"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » 🐘 🐘 A Viagem do Elefante - de José Saramago🐘 🐘

Add to favorite 🐘 🐘 A Viagem do Elefante - de José Saramago🐘 🐘

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Encontrou-o no alpendre, aparentem ente tranquilo, m as ao cornaca, ainda sob a im pressão do incóm odo sonho, pareceu-lhe que ele estava disfarçando, com o se na verdade tivesse abandonado bolzano a m eio da noite para ir folgar entre as neves, talvez até aos cum es m ais altos, onde se diz que elas são eternas. No chão não havia o m enor vestígio da forragem que lhe haviam deixado, nem sequer um a palha para am ostra, o que, pelo m enos, perm itia esperar que o anim al não iria pôr-se a rabuj ar com fom e com o fazem as crianças pequenas, ainda que, coisa esta geralm ente pouco sabida, sej a ele, o elefante, um a outra espécie de criança, se não no físico, ao m enos no im perfeito intelecto. Em verdade, não sabem os o que um elefante pensa, m as tão pouco sabem os o que pensa um a criança, salvo o que ela entenda fazer-nos parte, portanto, em princípio, nada em que se deva depositar dem asiada confiança. Fritz fez sinal de que queria subir e o elefante, pressuroso, com todo o ar de desej ar que o desculpassem de algum a traquinice, ofereceu-lhe o dente para apoio do pé, tal com o se de um estribo se tratasse, e enlaçou-o pela cintura com a trom ba, com o um abraço. Com um único im pulso içou-o para o cachaço, onde o deixou confortavelm ente instalado. Fritz olhou para trás e, ao contrário do que esperava, não viu o m ais leve sinal de gelo nos quartos traseiros. Havia ali um m istério que provavelm ente não lhe seria dado decifrar. Ou bem o elefante, qualquer um , e este em particular, dispõe de um sistem a de autorregulação térm ica acidentalm ente capaz, após um a necessária concentração m ental, de derreter um a cam ada de gelo de espessura razoável, ou então o exercício de subir e descer m ontanhas em m archa acelerada fizera que o dito gelo se desprendesse da pele apesar do labiríntico entram ado de pelos que tanto trabalho havia dado ao cornaca fritz. Certos m istérios da natureza parecem à prim eira vista im penetráveis e a prudência talvez aconselhe a deixá-los assim , não sej a que de um conhecim ento adquirido em bruto acabe por nos vir m ais m al que bem . Vej a-se, por exem plo, o resultado de ter com ido adão no paraíso

o que parecia um a vulgar m açã. Pode ser que o fruto propriam ente dito tenha sido obra deliciosa de deus, em bora haj a quem afirm e que não foi um a m açã, que foi, sim , um a talhada de m elancia, porém , as sem entes, em qualquer caso, essas, foram lá postas pelo diabo. Ainda por cim a, negras.

O coche dos arquiduques j á está à espera dos seus nobres, ilustres, egrégios passageiros. Fritz encam inha o elefante para o lugar que lhe está reservado no séquito, isto é, atrás do coche, m as a um a distância prudente, não vá enfadar-se o arquiduque com a vizinhança de um burlão que, não chegando ao extrem o clássico de vender gato por lebre, ainda assim ludibriava os infelizes calvos, incluindo m esm o os m ais coraj osos couraceiros, com a prom essa de um a cabeleira tão farta com o a daquele m ítico e infeliz sansão. Inútil preocupação foi esta, porque o arquiduque sim plesm ente não olhou nesta direção, pelos vistos teria m ais em que pensar, queria chegar a bressanone com luz de dia e j á iam atrasados. Despachou o aj udante de cam po para que levasse as suas ordens à cabeça da caravana, resum íveis em três palavras praticam ente sinónim as, rapidez, velocidade, presteza, ressalvando sem pre, claro está, os efeitos retardadores da neve que com eçara a cair com m ais força, e tam bém o estado dos cam inhos, em geral m aus e agora piores. Serão só dez léguas, tinha inform ado o prestável sargento, m as se, pelas contas atuais, dez léguas são cinquenta m il m etros, ou um as quantas dezenas de m ilhares de passos dos antigos, e a isso, contas são contas, não há que fugir, esta gente e estes anim ais que acabam de arrancar para m ais um a penosa j ornada vão ter m uito que sofrer, principalm ente aqueles a quem faltou o favor de um teto, que são quase todos. Que bonita é a neve vista por trás da vidraça, disse ingenuam ente a arquiduquesa m aria ao arquiduque m axim iliano, seu m arido, m as lá fora, com os olhos cegados pela ventania e as botas feitas num a sopa, com as frieiras dos pés e das m ãos a arderem com o um fogo do inferno, é caso para perguntar aos céus que foi que fizem os nós para m erecerm os tal castigo. Com o escreveu o poeta, os pinheiros bem acenam , m as o céu não lhes responde. Tam bém não responde aos hom ens, apesar de estes, em sua m aioria, saberem desde pequenos as orações precisas, o problem a está em acertar com um a língua que deus sej a capaz de entender. Tam bém o frio, quando nasce, é para todos, diz-se, m as nem todos apanham nos lom bos com a m esm a porção dele. A diferença está entre viaj ar num coche forrado de peliças e m antas com term ostato e ter de cam inhar sob o açoite da neve por seu pé ou com ele enfiado num estribo gelado que oprim e com o um torniquete. O que ainda assim valeu foi que a inform ação que o sargento passou a fritz sobre a possibilidade de um bom descanso em bressanone se havia espalhado com o um a brisa de prim avera por toda a caravana, m as logo os pessim istas, um por um e todos j untos, recordaram aos olvidadiços os perigos do passo de isarco, para não falar por enquanto de algo bem pior que será o outro m ais adiante, o de brenner, j á em território austríaco. Tivesse aníbal ousado avançar por eles e provavelm ente não teríam os tido que esperar pela batalha de zam a para assistir, no cinem a do bairro, à últim a e definitiva derrota do exército cartaginês por cipião, o africano, longa m etragem de rom anos produzida pelo filho m ais velho de benito, vittorio m ussolini. Desta vez, ao grande aníbal, não lhe valeram os elefantes.

Montado na nuca de solim ão, apanhando em cheio na cara a fustigação da neve que vinha arroj ada pela incessante ventania, fritz não está na m elhor das situações para elaborar e desenvolver pensam entos elevados. Ainda assim , vem dando voltas à cabeça para descobrir a

m aneira de m elhorar as suas relações com o arquiduque, que não só lhe retirou a palavra com o o próprio olhar. Em valladolid a coisa até tinha com eçado bem , m as solim ão, com as suas descom posições de ventre no cam inho para rosas, causou sério dano à nobre causa da harm onização de classes sociais tão afastadas um a da outra com o a dos cornacas e a dos arquiduques. Com boa vontade, poderia esquecer-se tudo isto, m as o seu delito, seu de subhro ou de fritz, ou quem diabo ele sej a, esse delírio que o levou a querer enriquecer-se por m eios ilícitos e m oralm ente reprováveis, deu cabo de qualquer esperança de recom posição da quase fraternal estim a que, por um m ágico instante, tinha aproxim ado o futuro im perador da áustria do hum ilde condutor de elefantes. Têm razão os céticos quando afirm am que a história da hum anidade é um a interm inável sucessão de ocasiões perdidas. Felizm ente, graças à inesgotável generosidade da im aginação, cá vam os suprindo as faltas, preenchendo as lacunas o m elhor que se pode, rom pendo passagens em becos sem saída e que sem saída irão continuar, inventando chaves para abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram . É o que está fazendo fritz neste m om ento enquanto solim ão, levantando as pesadas patas com dificuldade, um , dois, um , dois, pisa a neve que continua a acum ular-se no cam inho, enquanto a pura água de que ela é feita insidiosam ente se vai convertendo no m ais resvaladiço dos gelos. Am argurado, fritz pensa que só um ato de heroicidade da sua parte poderá restituir-lhe a benevolência do arquiduque, m as, por m ais voltas que dê à cabeça, não encontra nada suficientem ente grandioso para atrair, ao m enos por um segundo, um olhar com placente de sua alteza. É então que im agina que o eixo da carruagem de aparato, tendo-se partido um a vez, outra vez se partiu, e que, escancarada a porta do coche pelo súbito desequilíbrio, por ela se precipitou desam parada a arquiduquesa que, deslizando sobre as suas m últiplas saias por um a pendente não dem asiado íngrem e, só conseguiu parar no fundo do barranco, felizm ente ilesa. Tinha chegado a hora do cornaca fritz. Com um toque enérgico do bastão que lhe faz as vezes de volante, encam inhou solim ão para a borda do barranco e fê-lo descer com firm eza e segurança até onde estava, ainda m eio aturdida, a filha de carlos quinto.

