foi para lá que se encam inhou a com panhia. As som bras eram ralas, m as m elhor esse pouco que perm anecer a assar sob a inclem ente chapa do astro-rei. Os hom ens que tinham vindo para trabalhar, e a quem até agora não se lhes tinha ordenado grande coisa, para não dizer nada de nada, traziam a sua com ida nos alforges ou nos barretes, o m esm o de sem pre, um grosso pedaço de pão, um as sardinhas secas, um as passas de figo, um naco de queij o de cabra, daquele que quando endurece fica com o um a pedra, e que, em rigor, não se deixa m astigar, vam o-lo roendo pacientem ente, com a vantagem de desfrutar por m ais tem po do sabor do m anj ar. Quanto aos m ilitares, lá tinham o seu arranj o.

Um soldado de cavalaria que, de espada desem bainhada ou lança em riste, galopa à carga contra o inim igo, ou que sim plesm ente vai levar um elefante a valladolid, não tem que se preocupar com os assuntos de intendência. Não lhe interessa perguntar donde veio a com ida nem quem a preparou, o que conta é que a m alga venha cheia e o caldo não sej a de todo intragável.

Dispersos, em grupos, j á toda a gente está ocupada nas suas atividades m asticatórias e deglutivas, só falta salom ão. Subhro, o cornaca, m andou levar dois fardos de forragens para onde ele está esperando a vez, desatá-los e deixá-lo tranquilo, Se for necessário, leva-se-lhe outro fardo, disse.

Esta descrição, que a m uitos parecerá despicienda pela excessiva porm enorização a que deliberadam ente recorrem os, tem um fim útil, o de ativar a m ente de subhro para que chegue a

um a conclusão otim ista sobre o futuro da viagem , Um a vez que, pensou ele finalm ente, salom ão terá de com er pelo m enos três ou quatro fardos por dia, o peso da carga ir-se-á aliviando, e se, ainda por cim a, conseguirm os a tal j unta de bois, então, por m uitas m ontanhas que nos saltem ao cam inho não vai haver quem nos apanhe. Com as boas ideias, e às vezes tam bém com as m ás, passa-se o m esm o que se passava com os átom os de dem ócrito ou com as cerej as da cesta, vêm enganchadas um as nas outras. Ao im aginar os bois a puxar o carro por um a ladeira em pinada, subhro percebeu que tinha sido com etido um erro na com posição original da caravana e que esse erro não havia sido corrigido durante todo o tem po que a cam inhada havia durado, falta de que se considerava responsável. Os trinta hom ens que tinham vindo com o aj udas, subhro deu-se ao trabalho de os contar um por um , não tinham feito nada desde a saída de lisboa, salvo aproveitar a m anhã para um passeio ao cam po. Para desatar e arrastar os fardos de forragens seriam m ais que suficientes os auxiliares diretos, e, em caso de necessidade, ele próprio poderia dar um a m ão. Que fazer então, m andá-los para trás, livrar-m e deste peso, perguntou-se subhro. A ideia seria boa se não houvesse outra m elhor. O pensam ento abriu um sorriso resplandecente na cara do cornaca. Deu um grito a cham ar os hom ens, reuniu-os diante de si, alguns ainda vinham a m astigar o últim o figo seco, e disse-lhes, A partir de agora, divididos em dois grupos, vocês aí e vocês aí, passam a dar aj uda ao carro de bois, puxando e em purrando, está visto que a carga é dem asiada para os anim ais, que além disso são vagarosos por natureza, de dois em dois quilóm etros os grupos revezam -se, este será o vosso principal trabalho até chegarm os a valladolid. Houve um m urm úrio que tinha todo o ar de descontentam ento, m as subhro fez de conta que não ouvira, e continuou, Cada grupo será governado por um capataz, que, além de responder perante m im pelos bons resultados do trabalho, terá de m anter a disciplina e desenvolver o espírito de coesão sem pre necessários a qualquer tarefa coletiva. A linguagem não devia ter agradado aos ouvintes, pois o m urm úrio repetiu-se. Muito bem , disse subhro, se alguém não estiver satisfeito com as ordens que acabo de dar, dirij a-se ao com andante, ele é a suprem a autoridade aqui, com o representante do rei. O ar pareceu ter arrefecido de repente, o m urm úrio foi substituído por um arrastar contrafeito de pés. Subhro perguntou, Quem se propõe para capataz. Levantaram -se três m ãos hesitantes, e o cornaca precisou, Dois capatazes, não três.

