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que, sem m aior perigo por si m esm os, têm com o consequência aum entar os tem ores. Não há aqui ninguém que se sinta tão seguro de si m esm o que use os olhos para desfrutar a beleza da paisagem , em bora não falte um conhecedor que vai dizendo para o vizinho, Sem neve é m uito m ais bonito, É m ais bonito, com o, perguntou o com panheiro curioso, Não se pode descrever.

Realm ente, o m aior desrespeito à realidade, sej a ela, a realidade, o que for, que se poderá com eter quando nos dedicam os ao inútil trabalho de descrever um a paisagem , é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram nossas, repare-se, palavras que j á correram m ilhões de páginas e de bocas antes que chegasse a nossa vez de as utilizar, palavras cansadas, exaustas de tanto passarem de m ão em m ão e deixarem em cada um a parte da sua substância vital. Se escrevem os, por exem plo, as palavras arroio cristalino, de tanta aplicação precisam ente na descrição de paisagens, não nos detem os a pensar se o arroio continua a ser tão cristalino com o quando o vim os pela prim eira vez, ou se deixou de ser arroio para se transform ar em caudaloso rio, ou, m ofina sorte essa, no m ais infecto e m alcheiroso dos pântanos. Ainda que o não pareça à prim eira vista, tudo isto tem m uito que ver com aquela coraj osa afirm ação, acim a consignada, de que sim plesm ente não é possível descrever um a paisagem e, por extensão, qualquer outra coisa. Na boca de um a pessoa de confiança que, pela am ostra, conhece os lugares tal com o se nos apresentam nas diversas estações do ano, tais palavras dão que pensar. Se essa pessoa, com a sua honestidade e o seu saber de experiência feito, diz que não se pode descrever o que os olhos veem , traduzindo-o em palavras, neve sej a ou florido vergel, com o poderá atrever-se a tal alguém que nunca em sua vida atravessou o passo de brenner e nem em sonhos naquele século dezasseis, quando faltavam as autoestradas e os postos de abastecim ento de gasolina, croquetes e chávenas de café, além de um m otel para passar a noite no quente, enquanto cá fora ruge a tem pestade e um elefante perdido solta o m ais angustioso dos barritos. Não estivem os lá, curám os só por inform ações, e vá lá a saber-se o que valem elas, por exem plo, um a velha gravura, só respeitável pela sua idade provecta e pelo desenho ingênuo, m ostra um elefante do exército de aníbal despenhando-se por um a ravina, quando o certo é que durante a trabalhosa travessia dos alpes pelo exército cartaginês, pelo m enos tem -no afirm ado quem da m atéria sabe, nenhum elefante se perdeu. Aqui tam bém não se perdeu ninguém . A caravana continua com pacta, firm e, qualidades que não são m enos louváveis pelo facto de serem fundam entalm ente determ inadas, com o j á foi explicado antes, por sentim entos egoístas. Mas há exceções. A m aior preocupação dos couraceiros, por exem plo, não tem nada a ver com a segurança pessoal de cada um , m as com a dos seus cavalos, obrigados agora a avançar sobre um solo resvaladiço, de gelo duro, cinzento-azulado, onde um m etacarpo partido teria a m ais fatal das consequências. Até este m om ento, o m ilagre com etido por solim ão às portas da basílica de santo antónio em pádua, por m uito que tal pese ao ainda em pedernido luteranism o do arquiduque m axim iliano segundo de áustria, tem protegido a caravana, não só os poderosos que vão nela, m as tam bém a gente de pouco, o que prova, se ainda fosse precisa a dem onstração, as raras e excelentes virtudes taum atúrgicas do santo, fernando de bulhões no m undo, que duas cidades, lisboa e pádua, vêm disputando desde há séculos, bastante pro form a, diga-se, porque j á está claro para todo o m undo que foi pádua a que acabou por alçar-se com o pendão da vitória, contentando-se lisboa com as m archas populares dos bairros, o vinho tinto e a sardinha assada nas brasas, além dos balões e dos vasos de m anj erico. Não basta saber com o e onde nasceu fernando de bulhões, há que esperar para ver com o e onde irá m orrer santo antónio.