Alguns couraceiros dispuseram -se a descer tam bém , m as o arquiduque deteve-os, Deixem -no, vam os ver com o descalça ele a bota. Ainda m al tinha term inado a frase e j á a arquiduquesa, içada pela trom ba do elefante, se encontrava sentada entre as pernas escarranchadas de fritz, num a proxim idade corporal que, noutras circunstâncias, seria m otivo de gravíssim o escândalo.

Fosse ela rainha de portugal e teríam os confissão pela certa. Lá em cim a, os couraceiros e a m ais gente do séquito aplaudiam com entusiasm o o heroico salvam ento, enquanto o elefante, que parecia consciente do seu feito, subia a passo, com renovada firm eza, a encosta. Chegados ao cam inho, o arquiduque recebeu nos braços a m ulher e, levantando a cabeça para olhar o cornaca de frente, disse em castelhano, Muy bien, fritz, gracias. A alm a de fritz teria rebentado ali m esm o de felicidade, supondo que tal fenóm eno poderia acontecer em algo que é m enos ainda que um puro espírito, se tudo o que aí ficou descrito não tivesse sido outra coisa que o fruto doentio de um a im aginação culpada. A realidade m ostrava-o tal qual era, curvado sobre o elefante, quase invisível sob a neve, a desolada im agem de um triunfador derrotado, um a vez m ais se dem onstrando que o capitólio está ao lado da rocha tarpeia, que ali te coroam de louros e aqui te em purram para onde, esfum ada a glória, perdida a honra, deixarás os m íseros ossos. O

eixo do coche não se partiu, a arquiduquesa dorm ita em paz sobre o om bro do m arido, sem suspeitar que a salvou um elefante e que um cornaca vindo de portugal serviu de instrum ento à providência divina. Apesar de toda a crítica que sobre ele se vem fazendo, o m undo vai

descobrindo em cada dia m aneiras de ir funcionando tant bien que m al, perm ita-se-nos esta pequena hom enagem à cultura francesa, a prova é que quando as coisas boas não sucedem por si m esm as na realidade, a livre im aginação dá um a aj uda à com posição equilibrada do quadro. É

certo que o cornaca não salvou a arquiduquesa, m as poderia tê-lo feito, um a vez que o im aginou, e isso é o que conta. Apesar de se ver devolvido sem piedade à solidão e às dentadas do frio e da neve, fritz, graças a certas crenças fatalistas que havia tido tem po de interiorizar, isto é, de m eter na cabeça, em lisboa, pensa que se nas tábuas do destino estiver previsto que o arquiduque fará as pazes com ele, esse m om ento por força chegará. Com esta confortável certeza, abandonou-se ao balancear dos passos de solim ão, sozinho na paisagem porque, um a vez m ais, por causa da neve que continuava a cair, a traseira do coche deixara de poder ser vista. A escassa visibilidade ainda perm itia distinguir onde se punham os pés, m as não aonde eles levariam . No entanto, a orografia viera a m odificar-se, prim eiro de um a m aneira a que se poderia cham ar discreta, m ansa, quase pura ondulação, agora com um a violência que dava que pensar, com o se as m ontanhas tivessem iniciado um processo apocalíptico de fraturas em progressão geom étrica. Vinte léguas tinham sido suficientes para passar dos contrafortes arredondados, que eram com o falsas colinas, à agitação tum ultuosa das m assas rochosas, rasgadas em desfiladeiros, erguidas em píncaros que escalavam o céu e donde, de vez em quando, se precipitavam , vertente abaixo, velozes aludes que iam configurar novas paisagens e novas pistas para futuro deleite dos am antes do esqui. Pelos vistos vam o-nos aproxim ando do passo de isarco, a que os austríacos insistem em cham ar eisack.

Ainda vai ser preciso cam inhar pelo m enos um a hora m ais para lá chegar, m as um a providencial dim inuição na espessa cortina de neve perm itiu que se avistasse ao longe, por um breve instante, um rasgão vertical na m ontanha, O isarco, disse o cornaca. Assim era. Um a coisa que custa trabalho a entender é que o arquiduque m axim iliano tenha decidido fazer a viagem de regresso nesta época do ano, m as a história assim o deixou registado com o fato incontroverso e docum entado, avalizado pelos historiadores e confirm ado pelo rom ancista, a quem haverá que perdoar certas liberdades em nom e, não só do seu direito a inventar, m as tam bém da necessidade de preencher os vazios para que não viesse a perder-se de todo a sagrada coerência do relato. No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas seletiva, é tam bém discrim inatória, só colhe da vida o que lhe interessa com o m aterial socialm ente tido por histórico e despreza todo o resto, precisam ente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos fatos, das coisas, da puta realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale m ais ser rom ancista, ficcionista, m entiroso. Ou cornaca, apesar das descabeladas fantasias a que, por origem ou profissão, parecem ser atreitos. Em bora a fritz não lhe reste outro rem édio que deixar-se levar por solim ão, tem os de reconhecer que esta lecionadora história que vim os contando não seria a m esm a se outro fosse o guia do elefante. Até agora, fritz tem sido personagem decisiva em todos os m om entos do relato, dos dram áticos e dos cóm icos, arriscando o próprio ridículo sem pre que foi achado conveniente para o bom tem pero da narrativa, ou apenas taticam ente aconselhável, disfarçando as hum ilhações sem levantar a voz, sem alterar a expressão da cara, cuidadoso em não deixar transparecer que, se não fosse por ele, não haveria ali ninguém para levar a carta a garcia, o elefante a viena. Estas observações talvez venham a ser consideradas desnecessárias pelos leitores m ais interessados na dinâm ica do texto que em m anifestações pretensam ente solidárias, e de certa m aneira ecum énicas, m as fritz, com o se viu, bastante desanim ado em consequência dos últim os desastrosos sucessos, estava a precisar de que alguém

lhe pusesse um a m ão am iga no om bro, e isso foi só o que fizem os, pôr-lhe a m ão no om bro.