Um a das m ãos encolheu-se, desapareceu, as outras perm aneceram levantadas. Tu e tu, apontou subhro, escolham os vossos hom ens, m as façam -no de um a m aneira equitativa, a fim de que as forças dos dois grupos fiquem equilibradas, e agora toca a dispersar, necessito falar com o com andante. Antes, porém , ainda foi obrigado a atender um dos seus auxiliares, que se tinha aproxim ado para inform ar que haviam aberto outro fardo de forragem , m as que salom ão parecia satisfeito e, segundo todos os indícios, com vontade de dorm ir, Não adm ira, com eu bem e esta costum a ser a hora da sua sesta, O pior é que bebeu quase toda a água da dorna, Depois de ter com ido tanto, é natural, Podíam os levar os bois até ao rio, deve haver por aí um cam inho, Ele não beberia, a água, a esta altura do rio, ainda é salgada, Com o sabe, perguntou o auxiliar, Salom ão banhou-se um a quantidade de vezes, a últim a aqui perto, e nunca m ergulhou a trom ba para beber, Se a água do m ar chega até onde estam os, isso m ostra o pouco que andám os, É

certo, m as, a partir de hoj e, podes ter a certeza de que irem os m ais depressa, palavra de cornaca. Deixando atrás este solene com prom isso, subhro foi à procura do com andante.

Encontrou-o a dorm ir à som bra de um choupo m ais ram alhudo, com aquele sono leve que distingue o bom soldado, pronto a saltar sobre as suas arm as ao m ínim o ruído suspeito. Faziam -

lhe guarda dois m ilitares que, com um gesto im perativo, m andaram parar subhro. Este fez sinal de que havia com preendido e sentou-se no chão, à espera. O com andante acordou m eia hora depois, espreguiçou-se e bocej ou, tornou a bocej ar, tornou a espreguiçar-se, até que se sentiu efetivam ente acordado para a vida. Mesm o assim teve de afirm ar-se segunda vez para ver que o cornaca estava ali, Que queres agora, perguntou em voz rouca, não m e digas que tiveste outras ideias, Saiba vossa senhoria que sim , Dize lá, Dividi os hom ens em dois grupos, que, de dois em dois quilóm etros, alternadam ente, passarão a aj udar os bois, quinze hom ens de cada vez a em purrar o carro, vai-se notar a diferença, Bem pensado, não há dúvida, vej o que o que trazes em cim a dos om bros te serve para algum a coisa, quem vai ficar a ganhar são os m eus cavalos, que poderão trotar de vez em quando, em lugar de irem naquela pasm aceira de passo de parada, Saiba vossa senhoria que tam bém pensei nisso, E pensaste em m ais algum a coisa, leio-to na cara, perguntou o com andante, Saiba vossa senhoria que sim , Vam os lá ver, A m inha ideia é que deveríam os organizar-nos em função dos hábitos e necessidades do salom ão, agora m esm o, repare vossa senhoria, está a dorm ir, se o acordássem os ficaria irritado e só nos daria trabalhos, Mas com o pode ele dorm ir, se está em pé, perguntou incrédulo o com andante, Às vezes deita-se para dorm ir, m as o norm al é que o faça em pé, Creio que nunca entenderei os elefantes, Saiba vossa senhoria que eu vivo com eles quase desde que nasci e ainda não consegui entendê-los, E