Continua a nevar e, que nos desculpem a vulgaridade da expressão, faz um frio de rachar. Ao chão convém pisá-lo com m il e um cuidados por causa do m aldito gelo, m as, em bora as m ontanhas não se tenham acabado, parece que os pulm ões com eçam a respirar m elhor, com outro desafogo, livres da estranha opressão que baixa das alturas inacessíveis. A próxim a cidade é innsbruck, na m argem do rio inn, e, se o arquiduque não se apartou da ideia que com unicou ao intendente ainda em bressanone, grande parte da distância que nos separa de viena vai ser percorrida em barco, navegação fluvial, portanto, descendo a corrente, prim eiro pelo inn, até passau, e depois pelo danúbio, rios de grande caudal, em particular o danúbio, a que na áustria cham am donau. É m ais do que provável que venham os a desfrutar de um a viagem tranquila, tão tranquila com o o foi a estância das duas sem anas em bressanone, em que nada sucedeu que fosse digno de nota, nenhum episódio burlesco para narrar ao serão, nenhum a história de fantasm as para contar aos netos, e por isso a gente se sentiu afortunada com o pouquíssim as vezes, todos chegados a salvo à estalagem am hohen feld, a fam ília longe, as preocupações pospostas, os credores disfarçando a im paciência, nenhum a carta com prom etedora caída em m ãos indevidas, enfim , o porvir, com o os antigos diziam , e acreditavam , só a deus pertence, vivam os nós o dia hoj e, que o de am anhã nunca se sabe. A alteração do itinerário não se deve a um capricho do arquiduque, em bora tivessem passado a estar incluídas no dito itinerário duas visitas por razões de cortesia, m as tam bém de alta política centro-europeia, a prim eira em wasserburg, ao duque da baviera, a segunda, m ais prolongada, em m üldhorf, ao duque ernst da baviera, adm inistrador do arcebispado de salzburgo. Voltando aos cam inhos, é verdade que a estrada de innsbruck a viena é relativam ente cóm oda, sem catastróficos acidentes orográficos com o foram os alpes e, se não vai em linha reta, pelo m enos está bastante segura de aonde quer chegar. Porém , a vantagem dos rios é serem com o estradas andantes, vão por seu pé, especialm ente estes, com os seus poderosos caudais. O m ais beneficiado com a m udança será solim ão que, para beber, só terá de chegar-se à borda da j angada, m eter a trom ba na água e aspirar. Contudo, não ficaria nada contente se pudesse saber que um cronista da cidade ribeirinha de hall, pouco adiante de innsbruck, um escriba qualquer de nom e franz schwey ger, escreverá, Maxim iliano voltou em esplendor de espanha, trazendo tam bém um elefante que tem doze pés de altura, sendo cor de rato. A retificação de solim ão, pelo que dele conhecem os, seria rápida, direta e incisiva, Não é o elefante que tem cor de rato, é o rato que tem cor de elefante. E

acrescentaria, Mais respeito, por favor.

Balanceando-se ao passo ritm ado de solim ão, fritz lim pa a neve que se lhe agarrou às sobrancelhas e pensa no que será o seu futuro em viena, cornaca é, cornaca continuará a ser, nem nunca poderia ser outra coisa, m as a lem brança do que foi o seu tem po em lisboa, esquecido de toda a gente depois de ter sido m otivo de gáudio da populaça, incluindo os fidalgos da corte que, em rigor, populaça são igualm ente, leva-o a perguntar a si m esm o se tam bém em viena o m eterão num a cerca de pau a pique com o elefante, a apodrecer. Algo terá de acontecer-nos, salom ão, disse, esta viagem tem sido só um intervalo, e j á agora agradece que o cornaca subhro te tenha restituído o teu verdadeiro nom e, boa ou m á, terás a vida para que nasceste e a que não poderás fugir, m as eu não nasci para ser cornaca, em verdade nenhum hom em nasceu para ser cornaca m esm o que outra porta não se lhe abra em toda a sua existência, no fundo sou um a espécie de parasita teu, um piolho perdido entre as cerdas do teu

lom bo, calculo que não viverei tanto tem po com o tu, as vidas dos hom ens são curtas com paradas com as dos elefantes, isso é sabido, pergunto-m e que será de ti não estando eu no m undo, cham arão outro cornaca, claro, alguém terá de tom ar conta de solim ão, talvez a arquiduquesa se ofereça, teria a sua graça, um a arquiduquesa a servir um elefante, ou então um dos príncipes quando forem crescidos, de um a m aneira ou outra, querido am igo, sem pre terás um porvir garantido, eu não, eu sou o cornaca, um parasita, um apêndice.

Cansados de tão longa cam inhada, chegám os a innsbruck num a data assinalada no calendário católico, o dia de reis, sendo o ano de m il quinhentos e cinquenta e dois. A festa foi de arrom ba com o seria de esperar da prim eira grande cidade austríaca que recebia o arquiduque. Que j á não se sabe m uito bem se os aplausos são para ele ou para o elefante, m as isso im porta pouco ao futuro im perador para quem solim ão é, além do m ais, um instrum ento político de prim eira grandeza, cuj a im portância nunca poderia ser afetada por ridículos ciúm es. O êxito dos encontros em wasserburg e em m üldhorf algo irá ficar a dever à presença de um anim al até agora desconhecido na áustria, com o se m axim iliano segundo o tivesse feito sair do nada para satisfação dos seus súbditos, dos m ais hum ildes aos principais. Esta parte final da viagem do elefante constituirá, toda ela, um clam or de constante j úbilo que passará de um a cidade a outra com o um rastilho de pólvora, além de que será um m otivo de inspiração para que os artistas e os poetas de cada lugar de passagem se esm erem em pinturas e gravuras, em m edalhas com em orativas, em inscrições poéticas com o as do conhecido hum anista caspar bruschius, destinadas à câm ara de linz. E, por falar de linz, onde a caravana abandonará barcos, botes e j angadas para fazer por seu pé o que falta de cam inho, é natural que alguém queira que lhe digam por que não continuou o arquiduque a utilizar a cóm oda via fluvial, um a vez que o m esm o danúbio que os trouxe a linz tam bém poderia tê-los levado a viena. Pensar assim é ingenuidade, ou, no pior dos casos, desconhecer ou não com preender a im portância de um a publicidade bem orientada na vida das nações em geral e na política e outros com ércios em particular.