Quando o cérebro divaga, quando nos arrebata nas asas do devaneio, nem dam os pelas distâncias percorridas, sobretudo quando os pés que nos levam não são os nossos. Tirando um ou outro floco vagabundo que se havia perdido no traj eto, pode-se dizer que deixou de nevar. A vereda estreita que tem os na nossa frente é o fam oso passo de isarco. De um lado e do outro, praticam ente a pino, as paredes do desfiladeiro parecem a ponto de desabar sobre o cam inho. O coração de fritz encolheu-se de m edo, um frio diferente de tudo o que tinha conhecido até aqui traspassou-lhe os ossos. Estava sozinho no m eio da terrível am eaça que o rodeava, as ordens do arquiduque, aquelas im perativas ordens que determ inavam que a caravana deveria m anter-se unida e coesa com o única garantia da sua segurança, com o fazem os alpinistas que se atam por cordas uns aos outros, haviam sido sim plesm ente ignoradas. Um provérbio, se por tal nom e o dito pode ser designado, e que tanto terá de português com o de indiano e universal, resum e de m aneira elegante e eloquente situações com o esta, quando te recom enda que deverás fazer o que eu te diga, m as não fazer o que eu faça. Assim procedeu o arquiduque, havia ordenado, Mantenham onos j untos, m as, chegada a ocasião, em lugar de ali perm anecer, com o lhe com petia, à espera do elefante e do seu cornaca que vinham atrás, dem ais sendo proprietário de um e am o do outro, dera, em sentido figurado, de esporas ao cavalo, e pernas para que vos quero, direito à desem bocadura do perigoso passo antes que se fizesse dem asiado tarde e o céu lhe caísse em cim a. Im agine-se agora que a avançada dos couraceiros havia penetrado no desfiladeiro e aí tinha ficado à espera, im agine-se que igualm ente ficavam esperando os que fossem chegando, o arquiduque e a sua arquiduquesa, o elefante solim ão e o cornaca fritz, o carro das forragens, finalm ente o resto dos couraceiros que rem atavam a m archa, e tam bém as galeras interm édias, carregadas de cofres, arcas e baús, e a m ultidão da criadagem , todos fraternalm ente reunidos, à espera de que a m ontanha se viesse abaixo ou que um alude com o nunca se havia visto outro os am ortalhasse a todos, entupindo o desfiladeiro até à prim avera. O egoísm o, geralm ente tido por um a das atitudes m ais negativas e reprováveis da espécie hum ana, pode ter, em certas circunstâncias, as suas boas razões. Ao term os salvo a nossa rica pele, escapando-nos rapidam ente da ratoeira m ortal em que o passo de isarco poderia tornar-se, salvám os tam bém a pele dos com panheiros de viagem , que, chegada a sua vez de avançar, puderam continuar a viagem sem ser travados por engarrafam entos de trânsito inoportunos, logo, a conclusão é facílim a de tirar, cada um por si para que nos possam os salvar todos. Quem diria que a m oral nem sem pre é o que parece e que pode ser m oral tanto m ais efetiva quanto m ais contrária a si m esm a se m anifeste. Perante estas cristalinas evidências e estim ulado pelo im pacte súbito, uns cem m etros atrás, de um a m assa de neve que, sem aspirar ao nom e de alude, foi m ais que suficiente para que o susto fosse de tom o, fritz fez a solim ão o sinal de andar, j á, j á. Ao elefante pareceu-lhe pouco. Melhor que o sim ples passo, a situação, por tão perigosa ser, pedia um trote, ou, m elhor ainda, um galope que rapidam ente o pusesse a salvo das am eaças do isarco. Rápido foi, portanto, tão rápido com o santo antónio quando usou a quarta dim ensão para ir a lisboa salvar o pai da forca. O m al é que solim ão havia presum ido dem asiado das suas forças. Arquej ando, poucos m etros depois de ter deixado para trás a boca do desfiladeiro, foram -se-lhe abaixo as pernas dianteiras e os j oelhos ao chão. O cornaca, porém , teve sorte. O norm al seria que o choque o tivesse proj etado violentam ente para a frente da cabeça da infeliz m ontada, só deus sabe com que nefastas consequências, m as a tão celebrada m em ória de elefante fez recordar a

solim ão o que se tinha passado com o padre da aldeia que pretendia exorcizá-lo, quando, no últim o segundo, no derradeiro instante, logrou am ortecer a patada, porventura m ortal, que lhe havia desferido. A diferença em relação ao caso de agora foi que solim ão ainda logrou recorrer ao pouquíssim o que lhe restava de energia para reduzir a velocidade da sua própria queda, fazendo com que os grossos j oelhos tocassem o chão com a leveza de um floco de neve. Com o o terá conseguido, não se sabe, nem é coisa que se lhe vá perguntar. Tal com o os prestidigitadores, tam bém os elefantes têm os seus segredos. Entre falar e calar, um elefante sem pre preferirá o silêncio, por isso é que lhe cresceu tanto a trom ba que, além de transportar troncos de árvores e trabalhar de ascensor para o cornaca, tem a vantagem de representar um obstáculo sério para qualquer descontrolada loquacidade. Cautelosam ente, fritz deu a entender a solim ão que j á era hora de fazer um pequeno esforço para se levantar. Não ordenou, não recorreu ao seu variado repertório de toques de bastão, uns m ais agressivos que outros, apenas deu a entender, o que dem onstra um a vez m ais que o respeito pelos sentim entos alheios é a m elhor condição para um a próspera e feliz vida de relações e afetos. É a diferença entre um categórico Levanta-te e um dubitativo E se tu te levantasses. Há m esm o quem sustente que esta segunda frase, e não a prim eira, foi a que j esus realm ente proferiu, prova provada de que a ressurreição, afinal, estava, sobretudo, dependente da livre vontade de lázaro e não dos poderes m ilagrosos, por m uito sublim es que fossem , do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons m odos, tão sim ples com o isto. E que o m étodo continua a dar bons resultados, viu-se quando solim ão, aprum ando prim eiro a perna direita, depois a esquerda, restituiu fritz à segurança relativa de um a oscilante verticalidade, ele que até esse m om ento só se tinha podido valer da rij eza de uns quantos pelos da nuca do elefante para não se ver precipitado pela trom ba abaixo. Eis pois solim ão j á firm e nas suas quatro patas, ei-lo subitam ente anim ado pela chegada da galera da forragem que, ultrapassado, após trabalhosa luta das duas j untas de bois, o m ontão de neve a que antes nos referim os, avançava briosam ente em direção à saída do desfiladeiro e ao voraz apetite do elefante. A sua quase desfalecida alm a recebia agora o prém io pela proeza de haver feito regressar à vida o seu próprio corpo prostrado, com o para não levantar-se m ais, no m eio da branca e cruel paisagem . Ali m esm o foi posta a m esa e, enquanto fritz e o boieiro celebravam a salvação com uns quantos tragos de aguardente propriedade do hom em dos bois, solim ão devorava fardo após fardo com enternecedor entusiasm o. Só faltava que brotassem flores da neve e que as avezinhas da prim avera viessem entoar ao tirol as suas doces canções. Não se pode ter tudo. Já é m uito que fritz e o boieiro, m ultiplicando um a pela outra as suas respectivas inteligências, tivessem encontrado o rem édio para a preocupante tendência a separarem -se os diversos com ponentes da caravana com o se não tivessem nada que ver uns com os outros. Era um a solução, digam os, parcelar, m as sem dúvida precursora de um a m aneira diferente de abordar os problem as, isto é, m esm o que o obj etivo sej a servir os m eus interesses pessoais, é sem pre conveniente contar com a outra parte. Num a palavra, soluções integradas. A partir de agora os bois e o elefante viaj arão inapelavelm ente j untos, a galera dos fardos de forragem à frente, o elefante, por assim dizer ao cheiro da palha, atrás. Por m ais lógica e racional que se apresente a distribuição topográfica deste reduzido grupo, facto que ninguém ousará negar, nada do que aqui se logrou, graças à deliberada vontade de chegar a acordo, será aplicável, não faltaria m ais, aos arquiduques cuj o coche j á lá vai adiante, inclusive pode até ter j á chegado a bressanone. Se tal caso se der, estam os autorizados a revelar que solim ão gozará de um m erecido

descanso de duas sem anas nesta conhecida estância turística, concretam ente num a estalagem que tem o nom e de am hohen feld, que significa, nunca m elhor dito, terra íngrem e. É natural que a alguém lhe pareça estranho que um a estalagem que ainda se encontra em território italiano tenha um nom e alem ão, m as a coisa explica-se se nos lem brarm os de que a m aior parte dos hóspedes que aqui vêm são precisam ente austríacos e alem ães que gostam de sentir-se com o em sua casa. Razões afins levarão um dia a que, no algarve, com o alguém terá o cuidado de escrever, toda a praia que se preze, não é praia m as é beach, qualquer pescador fisherm an, tanto faz prezar-se com o não, e se de aldeam entos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquem os sabendo que é m ais aceite dizer-se holiday ’s village, ou village de vacances, ou ferienorte.