isso porquê, Talvez porque o elefante sej a m uito m ais que um elefante, Basta de conversa, É que ainda tinha um a outra ideia para apresentar, m eu com andante, Outra ideia, riu o m ilitar, afinal tu não és um cornaca, és um a cornucópia, Favores de vossa senhoria, Que m ais é que produziste nessa tua cabeça privilegiada, Pensei que iríam os bem organizados se vossa senhoria fosse atrás com os soldados a fechar a caravana, indo à frente o carro de bois por ser ele que m arca o passo do andam ento, depois eu com o elefante, a seguir, os de a pé, e o carro da intendência, Muito bem , a isso se cham a um a ideia, Assim m e pareceu, Um a ideia estúpida, quero eu dizer, Porquê, perguntou subhro, m elindrado, sem se dar conta da gravíssim a falta de educação, um a autêntica ofensa, que a interpelação direta representava, Porque eu e os m eus soldados iríam os a com er a poeira que as patas de vocês todos fossem levantando, Ah, que vergonha, deveria ter pensado nisso e não pensei, rogo a vossa senhoria, por todos os santos da corte do céu, que m e perdoe, Assim poderem os fazer um a galopada de vez em quando e esperar lá à frente que vocês cheguem , Sim , m eu senhor, é a solução perfeita, perm itis que m e retire, perguntou subhro, Ainda tenho duas questões a tratar contigo, a prim eira é que se voltas a perguntar-m e porquê, no tom em que o fizeste agora, darei ordem para que te deem um a boa ração de chicote no lom bo, Sim senhor, m urm urou subhro, de cabeça baixa, A segunda tem que ver com essa tua cabecinha e com a viagem que ainda m al com eçou, se nesse bestunto ainda tens uns restos de ideias aproveitáveis, apreciaria saber se é de tua vontade que fiquem os aqui eternam ente, até à consum ação dos séculos, Salom ão ainda dorm e, m eu com andante, Então agora quem governa aqui é o elefante, perguntou o m ilitar entre irritado e divertido, Não, m eu com andante, decerto recordareis ter-vos dito que nos deveríam os organizar em função, confesso que não sei de onde m e saiu esta palavra, dos hábitos e necessidades de salom ão, Sim , e quê, perguntou o com andante, que j á perdia a paciência, É que, m eu com andante, salom ão, para estar bem , para que possam os entregá-lo com boa saúde ao arquiduque de áustria, terá de descansar nas horas de calor, De acordo, respondeu o com andante, levem ente perturbado com a referência ao arquiduque, m as a verdade é que ele não tem feito outra coisa em todo o santo dia, Este dia não

conta, m eu com andante, foi o prim eiro, e j á se sabe que no prim eiro dia as coisas sem pre correm m al, Então, que fazem os, Dividim os os dias em três partes, a prim eira, desde m anhã cedo, e a terceira, até ao sol-pôr, para avançarm os o m ais depressa que puderm os, a segunda, esta em que estam os, para com er e descansar, Parece-m e um bom program a, disse o com andante, optando pela benevolência. A m udança de tom anim ou o cornaca a expressar a inquietação que o viera atorm entando durante todo o dia, Meu com andante, há algo nesta viagem que não entendo, Que é que não entendes, Em todo o cam inho não nos cruzám os com ninguém , em m inha m odesta opinião não é norm al, Estás enganado, cruzám o-nos com bastantes pessoas, tanto de um a direção com o da outra, Com o, se eu não as vi, perguntou subhro com os olhos arregalados de espanto, Estavas a dar banho ao elefante, Quer dizer que de cada vez que salom ão se estava banhando passaram pessoas, Não m e faças repetir, Estranha coincidência, até parece que salom ão não quer que o vej am , Pode ser, sim , Mas agora, estando nós aqui acam pados há não poucas horas, tam bém não passou ninguém , Aí a razão é outra, a gente vê o elefante de longe, com o um a abantesm a, e volta para trás ou m ete por atalhos, se calhar j ulgam que é algum enviado do diabo, Sinto a cabeça a doer-m e, até cheguei a pensar que el-rei nosso senhor tivesse m andado despej ar os cam inhos, Não és assim tão im portante, cornaca, Eu, não, m as salom ão, sim . O com andante preferiu não responder ao que parecia o princípio de um a nova discussão e disse, Antes que te vás quero fazer-te um a pergunta, Sou todo ouvidos, Lem bras-te de teres invocado há bocado todos os santos da corte do céu, Sim , m eu com andante, Quer isso dizer que és cristão, pensa bem antes de responderes, Mais ou m enos, m eu com andante, m ais ou m enos.

Lua cheia, luar de agosto. Com excepção das duas sentinelas que, m ontadas nos seus cavalos, sem outro ruído que o ranger dos arreios, fazem a ronda do acam pam ento, toda a caravana dorm e. Gozam de um descanso m ais que m erecido. Depois de terem dado, durante a prim eira parte do dia, a m á im pressão de um bando de vadios e preguiçosos, os hom ens alistados para em purrar o carro de bois tinham -se m etido em brios e dado um a autêntica lição de profissionalism o. É certo que o terreno plano havia aj udado m uito, m as podia-se apostar, com a certeza de ganhar, que na venerável história daquele carro de bois nunca houvera outra j ornada assim . Nas três horas e m eia que a corrida durou, e apesar de alguns breves descansos, andaram m ais de dezassete quilóm etros. Este foi o núm ero finalm ente apontado pelo com andante do pelotão depois de um a viva troca de palavras com o cornaca subhro, que achava que não tinham sido tantos e que não valia a pena estarem a enganar-se a si m esm os. O com andante achava que sim , que era estim ulante para os hom ens, Que im portância tem que tivéssem os andado só catorze, os três que faltam andá-los-em os am anhã e no final vais ver que tudo baterá certo. O