Chega-se ao cúm ulo de não haver nom e para loj a de m odas, porque ela é, num a espécie de português por adoção, boutique, e, necessariam ente, fashion shop em inglês, m enos necessariam ente m odes em francês, e francam ente m odegeschäft em alem ão. Um a sapataria apresenta-se com o shoes, e não se fala m ais nisso. E se o viaj ante pudesse catar, com o quem cata piolhos, nom es de bares e buates, quando chegasse a sines ainda iria nas prim eiras letras do alfabeto. Tão desprezado este na lusitana arrum ação que do algarve se pode dizer, nestas épocas em que descem os civilizados à barbárie, ser ele a terra do português tal qual se cala. Assim está bressanone.

Diz-se, depois de que prim eiro o tivesse dito tolstoi, que as fam ílias felizes não têm história.

Tam bém os elefantes felizes não parece que a tenham . Vej a-se o caso de solim ão. Durante as duas sem anas que esteve em bressanone descansou, dorm iu, com eu e bebeu à tripa-forra, até lhe chegar com o dedo, algo assim com o um as quatro toneladas de forragem e uns três m il litros de água, com o que pôde com pensar as num erosas dietas forçadas a que havia sido obrigado a subm eter-se durante a longa viagem por terras de portugal, espanha e itália, quando nem sem pre foi possível reabastecer-lhe com regularidade a despensa. Agora, solim ão recuperou as forças, está gordo, form oso, logo ao cabo de um a sem ana a pele flácida e enrugada j á tinha deixado de lhe fazer pregas com o um capote m al pendurado num a escápula. As boas notícias chegaram ao arquiduque que não dem orou a fazer um a visita a casa do elefante, isto é, ao seu próprio estábulo, em vez de o m andar sair à praça, para que exibisse perante a arquiducal autoridade e a população reunida, a excelente figura, o look m agnífico, que agora tem . Com o é natural, fritz esteve presente no ato, m as, consciente de que a paz com o arquiduque ainda não havia sido form alizada, se algum a vez o virá a ser, m ostrou-se discreto e atento, sem cham ar dem asiado as atenções, m as esperando que o arquiduque deixasse cair, pelo m enos, um a palavra de congratulação, um breve elogio. Assim aconteceu. No fim da visita, o arquiduque dirigiu-lhe de passagem um rápido relance de olhos e disse, Fizeste um bom trabalho, fritz, solim ão deve estar satisfeito, ao que ele respondeu, Não desej o outra coisa, m eu senhor, a m inha vida está posta ao serviço de vossa alteza. O arquiduque não respondeu, lim itou-se a resm ungar, lacónico, Uhm , uhm , som prim itivo, se não inicial, que cada um tratará de interpretar com o m elhor lhe convenha. Para fritz, sem pre disposto, por tem peram ento e filosofia de vida, a um a visão otim ista dos acontecim entos, aquele resm ungo, apesar da aparente secura e do im próprio de tal linguagem na boca de um a arquiducal e am anhã im perial pessoa, foi com o um passo, um pequeno m as seguro passo, em direção à tão ansiada concórdia. Esperem os até viena para ver o que sucede.

De bressanone ao desfiladeiro de brenner a distância é tão curta que de certeza não haverá tem po para que a caravana se disperse. Nem tem po nem distância. O que significará que irem os topar outra vez com o m esm o dilem a m oral de antes, o do passo de isarco, isto é, se vam os de com panhia ou separados. Assusta só de pensar que a extensa caravana poderá ver-se, toda ela, desde os couraceiros da frente até aos couraceiros da retaguarda, com o que entalada entre as paredes do desfiladeiro e sob a am eaça dos aludes de neve ou dos desm oronam entos de rochas.

Provavelm ente o m elhor será deixar a resolução do problem a nas m ãos de deus, ele que decida.

Vam os andando, vam os andando, e depois logo se vê. Contudo, esta preocupação, por m uito com preensível que sej a, não deverá fazer-nos esquecer a outra. Dizem os conhecedores que o passo de brenner é dez vezes m ais perigoso que o de isarco, outros dizem vinte vezes, e que todos os anos cobra um as quantas vítim as, sepultadas sob os aludes ou esm agadas pelos pedregulhos que rolam da m ontanha abaixo, se bem que ao princípio da queda não parecesse que levavam consigo esse aziago destino. Oxalá chegue o tem po em que por via da construção de viadutos que

unam as alturas um as às outras se elim inem os passos profundos em que, em bora ainda vivos, j á vam os m eio enterrados. O interessante do caso é que aqueles que têm de utilizar estes passos o fazem sem pre com um a espécie de resignação fatalista que, se não evita que o m edo lhes assalte o corpo, ao m enos parece deixar-lhes a alm a intacta, serena, com o um a luz firm e que nenhum furacão será capaz de apagar. Contam -se m uitas coisas e nem todas serão certas, m as o ser hum ano foi desta m aneira feito, tão capaz de crer que o pelo de elefante, depois de um processo de m aceração, faz crescer o cabelo, com o de im aginar que leva dentro de si um a luz única que o conduzirá pelos cam inhos da vida, incluindo os desfiladeiros. De um a m aneira ou outra, dizia o sábio erm ita dos alpes, sem pre terem os de m orrer.

O tem po não está bom , o que, nesta época do ano, com o j á tivem os abundantes provas, não é nenhum a novidade. É certo que a neve cai sem exageros e a visibilidade é quase norm al, m as o vento sopra com o lâm inas afiadas que vêm cortar as roupas, por m ais abrigo que elas pareçam dar. Que o digam os couraceiros. Segundo a notícia posta a correr na caravana, se a viagem vai recom eçar hoj e é porque am anhã se espera um agravam ento da situação m eteorológica, e tam bém porque, assim que estiverem percorridos uns quantos quilóm etros m ais para o norte, o pior dos alpes, em princípio, com eçará a ficar para trás. Ou, por outras palavras, antes que o inim igo nos ataque, ataquem o-lo nós a ele. Um a boa parte dos habitantes de bressanone veio assistir à partida do arquiduque m axim iliano e do seu elefante e em pago tiveram um a surpresa.

Quando o arquiduque e a esposa se dispunham a entrar no coche, solim ão fincou os dois j oelhos no chão gelado, o que fez levantar na assistência um a revoada de palm as e vivas absolutam ente digna de registo. O arquiduque com eçou por sorrir, m as logo franziu o sobrolho, pensando que este novo m ilagre havia sido um a m anobra desleal de fritz, desesperado por fazer as pazes. Não tem razão o nobre arquiduque, o gesto do elefante foi com pletam ente espontâneo, saiu-lhe, por assim dizer, da alm a, terá sido um a form a de agradecer, a quem de direito, o bom trato recebido na estalagem am hohen feld durante estes quinze dias, duas sem anas de felicidade autêntica, e, portanto, sem história. Em todo o caso, não deverá excluir-se a possibilidade de que o nosso elefante, j ustam ente preocupado com a m anifesta frieza das relações entre o seu cornaca e o arquiduque, tivesse querido contribuir com tão bonito gesto para apaziguar os ânim os desavindos, com o no futuro se dirá e depois deixará de dizer-se. Ou, para que não se nos acuse de parcialidade por supostam ente estarm os a om itir a verdadeira chave da questão, não se pode excluir a hipótese, que não é m eram ente acadêm ica, de que fritz, ou fosse de caso pensado ou por pura inadvertência, tenha tocado com o bastão na orelha direita de solim ão, órgão m ilagreiro por excelência com o em pádua se dem onstrou. Com o j á deveríam os saber, a representação m ais exata, m ais precisa, da alm a hum ana é o labirinto. Com ela tudo é possível.