cornaca desistiu de convencê-lo, Foi o m elhor que eu podia fazer, se as contas falsas dele prevalecerem , isso não alterará a realidade dos quilóm etros que realm ente tiverm os percorrido, não discutas com quem m anda, subhro, aprende a viver.

Havia acabado de acordar, ainda com a im pressão de ter tido um a dor aguda no ventre enquanto dorm ia, m as não lhe parecia que ela se fosse repetir, porém sentia o interior suspeitosam ente alvoroçado, uns borborigm os surdos nos intestinos, e, de repente, a dor regressou com o um a punhalada. Levantou-se com o pôde, fez sinal à sentinela m ais próxim a de que ia ali e j á vinha, e com eçou a subir, em direção a um renque basto de árvores, a pendente suave em que tinham acam pado, tão suave que era com o se estivessem estendidos num a cam a com a parte da cabeceira ligeiram ente levantada. Chegou no últim o segundo. Desviem os a vista enquanto ele se livra da roupa, que, m ilagrosam ente, ainda não suj ou, e esperem os que levante a cabeça para ver o que nós j á vim os, aquela aldeia banhada pelo m aravilhoso luar de agosto que m odelava todos os relevos, am aciava as próprias som bras que havia criado, e ao m esm o tem po fazia resplandecer as zonas que ilum inava. A voz que estávam os aguardando m anifestou-se finalm ente, Um a aldeia, um a aldeia. Provavelm ente por virem cansados, ninguém tivera a lem brança de subir a pendente para ver o que haveria do outro lado. É certo que é sem pre tem po de ver um a aldeia, se não for um a é outra, m as é duvidoso que logo à prim eira que se encontra tenham os à nossa espera um a potente j unta de bois, capaz de endireitar a torre de pisa com um só puxão. Aliviado da m aior, o cornaca lim pou-se o m elhor que pôde com as ervas que cresciam ao redor, m uita sorte teve de não haver por ali sem pre-noivas, tam bém cham adas sanguinárias, que essas o fariam saltar com o se sofresse da dança de são vito, tais seriam os ardores e os picores que lhe atacariam a delicada m ucosa inferior. Um a nuvem grossa tapou a lua, e a aldeia tornou-se de súbito negra, sum iu-se com o um sonho na obscuridade circundante. Não im portava, o sol rom peria à sua hora e m ostraria o cam inho para o estábulo, onde os bois, agora rum inando, tinham pressentim entos de m udança de vida. Subhro atravessou o espesso renque de árvores e

regressou ao seu lugar na cam arata com um . Em cam inho, pensou que se o com andante estivesse acordado lhe daria, para falar em term os planetários, a m aior satisfação do m undo. E a glória de ter descoberto a aldeia seria m inha, m urm urou. Porque não valia a pena alim entar ilusões.

Durante o que ainda faltava passar da noite outros hom ens podiam ter necessidade de dar de corpo e o único sítio onde o poderiam fazer com discrição era no m eio daquelas árvores, m as, supondo que tal não viesse a suceder, então será só esperar que am anheça para assistirm os ao desfile de quantos tiveram que obedecer aos im perativos dos intestinos e da bexiga. Isto, no fundo, são anim ais, não há que estranhar. Mal conform ado, o cornaca resolveu fazer um desvio para o lado onde o com andante dorm ia, quem sabe, as pessoas às vezes têm insónias, despertam angustiadas porque no seu sonho acreditavam que estavam m ortas, ou então é um percevej o, dos tantos que se escondem nas bainhas das m antas, que veio sugar o sangue do adorm ecido. Fica a inform ação de que o percevej o foi o inconsciente inventor das transfusões. Baldada esperança, o com andante dorm ia, e não só dorm ia, com o roncava. Um a sentinela veio perguntar ao cornaca o que é que queria dali e subhro respondeu que tinha um recado para dar ao com andante, m as, visto ele estar a dorm ir, ia voltar para a sua cam a, A estas horas não se dão recados a ninguém , espera-se que am anheça, Era im portante, respondeu o cornaca, m as, com o diz a filosofia do elefante, se não pode ser, não pode ser, Se quiseres dar-m e o recado a m im , eu inform o-o assim que ele acordar. O cornaca deitou contas às probabilidades favoráveis e achou que valia a pena apostar nesta única carta, a de que o com andante j á tivesse sido inform ado pela sentinela da existência da aldeia, quando, na prim eira luz da m anhã, se ouvisse o grito, Alvíssaras, alvíssaras, há aqui um a aldeia. A dura experiência da vida tem -nos m ostrado que não é aconselhável confiar dem asiado na natureza hum ana, em geral. A partir de agora, ficám os a saber que, pelo m enos para guardar segredos, tam bém não nos devem os fiar da arm a de cavalaria. Foi o caso que antes que o cornaca tivesse regressado ao sono, j á a outra sentinela estava a par da notícia, e logo os soldados que dorm iam m ais perto. A excitação foi enorm e, um deles chegou a propor que fizessem um reconhecim ento à aldeia a fim de colher inform ações presenciais que robustecessem , pela autenticidade da respectiva fonte, a estratégia a definir na m anhã seguinte.

O tem or de que o com andante despertasse, se levantasse do catre e não visse nenhum dos soldados, ou, pior ainda, se visse algum e não os outros, fê-los desistir da prom etedora aventura.

As horas passaram , um a pálida claridade a oriente com eçou a desenhar a curva da porta por onde o sol haveria de entrar, ao m esm o tem po que no lado oposto a lua se deixava cair suavem ente nos braços de outra noite. Estávam os nós nisto, atrasando o m om ento da revelação, duvidando ainda se não haveria m odo de encontrar um a solução m ais dram ática ou, o que seria ouro sobre azul, com m ais potência sim bólica, quando se ouviu o fatal grito, Há aqui um a aldeia.

Absortos nas nossas lucubrações, não tínham os dado por que um hom em se havia levantado e subido a pendente, m as agora, sim , víam o-lo aparecer entre as árvores, ouvíam o-lo repetir o triunfal anúncio, em bora sem pedir alvíssaras, com o havíam os im aginado, Há aqui um a aldeia.

Era o com andante. O destino, quando lhe dá para aí, é capaz de escrever por linhas tortas e torcidas tão bem com o deus, ou m elhor ainda. Sentado na sua m anta, subhro pensou, Antes assim que pior, a ele sem pre poderia dizer que se tinha levantado de noite e havia sido o prim eiro a ver a aldeia. Arriscar-se-á a que o com andante lhe pergunte com voz sorna, com o sabem os que haverá de perguntar, E testem unhas, tens, ao que ele apenas poderá responder, m etendo, m etaforicam ente falando, o rabo entre as pernas, Negativo, m eu com andante, estava sozinho,

Deves ter sonhado, Tanto não sonhei que dei a inform ação a um dos soldados que estavam de sentinela para quando o m eu com andante despertasse, Nenhum soldado falou com igo, Mas o m eu com andante pode falar com ele, eu digo-lhe qual foi. O com andante reagiu m al à proposta, Se eu não precisasse de ti para conduzir o elefante, despachava-te j á para lisboa, im agina só a situação em que te ias colocar, seria a tua palavra contra a m inha, tira daí o sentido, a não ser que queiras que te deportem para a índia. Resolvida a questão de saber quem havia sido, oficialm ente, o prim eiro a descobrir a aldeia, o com andante dispunha-se a virar as costas ao cornaca, quando este disse, O principal não é isso, o principal é saber se haverá ali um a j unta de bois capaz, Não tardarem os a sabê-lo, tu cuida dos teus assuntos, que eu cá m e encarrego do resto, Vossa senhoria não quer que eu vá à aldeia, perguntou subhro, Não, não quero, bastam -m e o sargento, para acabar de com por o grupo, e o boieiro. Subhro pensou que, ao m enos por um a vez, o com andante tinha razão. Se alguém , por direito natural, tinha ali lugar, era o boieiro. O