A caravana está pronta para partir. Há um sentim ento geral de apreensão, um a tensão indisfarçável, percebe-se que as pessoas não conseguem tirar da cabeça o passo de brenner e os seus perigos. E o cronista destes acontecim entos não tem pej o em confessar que tem e não ser capaz de descrever o fam oso desfiladeiro que m ais adiante nos espera, ele que, j á quando do passo de isarco, teve de disfarçar o m elhor que podia a sua insuficiência, divagando por m atérias secundárias, talvez de algum a im portância em si m esm as, m as fugindo claram ente ao fundam ental. Pena que no século dezasseis a fotografia ainda não tivesse sido inventada, porque então a solução seria facílim a, bastaria inserir aqui um as quantas im agens da época, sobretudo se

captadas de helicóptero, e o leitor teria todos os m otivos para considerar-se am plam ente com pensado e reconhecer o ingente esforço inform ativo da nossa redação. A propósito, é hora de dizer que a pequena cidade que vem a seguir, a pouquíssim a distância de bressanone, se cham a em italiano, j á que em itália estam os ainda, vitipeno. Que os austríacos e os alem ães lhe cham em sterzing é algo que ultrapassa a nossa capacidade de com preensão. Não obstante, adm itim os com o possível, m as sem pôr as m ãos no fogo, que o italiano se cale m enos nestas partes que o português se tem calado nos algarves.

Já saím os de bressanone. Custa a entender que num a região tão acidentada com o esta, onde abundam vertiginosas cadeias de m ontanhas às cavalitas um as das outras, ainda tenha sido preciso rasgar as cicatrizes profundas dos passos do isarco e do brenner, em vez de ir pô-las noutros lugares do planeta m enos distinguidos com os bens da natureza, onde a excepcionalidade do assom broso fenóm eno geológico pudesse, graças à indústria do turism o, beneficiar m aterialm ente as m odestas e sofridas vidas dos habitantes. Ao contrário do que será lícito pensar, tendo em consideração os problem as narrativos francam ente expostos a propósito da travessia do isarco, estes com entários não se destinam a suprir por antecipação a previsível escassez de descrições do passo de brenner em que estam os prestes a entrar. São, isso sim , o hum ilde reconhecim ento de quanta verdade há na conhecida frase, Faltam -m e as palavras. Efetivam ente faltam -nos as palavras. Diz-se que num a das línguas faladas pelos índigenas da am érica do sul, talvez na am azónia, existem m ais de vinte expressões, um as vinte e sete, creio recordar, para designar a cor verde. Com parando com a pobreza do nosso vocabulário quanto a esta m atéria, parecerá que devia ser fácil para eles descrever as florestas em que vivem , no m eio de todos aqueles verdes m inuciosos e diferenciados, apenas separados por subtis e quase inapreensíveis m atizes. Não sabem os se algum a vez o tentaram e se ficaram satisfeitos com o resultado. O que, sim , sabem os, é que um m onocrom atism o qualquer, por exem plo, para não ir m ais longe, o aparente branco absoluto destas m ontanhas, tam bém não decide a questão, talvez porque haj a m ais de vinte m atizes de branco que o olho não pode perceber, m as cuj a existência pressente. A verdade, se quiserm os aceitá-la em toda a sua crueza, é que, sim plesm ente, não é possível descrever um a paisagem com palavras. Ou m elhor, ser possível, é, m as não vale a pena.

Pergunto se vale a pena escrever a palavra m ontanha se não sabem os que nom e se daria a m ontanha a si m esm a. Já a pintura é outra coisa, é m uito capaz de criar sobre a paleta vinte e sete tons de verde seus que escaparam à natureza, e alguns m ais que não o parecem , e a isso, com o com pete, cham am os arte. Às árvores pintadas não caem as folhas.

Já estam os no passo de brenner. Por ordem expressa do arquiduque, em silêncio total. Ao contrário do que havia sucedido até agora, a caravana, com o se o m edo tivesse produzido um efeito congregador, não tem m ostrado tendência a dispersar-se, os cavalos do coche arquiducal quase tocam com os focinhos os quartos traseiros das últim as m ontadas dos couraceiros, solim ão vai tão próxim o do frasquinho de essências da arquiduquesa que chega a aspirar deliciado o olor que dele se desprende cada vez que a filha de carlos quinto sente necessidade de refrescar-se. O

resto da caravana, com eçando pelo carro de bois com a forragem e a dorna da água segue o rasto com o se não houvesse outra m aneira de chegar ao destino. Trem e-se de frio, m as sobretudo de m edo. Nas anfractuosidades das altíssim as escarpas acum ula-se a neve que de vez em quando se desprende e vem cair com um ruído surdo sobre a caravana em pequenos aludes

que, sem m aior perigo por si m esm os, têm com o consequência aum entar os tem ores. Não há aqui ninguém que se sinta tão seguro de si m esm o que use os olhos para desfrutar a beleza da paisagem , em bora não falte um conhecedor que vai dizendo para o vizinho, Sem neve é m uito m ais bonito, É m ais bonito, com o, perguntou o com panheiro curioso, Não se pode descrever.

Realm ente, o m aior desrespeito à realidade, sej a ela, a realidade, o que for, que se poderá com eter quando nos dedicam os ao inútil trabalho de descrever um a paisagem , é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram nossas, repare-se, palavras que j á correram m ilhões de páginas e de bocas antes que chegasse a nossa vez de as utilizar, palavras cansadas, exaustas de tanto passarem de m ão em m ão e deixarem em cada um a parte da sua substância vital. Se escrevem os, por exem plo, as palavras arroio cristalino, de tanta aplicação precisam ente na descrição de paisagens, não nos detem os a pensar se o arroio continua a ser tão cristalino com o quando o vim os pela prim eira vez, ou se deixou de ser arroio para se transform ar em caudaloso rio, ou, m ofina sorte essa, no m ais infecto e m alcheiroso dos pântanos. Ainda que o não pareça à prim eira vista, tudo isto tem m uito que ver com aquela coraj osa afirm ação, acim a consignada, de que sim plesm ente não é possível descrever um a paisagem e, por extensão, qualquer outra coisa. Na boca de um a pessoa de confiança que, pela am ostra, conhece os lugares tal com o se nos apresentam nas diversas estações do ano, tais palavras dão que pensar. Se essa pessoa, com a sua honestidade e o seu saber de experiência feito, diz que não se pode descrever o que os olhos veem , traduzindo-o em palavras, neve sej a ou florido vergel, com o poderá atrever-se a tal alguém que nunca em sua vida atravessou o passo de brenner e nem em sonhos naquele século dezasseis, quando faltavam as autoestradas e os postos de abastecim ento de gasolina, croquetes e chávenas de café, além de um m otel para passar a noite no quente, enquanto cá fora ruge a tem pestade e um elefante perdido solta o m ais angustioso dos barritos. Não estivem os lá, curám os só por inform ações, e vá lá a saber-se o que valem elas, por exem plo, um a velha gravura, só respeitável pela sua idade provecta e pelo desenho ingênuo, m ostra um elefante do exército de aníbal despenhando-se por um a ravina, quando o certo é que durante a trabalhosa travessia dos alpes pelo exército cartaginês, pelo m enos tem -no afirm ado quem da m atéria sabe, nenhum elefante se perdeu. Aqui tam bém não se perdeu ninguém . A caravana continua com pacta, firm e, qualidades que não são m enos louváveis pelo facto de serem fundam entalm ente determ inadas, com o j á foi explicado antes, por sentim entos egoístas. Mas há exceções. A m aior preocupação dos couraceiros, por exem plo, não tem nada a ver com a segurança pessoal de cada um , m as com a dos seus cavalos, obrigados agora a avançar sobre um solo resvaladiço, de gelo duro, cinzento-azulado, onde um m etacarpo partido teria a m ais fatal das consequências. Até este m om ento, o m ilagre com etido por solim ão às portas da basílica de santo antónio em pádua, por m uito que tal pese ao ainda em pedernido luteranism o do arquiduque m axim iliano segundo de áustria, tem protegido a caravana, não só os poderosos que vão nela, m as tam bém a gente de pouco, o que prova, se ainda fosse precisa a dem onstração, as raras e excelentes virtudes taum atúrgicas do santo, fernando de bulhões no m undo, que duas cidades, lisboa e pádua, vêm disputando desde há séculos, bastante pro form a, diga-se, porque j á está claro para todo o m undo que foi pádua a que acabou por alçar-se com o pendão da vitória, contentando-se lisboa com as m archas populares dos bairros, o vinho tinto e a sardinha assada nas brasas, além dos balões e dos vasos de m anj erico. Não basta saber com o e onde nasceu fernando de bulhões, há que esperar para ver com o e onde irá m orrer santo antónio.

Continua a nevar e, que nos desculpem a vulgaridade da expressão, faz um frio de rachar. Ao chão convém pisá-lo com m il e um cuidados por causa do m aldito gelo, m as, em bora as m ontanhas não se tenham acabado, parece que os pulm ões com eçam a respirar m elhor, com outro desafogo, livres da estranha opressão que baixa das alturas inacessíveis. A próxim a cidade é innsbruck, na m argem do rio inn, e, se o arquiduque não se apartou da ideia que com unicou ao intendente ainda em bressanone, grande parte da distância que nos separa de viena vai ser percorrida em barco, navegação fluvial, portanto, descendo a corrente, prim eiro pelo inn, até passau, e depois pelo danúbio, rios de grande caudal, em particular o danúbio, a que na áustria cham am donau. É m ais do que provável que venham os a desfrutar de um a viagem tranquila, tão tranquila com o o foi a estância das duas sem anas em bressanone, em que nada sucedeu que fosse digno de nota, nenhum episódio burlesco para narrar ao serão, nenhum a história de fantasm as para contar aos netos, e por isso a gente se sentiu afortunada com o pouquíssim as vezes, todos chegados a salvo à estalagem am hohen feld, a fam ília longe, as preocupações pospostas, os credores disfarçando a im paciência, nenhum a carta com prom etedora caída em m ãos indevidas, enfim , o porvir, com o os antigos diziam , e acreditavam , só a deus pertence, vivam os nós o dia hoj e, que o de am anhã nunca se sabe. A alteração do itinerário não se deve a um capricho do arquiduque, em bora tivessem passado a estar incluídas no dito itinerário duas visitas por razões de cortesia, m as tam bém de alta política centro-europeia, a prim eira em wasserburg, ao duque da baviera, a segunda, m ais prolongada, em m üldhorf, ao duque ernst da baviera, adm inistrador do arcebispado de salzburgo. Voltando aos cam inhos, é verdade que a estrada de innsbruck a viena é relativam ente cóm oda, sem catastróficos acidentes orográficos com o foram os alpes e, se não vai em linha reta, pelo m enos está bastante segura de aonde quer chegar. Porém , a vantagem dos rios é serem com o estradas andantes, vão por seu pé, especialm ente estes, com os seus poderosos caudais. O m ais beneficiado com a m udança será solim ão que, para beber, só terá de chegar-se à borda da j angada, m eter a trom ba na água e aspirar. Contudo, não ficaria nada contente se pudesse saber que um cronista da cidade ribeirinha de hall, pouco adiante de innsbruck, um escriba qualquer de nom e franz schwey ger, escreverá, Maxim iliano voltou em esplendor de espanha, trazendo tam bém um elefante que tem doze pés de altura, sendo cor de rato. A retificação de solim ão, pelo que dele conhecem os, seria rápida, direta e incisiva, Não é o elefante que tem cor de rato, é o rato que tem cor de elefante. E

acrescentaria, Mais respeito, por favor.

Balanceando-se ao passo ritm ado de solim ão, fritz lim pa a neve que se lhe agarrou às sobrancelhas e pensa no que será o seu futuro em viena, cornaca é, cornaca continuará a ser, nem nunca poderia ser outra coisa, m as a lem brança do que foi o seu tem po em lisboa, esquecido de toda a gente depois de ter sido m otivo de gáudio da populaça, incluindo os fidalgos da corte que, em rigor, populaça são igualm ente, leva-o a perguntar a si m esm o se tam bém em viena o m eterão num a cerca de pau a pique com o elefante, a apodrecer. Algo terá de acontecer-nos, salom ão, disse, esta viagem tem sido só um intervalo, e j á agora agradece que o cornaca subhro te tenha restituído o teu verdadeiro nom e, boa ou m á, terás a vida para que nasceste e a que não poderás fugir, m as eu não nasci para ser cornaca, em verdade nenhum hom em nasceu para ser cornaca m esm o que outra porta não se lhe abra em toda a sua existência, no fundo sou um a espécie de parasita teu, um piolho perdido entre as cerdas do teu

lom bo, calculo que não viverei tanto tem po com o tu, as vidas dos hom ens são curtas com paradas com as dos elefantes, isso é sabido, pergunto-m e que será de ti não estando eu no m undo, cham arão outro cornaca, claro, alguém terá de tom ar conta de solim ão, talvez a arquiduquesa se ofereça, teria a sua graça, um a arquiduquesa a servir um elefante, ou então um dos príncipes quando forem crescidos, de um a m aneira ou outra, querido am igo, sem pre terás um porvir garantido, eu não, eu sou o cornaca, um parasita, um apêndice.

Cansados de tão longa cam inhada, chegám os a innsbruck num a data assinalada no calendário católico, o dia de reis, sendo o ano de m il quinhentos e cinquenta e dois. A festa foi de arrom ba com o seria de esperar da prim eira grande cidade austríaca que recebia o arquiduque. Que j á não se sabe m uito bem se os aplausos são para ele ou para o elefante, m as isso im porta pouco ao futuro im perador para quem solim ão é, além do m ais, um instrum ento político de prim eira grandeza, cuj a im portância nunca poderia ser afetada por ridículos ciúm es. O êxito dos encontros em wasserburg e em m üldhorf algo irá ficar a dever à presença de um anim al até agora desconhecido na áustria, com o se m axim iliano segundo o tivesse feito sair do nada para satisfação dos seus súbditos, dos m ais hum ildes aos principais. Esta parte final da viagem do elefante constituirá, toda ela, um clam or de constante j úbilo que passará de um a cidade a outra com o um rastilho de pólvora, além de que será um m otivo de inspiração para que os artistas e os poetas de cada lugar de passagem se esm erem em pinturas e gravuras, em m edalhas com em orativas, em inscrições poéticas com o as do conhecido hum anista caspar bruschius, destinadas à câm ara de linz. E, por falar de linz, onde a caravana abandonará barcos, botes e j angadas para fazer por seu pé o que falta de cam inho, é natural que alguém queira que lhe digam por que não continuou o arquiduque a utilizar a cóm oda via fluvial, um a vez que o m esm o danúbio que os trouxe a linz tam bém poderia tê-los levado a viena. Pensar assim é ingenuidade, ou, no pior dos casos, desconhecer ou não com preender a im portância de um a publicidade bem orientada na vida das nações em geral e na política e outros com ércios em particular.