com andante j á lá ia, dando instruções a um lado e a outro, ao sargento, ao pessoal da intendência, que era sua intenção pôr a trabalhar para abastecer de com ida suficiente aos hom ens das forças, que em nada de tem po as perderiam se continuassem a alim entar-se de figos secos e pão bolorento, Quem desenhou a estratégia para esta viagem bem pode lim par as m ãos à parede, os m anda-m ais da corte devem pensar que a gente pode viver só do ar que respira, m urm urou entredentes. O acam pam ento j á estava levantado, enrolavam -se m antas, ordenavam -se ferram entas, que as havia em quantidade, a m aior parte delas provavelm ente nunca teriam uso, salvo se o elefante viesse a cair por um barranco e fosse preciso tirá-lo de lá com um cabrestante. A ideia do com andante era pôr-se em m archa quando, com j unta de bois ou sem j unta de bois, regressasse da aldeia. O sol j á se tinha despegado da linha do horizonte, era dia claro, apenas um as poucas nuvens boiando no céu, oxalá não venha a aquecer dem asiado, derretem -se os m úsculos, às vezes até parece que o suor se vai pôr a ferver na pele. O

com andante cham ou o boieiro, explicou-lhe ao que iam e recom endou-lhe que observasse bem os anim ais, se os houvesse, porque deles dependeria a rapidez da expedição e um breve regresso a lisboa. O boieiro disse que sim senhor duas vezes, em bora a ele pouco lhe im portasse, não vivia em lisboa, m as num a aldeia não longe cham ada m em m artins, ou algo deste j eito. Com o o boieiro não sabia cavalgar, um caso flagrante, com o se vê, das consequências negativas de um a excessiva especialização profissional, içou-se com dificuldade para a garupa do cavalo do sargento e lá foi, rezando, num a voz que ele próprio m al conseguia ouvir, um interm inável padre-nosso, oração da sua especial estim a por aquilo que nela se diz de perdoar as nossas dívidas. O

m al, que em tudo está, e às vezes até deixa o rabo de fora para que não tenham os ilusões sobre a natureza do bicho, vem logo na frase seguinte, quando se diz que é obrigação nossa de cristãos perdoar aos nossos devedores. O pé não j oga com a chinela, ou um a coisa ou outra, resm ungava o boieiro, se uns perdoam e outros não pagam o que devem onde está o benefício do negócio, perguntava-se. Entraram na prim eira rua da aldeia que encontraram , em bora fosse sinal de espírito delirante cham ar àquilo rua, um cam inho que era o m ais parecido que havia no tem po com um a m ontanha-russa, e à prim eira pessoa que encontraram o com andante perguntou com o se cham ava e onde m orava o principal lavrador do lugar. O hom em , um velho labrego com a enxada às costas, conhecia as respostas, O principal é o senhor conde, m as não está cá, O senhor conde, repetiu o com andante, ligeiram ente inquieto, Sim , saiba vossa senhoria que três quartas partes destas terras, ou m ais, lhe pertencem , Mas disseste que ele não está em casa, Fale vossa

senhoria com o feitor, o feitor é quem governa o barco, Andaste no m ar, Saiba vossa senhoria que sim , m as aquilo, entre afogados e afligidos de escorbutos e outras m isérias, era um a tal m ortandade que resolvi vir m orrer em terra, E onde posso encontrar o feitor, Se não está j á no cam po, encontra-o na quinta do palácio, Há um palácio, perguntou o com andante, olhando em redor, Não é um palácio daqueles altos e com torres, tem só o térreo e um andar, m as dizem que há lá m ais riquezas que em todos os palácios e palacetes de lisboa, Podes guiar-nos até lá, perguntou o com andante, Para isso m e trouxeram aqui os m eus passos, O conde é conde de quê.

O velho disse-lho, e o com andante deu um assobio de adm iração, Conheço-o, disse, o que não sabia era que tinha terras para estes lados, E dizem que não é só aqui.

A aldeia era um a aldeia com o j á não se veem nos dias de hoj e, se estivéssem os no inverno seria com o um a pocilga escorrendo água e salpicando lam a por todos os lados, agora sugere outra coisa, os restos petrificados de um a civilização antiga, cobertos de pó, com o m ais cedo ou m ais tarde acontece aos m useus ao ar livre. Desem bocaram num a praça e ali estava o palácio.