Im aginem os que o arquiduque m axim iliano de áustria com etia o erro de desem barcar no porto fluvial de viena, sim , ouviram bem , no porto fluvial de viena. Ora, os portos, sej am eles grandes ou pequenos, de rio ou de m ar, nunca se distinguiram pela ordem e pelo asseio, e quando casualm ente se nos apresentem sob um a aparência de norm alidade organizada convém saber que isso não passa de um a das inúm eras e não raro contraditórias im agens do caos. Im aginem os o arquiduque a desem barcar com toda a sua caravana, incluindo um elefante, num cais atulhado de caixotes, sacos de todo o tipo, fardos disto e daquilo, no m eio do lixo, com a m ultidão a atrapalhar, digam -nos com o poderia ele abrir cam inho para chegar às avenidas novas e aí preparar o desfile. Seria um a triste entrada depois de m ais de três anos de ausência. Não será assim . Em m üldhorf o arquiduque dará ordens ao seu intendente para com eçar a elaborar um program a de recepção em viena à altura do acontecim ento, ou dos acontecim entos, em prim eiro lugar, com o é óbvio, a chegada da sua pessoa e da arquiduquesa, em segundo lugar a desse prodígio da natureza que é o elefante solim ão, o qual deslum brará os vienenses tal com o j á havia deslum brado quantos lhe puseram os olhos em cim a em portugal, espanha e itália, que, para falar com j ustiça, não são propriam ente países bárbaros. Correios a cavalo partiram para viena com instruções para o burgom estre e em que se exprim ia o desej o do arquiduque de ver retribuído nos corações e nas ruas todo o am or que, ele e a arquiduquesa, dedicavam à cidade. Para bom

entendedor até m eia palavra sobra. Outras instruções foram transm itidas, estas para uso interno, que se referiam à conveniência de aproveitar a navegação pelo inn e pelo danúbio para proceder a um a lavagem geral de pessoas e anim ais, a qual, não podendo, por razões com preensíveis, incluir banhos nas águas geladas, teria de ser m inim am ente efetiva. Aos arquiduques era fornecida todas as m anhãs um a boa quantidade de água quente para as suas abluções, o que levou alguns na caravana, m ais preocupados com a sua higiene pessoal, a m urm urarem com um suspiro de pesar, Se eu fosse o arquiduque. Não queriam o poder que m axim iliano segundo detinha nas suas m ãos, talvez m esm o não soubessem que fazer com ele, m as queriam a água quente, sobre cuj a utilidade não pareciam ter dúvidas.

Quando desem barcou em linz, o arquiduque j á levava ideias m uito claras sobre a nova m aneira de organizar a caravana em ordem a colher os m elhores proveitos possíveis, em particular no que se referia aos efeitos psicológicos do seu regresso no ânim o da população de viena, cabeça do reino e, portanto, sede da m ais aguda sensibilidade política. Os couraceiros, até então divididos em vanguarda e retaguarda, passaram a constituir um a form ação única, abrindo passo à caravana. Logo depois vinha o elefante, o que, tem os de reconhecê-lo, era um a j ogada estratégica digna de um alekhine, m orm ente quando não tardarem os a saber que o coche do arquiduque só ocupará o terceiro lugar nesta sequência. O obj etivo era claro, dar o m áxim o protagonism o a solim ão, o que tinha todo o sentido do m undo, pois arquiduques de áustria tinha-os conhecido antes viena, ao passo que em m atéria de elefantes era este o prim eiro. De linz a viena vão trinta e duas léguas, estando previstas duas paragens interm édias, um a em m elke e outra na cidade de am stetten, onde dorm irão, pequenas etapas com as quais se pretende que a caravana possa entrar em viena em razoável estado de frescura física. O tem po não está de rosas, a neve continua a cair e o vento não perdeu aquele fio que corta, m as, com parando com os passos do isarco e de brenner, esta estrada bem poderia ser a do paraíso, ainda que sej a duvidoso que naquele celeste lugar existam estradas, um a vez que as alm as, m al cum prem as form alidades de acesso, são ato contínuo dotadas de um par de asas, único m eio de locom oção ali autorizado.

Depois de am stetten não haverá outro descanso. A gente das aldeias desceu toda ao cam inho para ver o arquiduque e encontrou-se com um anim al de que ouvira falar vagam ente e que provocava as curiosidades m ais j ustificadas e as m ais absurdas explicações com o aconteceu àquele rapazinho que, tendo perguntado ao avô por que se cham ava elefante ao elefante, recebeu com o resposta que era por ter trom ba. Um austríaco, m esm o que pertença às classes baixas, não é um a pessoa com o qualquer outra, sem pre há-de saber tudo do que haj a para saber. Outra ideia que nasceu entre esta boa gente, assim com este ar de proteção costum am os dizer, foi que no país de onde o elefante viera todas as pessoas possuíam um , com o aqui um cavalo, um a m ula ou m ais frequentem ente um burro, e que todas elas eram bastante ricas para poderem alim entar um anim al daquele tam anho. A prova de que assim era tiveram -na quando foi preciso parar no m eio da estrada para dar de com er a solim ão que, por um a razão desconhecida, torcera o nariz ao pequeno-alm oço. Juntou-se ao redor um a pequena m ultidão assom brada com a rapidez com que o elefante, com a aj uda da trom ba, m etia pela boca abaixo e engolia os feixes de palha depois de lhes ter dado duas voltas entre uns poderosos m olares que, não podendo ser vistos de fora, facilm ente se im aginavam . À m edida que se aproxim avam de viena ia-se notando, aos poucos, um a certa m elhoria no estado do tem po. Nada de extraordinário, as nuvens continuavam baixas,

m as havia deixado de nevar. Alguém disse, Se isto continua, irem os ter em viena céu descoberto e um sol a brilhar. Não seria exatam ente assim , porém , outro galo teria cantado nesta viagem se a m eteorologia geral tivesse seguido o exem plo desta que será conhecida um dia por cidade das valsas. De vez em quando a caravana era obrigada a parar porque os aldeãos e as aldeãs das redondezas queriam m ostrar as suas habilidades de canto e dança, as quais agradavam especialm ente à arquiduquesa cuj a satisfação o arquiduque partilhava de um a m aneira benevolente, quase paternal, que correspondia a um pensam ento m uito com um , então e sem pre, Que se lhes há-de fazer, as m ulheres são assim . As torres e as cúpulas de viena j á estavam no horizonte, as portas da cidade abertas de par em par, e o povo nas ruas e nas praças, envergando as suas m elhores galas em honra dos arquiduques. Tinha sido assim em valladolid quando da chegada do elefante, m as os povos ibéricos por qualquer coisa se põem contentes, são com o crianças. Aqui, em viena de áustria, cultiva-se a disciplina e a ordem , há algo de teutónico nesta educação, com o o futuro se encarregará de explicar m elhor. Vem entrando na cidade a m áxim a expressão da autoridade pública e um sentim ento de respeito e acatam ento incondicional é o que prevalece entre a população. A vida, porém , tem m uitas cartas no baralho e não é raro que as j ogue quando m enos se espera. Ia o elefante no seu passo m edido, sem pressa, o passo de quem sabe que para chegar nem sem pre é preciso correr. De súbito, um a m enina de uns cinco anos, soube-se m ais tarde que esta era a sua idade, assistindo com os pais à passagem do cortej o, desprendeu-se da m ão da m ãe, e correu para o elefante. Um grito de susto saiu da garganta de quantos se aperceberam da tragédia que se preparava, as patas do anim al derrubando e calcando o pobre corpinho, o regresso do arquiduque assinalado por um a desgraça, um luto, um a terrível m ancha de sangue no brasão de arm as da cidade. Era não conhecer salom ão. Enlaçou com a trom ba o corpo da m enina com o se a abraçasse e levantou-a ao ar com o um a nova bandeira, a de um a vida salva no últim o instante, quando j á se perdia. Os pais da m enina, chorando, correram para salom ão e receberam nos braços a filha recuperada, ressuscitada, enquanto toda a gente aplaudia, não poucos desfazendo-se em lágrim as de incontida em oção, alguns dizendo que aquilo havia sido um m ilagre, e m ais não sabiam daquele que salom ão tinha com etido em pádua, aj oelhando-se à porta da basílica de santo antónio. Com o se ainda estivesse a faltar algo ao desenlace do dram ático lance a que acabám os de assistir, viu-se o arquiduque descer do coche, dar a m ão à arquiduquesa para aj udá-la a descer tam bém , e os dois, j untos, de m ãos dadas, dirigiram -se ao elefante, que as pessoas continuavam a rodear e festej ar com o o herói desse dia e que o será por m uito tem po m ais, pois a história do elefante que em viena salvou de m orte certa um a m enina irá ser contada m il vezes, am pliada outras tantas, até hoj e. Quando as pessoas deram pela aproxim ação dos arquiduques fizeram silêncio e abriram alas. A com oção era visível em m uitos daqueles rostos, havia ainda quem enxugasse com dificuldade as últim as lágrim as. Fritz tinha descido do elefante e esperava. O arquiduque parou diante dele, olhou-o a direito nos olhos. Fritz curvou a cabeça e encontrou diante de si a m ão direita, aberta e expectante, Senhor, não m e atrevo, disse, e m ostrou as suas próprias m ãos, suj as dos contínuos contatos com a pele do elefante, que, ainda assim , era o m ais lim po dos dois, um a vez que fritz j á perdeu a m em ória do que é um banho geral e solim ão não pode ver um charco de água que não corra a chafurdar nele. Com o o arquiduque não retirava a m ão, fritz não teve outra solução que tocar-lhe com a sua, a pele grossa e calosa de um cornaca e a pele fina e delicada de quem nem sequer se veste com as suas próprias m ãos. Então o arquiduque disse, Agradeço-te teres evitado

um a tragédia, Eu não fiz nada, m eu senhor, os m éritos são todos de solim ão, Assim terá sido, m as im agino que em algo haverás aj udado, Fiz o que pude, m eu senhor, para isso sou o cornaca, Se toda a gente fizesse o que pode, o m undo estaria com certeza m elhor, Basta que vossa alteza o diga para que sej a certo, Estás perdoado, não precisas de lisonj ear-m e, Obrigado, m eu senhor, Que sej as bem -vindo a viena e que viena te m ereça, a ti e a solim ão, aqui sereis felizes. E com esta palavra m axim iliano segundo retirou-se para o coche levando a arquiduquesa pela m ão. A filha de carlos quinto está grávida outra vez.

O elefante m orreu quase dois anos depois, outra vez inverno, no últim o m ês de m il quinhentos e cinquenta e três. A causa da m orte não chegou a ser conhecida, ainda não era tem po de análises de sangue, radiografias do tórax, endoscopias, ressonâncias m agnéticas e outras observações que hoj e são o pão de cada dia para os hum anos, não tanto para os anim ais, que sim plesm ente m orrem sem um a enferm eira que lhes ponha a m ão na testa. Além de o terem esfolado, a salom ão cortaram -lhe as patas dianteiras para que, após as necessárias operações de lim peza e curtim ento, servissem de recipientes, à entrada do palácio, para depositar as bengalas, os bastões, os guarda-chuvas e as som brinhas de verão. Com o se vê, a salom ão não lhe serviu de nada ter-se aj oelhado. O cornaca subhro recebeu das m ãos do intendente a parte de soldada que estava em dívida, acrescida, por ordem do arquiduque, de um a propina bastante generosa, e, com esse dinheiro, com prou um a m ula para servir-lhe de m ontada e um burro para levar-lhe a caixa com os seus poucos haveres. Anunciou que ia regressar a lisboa, m as não há notícia de ter entrado no país. Ou m udou de ideias, ou m orreu no cam inho.

Sem anas depois chegou à corte portuguesa um a carta do arquiduque. Nela se inform ava que o elefante solim ão tinha m orrido, m as que os habitantes de viena nunca o esqueceriam , pois havia salvo a vida de um a criança no m esm o dia em que chegou à cidade. O prim eiro leitor da carta foi o secretário de estado pêro de alcáçova carneiro que a entregou ao rei, ao m esm o tem po que dizia, Morreu o salom ão, m eu senhor. Dom j oão terceiro fez um gesto de surpresa e um a som bra de m ágoa cobriu-lhe o rosto. Mande cham ar a rainha, disse. Dona catarina não tardou, com o se adivinhasse que a carta trazia notícias que lhe interessavam , talvez um nascim ento, talvez um a boda. Nascim ento e boda não deveriam ser, a cara do m arido contava outra história. Dom j oão terceiro m urm urou, Diz aqui o prim o m axim iliano que o salom ão. A rainha não o deixou acabar, Não quero saber, gritou, não quero saber. E correu a encerrar-se na sua câm ara, onde chorou todo o resto do dia.

SOBRE JOSÉ SARAMAGO E A VIAGEM DE UM ELEFANTE

Alberto da Costa e Silva

Cada um de nós, ainda que não o saiba, é um a antologia am bulante e traz dentro de si um a história do m undo. Um m useu particular. Um álbum de paisagens. A sua estante de livros, com os versos de que se socorre, quando necessita de desabafo, consolo, estím ulo e exem plo, os versos que lhe descem naturalm ente da m em ória, com o se fossem dele, isto é, nossos, e não de seus achadores. Aos poetas pedim os isto, que falem por nós, antes que saibam os o que desej ávam os dizer. Disso não dispensam os os ficcionistas sobretudo aqueles que com eçaram com o poetas e continuam poetas, com o José Saram ago, m as neles querem os tam bém encontrar as nossas outras vidas possíveis ou sonháveis, no tem po e no espaço. Se um teste do grande poeta é ter versos que se incorporam ao falar diário com o “um urubu pousou na m inha sorte” ou “tinha um a pedra no m eio do cam inho”, o do rom ancista e do contista é deixar conosco personagens a quem poderíam os estender ou recusar a m ão, em cenários que incluím os entre aqueles que algum dia frequentam os, e acom panhar em situações que perm anecem em nossa lem brança com o algo vivo, porque im aginado.

Ou im aginado, porque vivido. Com o Baltasar Sete-Sóis a cortar um m olho de vim e no alagadiço, enquanto Blim unda, em vez de olhar para dentro das pessoas, colhe lírios-d’água para enfeitar as orelhas do burrico. A um só tem po reais e im prováveis, os dois estão na antologia de gente que m orrerá com igo. Com o tam bém Ricardo Reis a andar pelo Alto de Santa Catarina, com o tantas vezes eu andei, sem sequer pressentir que lhe pisava os passos.

O m ais difícil, digo a propósito desse Ricardo Reis, é inventar o que j á foi inventado, dar carne, dúvidas e fraquezas a um certo poeta que Fernando Pessoa desentranhou de si m esm o, para escrever dez dúzias de poem as. E trazê-lo do Brasil e do im aginário para a Lisboa de 1935.

Are sens