O velho foi tocar a sineta de um a porta de serviço, ao cabo de um m inuto apareceu alguém a abrir e o velho entrou. As coisas não estavam a passar-se com o o com andante havia im aginado, m as talvez fosse m elhor assim . Encarregava-se o velho do prim eiro parlam ento e depois ele se encarregaria do m iolo do assunto. Passados uns bons quinze m inutos apareceu à porta um hom em gordo, de grandes bigodes, que lhe pendiam com o o lam baz de um barco. O com andante guiou o cavalo ao encontro dele e foi ainda de cim a do cavalo, para que ficassem bem claras as diferenças sociais, que disse as prim eiras palavras, És o feitor do senhor conde, Para servir a vossa senhoria. O com andante desm ontou e, dando prova de um a astúcia pouco com um , aproveitou o que vinha na bandej a, Neste caso, servir-m e a m im será o m esm o que servir ao senhor conde e a sua alteza o rei, Vossa senhoria fará o favor de m e explicar o que desej a, em tudo que não vá contra a salvação da m inha alm a e contra os interesses do m eu am o que m e com prom eti a defender, sou o seu hom em , Por m im não serão ofendidos os interesses do teu am o nem se perderá a tua alm a, e agora vam os ao caso que aqui m e trouxe. Fez um a pausa, um rápido sinal ao boieiro para se aproxim ar, e com eçou, Sou oficial de cavalaria de sua alteza, que m e confiou o encargo de levar a valladolid, espanha, um elefante para ser entregue ao arquiduque m axim iliano de áustria que ali está aposentado, no palácio do im perador carlos quinto, seu sogro. Ao feitor esbugalharam -se-lhe os olhos, o queixo caiu-lhe sobre a papada, efeitos anim adores que o com andante registou m entalm ente. E continuou, Trago na caravana um carro de bois que transporta os fardos de forragens de que o elefante se alim enta e a dorna de água em que m ata a sede, o carro é puxado por um a j unta de bois que até agora têm dado boa conta do recado, m as que eu m uito m e tem o não serem suficientes quando tiverem de se enfrentar com as grandes ladeiras das m ontanhas. O feitor assentiu com a cabeça, m as não proferiu palavra. O com andante respirou fundo, saltou um as quantas frases de adorno que havia estado alinhavando na cabeça e foi direito ao fim , Preciso de outra j unta de bois para a atrelar ao carro e pensei que poderia vir encontrá-la aqui, O senhor conde não está, só ele é que. O

com andante cortou-lhe a frase, Parece que não ouviste que estou aqui em nom e do rei, não sou eu quem te está a pedir o em préstim o de um a j unta de bois por uns dias, m as sua alteza o rei de portugal, Ouvi, m eu senhor, ouvi, m as o m eu am o, Não está, j á sei, m as está o seu feitor que conhece os seus deveres para com a pátria, A pátria, senhor, Nunca a viste, perguntou o

com andante lançando-se num rapto lírico, vês aquelas nuvens que não sabem aonde vão, elas são a pátria, vês o sol que um as vezes está, outras não, ele é a pátria, vês aquele renque de árvores donde, com as calças na m ão, avistei a aldeia nesta m adrugada, elas são a pátria, portanto não podes negar-te nem opor dificuldades à m inha m issão, Se vossa senhoria o diz, Dou-te a m inha palavra de oficial de cavalaria, e agora basta de conversa, vam os à abegoaria ver os bois que lá tens. O feitor cofiou o bigode pingão com o se estivesse a consultá-lo, e finalm ente decidiu-se, a pátria acim a de tudo, m as, ainda tem eroso dos efeitos da sua cedência, perguntou ao oficial se lhe deixava um a garantia, ao que o com andante respondeu, Deixo-te um papel escrito de m eu punho e letra no qual assegurarei que a j unta de bois será por m im próprio devolvida à procedência tão cedo o elefante fique entregue ao arquiduque de áustria, não esperareis m ais que o tem po de ir de aqui a valladolid e de valladolid aqui, Vam os então à abegoaria, onde estão os bois de trabalho, disse o feitor, Este aqui é o m eu boieiro, entrará com igo, eu entendo m ais de cavalos e guerra, quando a há, disse o com andante. Na abegoaria havia oito bois. Tem os m ais quatro, disse o feitor, m as estão no cam po. A um sinal do com andante, o boieiro aproxim ou-se dos anim ais, exam inou-os atentam ente, um por um , fez levantar dois que estavam deitados, exam inou-os tam bém , e por fim declarou, Este e este, Boa escolha, são os m elhores, disse o feitor. O com andante sentiu um a onda de orgulho subir-lhe do plexo solar à garganta. Realm ente, cada gesto seu, cada passo que dava, cada decisão que tom ava, revelavam um estratego de prim eiríssim a água, m erecedor dos m ais altos reconhecim entos, um a pronta prom oção a coronel, para com eçar. O feitor, que havia saído, regressava com papel e pena, e ali m esm o foi exarado o com prom isso. Quando o feitor recebeu o docum ento, as m ãos trem iam -lhe de em oção, m as recuperou a serenidade ao ouvir dizer ao boieiro, Faltam os apeiros, Estão além , apontou o feitor. Não têm falhado neste relato considerações m ais ou m enos certeiras sobre a natureza hum ana, e a todas fom os fielm ente consignando e com entando segundo a respectiva pertinência e o hum or do m om ento. O que não esperávam os, francam ente, era vir um dia a registar um pensam ento tão generoso, tão excelso, tão sublim e, com o aquele que passou pela m ente do com andante com o fulgor de um relâm pago, isto é, que ao escudo de arm as do conde proprietário daqueles anim ais, em m em ória deste sucesso, deveriam ser apostos dois j ugos, ou cangas, com o tam bém se lhes cham a. Oxalá este voto se cum pra. Os bois j á estavam j ungidos, o boieiro j á os levava para fora da abegoaria, quando o feitor perguntou, E o elefante. Form ulada desta m aneira, tão rústica quanto direta, a pergunta podia ser sim plesm ente ignorada, m as o com andante pensou que devia a este hom em um favor e portanto foi um sentim ento parente da gratidão que o fez dizer, Está atrás daquelas árvores, onde passám os a noite, Nunca vi um elefante na m inha vida, disse o feitor com voz triste, com o se de ver um elefante dependesse a sua felicidade e a dos seus, Hom em , isso tem bom rem édio, vem conosco, Vá vossa senhoria andando, que eu aparelho a m ula e j á o alcanço. O com andante saiu para a praça, onde o esperava o sargento, e disse, Já tem os bois, Sim senhor, passaram por aqui, o boieiro parecia ter engolido um pau, de tão vaidoso que ia à cabeça deles, Vam os, disse o com andante m ontando, Sim senhor, disse o sargento m ontando tam bém . Alcançaram a vanguarda em pouco tem po, e aí se apresentou ao com andante um sério dilem a, ou galopar para o acam pam ento e anunciar a vitória às hostes reunidas, ou acom panhar a j unta e receber os aplausos em presença do prém io vivo do seu engenho. Precisou de cem m etros de intensa reflexão para encontrar a resposta ao problem a, um recurso a que, antecipando cinco séculos, poderíam os cham ar terceira via, isto é,

m andar o sargento à frente com a notícia a fim de predispor os ânim os à m ais entusiástica das recepções. Assim se faria. Não tinham andado m uito quando ouviram o tosco tropear da m ula, a quem nunca se pedira um trote, e m uito m enos um galope. O com andante parou por cortesia, o m esm o fez o sargento sem saber porquê, só o boieiro e os bois, com o se pertencessem a outro m undo e se regulassem por diferentes leis, continuaram com o passo de sem pre, isto é, a passo.

O com andante deu ordem para que o sargento se adiantasse, m as não tardou a arrepender-se de o ter feito. A sua im paciência crescia a cada m inuto. Tinha sido um erro crasso m andar o sargento à frente. A esta hora j á ele recebera os prim eiros aplausos, os m ais calorosos, aqueles que acolhem um a boa notícia dada em prim eira m ão, e se alguns, ou m esm o m uitos, se vierem a m anifestar depois, sem pre hão-de ter um sabor a caldo requentado. Enganava-se. Quando o com andante chegou ao acam pam ento, haveria que discutir se acom panhado por ou acom panhando o boieiro e os bois, estavam os hom ens form ados em duas linhas, os braçais de um lado, os m ilitares do outro, e ao centro o elefante com o seu cornaca sentado, todos aplaudindo com entusiasm o, dando vozes de alegria, se isto aqui fosse um barco de piratas seria a altura de dizer, Um rum duplo para todos. Sej a com o sej a, talvez se apresente ocasião m ais adiante para m andar servir um quartilho de vinho tinto a toda a com panhia. Acalm adas as expansões, principiou a caravana a organizar-se. O boieiro atrelou ao carro os bois do conde, m ais fortes e m ais frescos, e à frente deles, para repousarem , os que tinham vindo de lisboa. O

Are sens