Im aginem os que o arquiduque m axim iliano de áustria com etia o erro de desem barcar no porto fluvial de viena, sim , ouviram bem , no porto fluvial de viena. Ora, os portos, sej am eles grandes ou pequenos, de rio ou de m ar, nunca se distinguiram pela ordem e pelo asseio, e quando casualm ente se nos apresentem sob um a aparência de norm alidade organizada convém saber que isso não passa de um a das inúm eras e não raro contraditórias im agens do caos. Im aginem os o arquiduque a desem barcar com toda a sua caravana, incluindo um elefante, num cais atulhado de caixotes, sacos de todo o tipo, fardos disto e daquilo, no m eio do lixo, com a m ultidão a atrapalhar, digam -nos com o poderia ele abrir cam inho para chegar às avenidas novas e aí preparar o desfile. Seria um a triste entrada depois de m ais de três anos de ausência. Não será assim . Em m üldhorf o arquiduque dará ordens ao seu intendente para com eçar a elaborar um program a de recepção em viena à altura do acontecim ento, ou dos acontecim entos, em prim eiro lugar, com o é óbvio, a chegada da sua pessoa e da arquiduquesa, em segundo lugar a desse prodígio da natureza que é o elefante solim ão, o qual deslum brará os vienenses tal com o j á havia deslum brado quantos lhe puseram os olhos em cim a em portugal, espanha e itália, que, para falar com j ustiça, não são propriam ente países bárbaros. Correios a cavalo partiram para viena com instruções para o burgom estre e em que se exprim ia o desej o do arquiduque de ver retribuído nos corações e nas ruas todo o am or que, ele e a arquiduquesa, dedicavam à cidade. Para bom

entendedor até m eia palavra sobra. Outras instruções foram transm itidas, estas para uso interno, que se referiam à conveniência de aproveitar a navegação pelo inn e pelo danúbio para proceder a um a lavagem geral de pessoas e anim ais, a qual, não podendo, por razões com preensíveis, incluir banhos nas águas geladas, teria de ser m inim am ente efetiva. Aos arquiduques era fornecida todas as m anhãs um a boa quantidade de água quente para as suas abluções, o que levou alguns na caravana, m ais preocupados com a sua higiene pessoal, a m urm urarem com um suspiro de pesar, Se eu fosse o arquiduque. Não queriam o poder que m axim iliano segundo detinha nas suas m ãos, talvez m esm o não soubessem que fazer com ele, m as queriam a água quente, sobre cuj a utilidade não pareciam ter dúvidas.

Quando desem barcou em linz, o arquiduque j á levava ideias m uito claras sobre a nova m aneira de organizar a caravana em ordem a colher os m elhores proveitos possíveis, em particular no que se referia aos efeitos psicológicos do seu regresso no ânim o da população de viena, cabeça do reino e, portanto, sede da m ais aguda sensibilidade política. Os couraceiros, até então divididos em vanguarda e retaguarda, passaram a constituir um a form ação única, abrindo passo à caravana. Logo depois vinha o elefante, o que, tem os de reconhecê-lo, era um a j ogada estratégica digna de um alekhine, m orm ente quando não tardarem os a saber que o coche do arquiduque só ocupará o terceiro lugar nesta sequência. O obj etivo era claro, dar o m áxim o protagonism o a solim ão, o que tinha todo o sentido do m undo, pois arquiduques de áustria tinha-os conhecido antes viena, ao passo que em m atéria de elefantes era este o prim eiro. De linz a viena vão trinta e duas léguas, estando previstas duas paragens interm édias, um a em m elke e outra na cidade de am stetten, onde dorm irão, pequenas etapas com as quais se pretende que a caravana possa entrar em viena em razoável estado de frescura física. O tem po não está de rosas, a neve continua a cair e o vento não perdeu aquele fio que corta, m as, com parando com os passos do isarco e de brenner, esta estrada bem poderia ser a do paraíso, ainda que sej a duvidoso que naquele celeste lugar existam estradas, um a vez que as alm as, m al cum prem as form alidades de acesso, são ato contínuo dotadas de um par de asas, único m eio de locom oção ali autorizado.

Depois de am stetten não haverá outro descanso. A gente das aldeias desceu toda ao cam inho para ver o arquiduque e encontrou-se com um anim al de que ouvira falar vagam ente e que provocava as curiosidades m ais j ustificadas e as m ais absurdas explicações com o aconteceu àquele rapazinho que, tendo perguntado ao avô por que se cham ava elefante ao elefante, recebeu com o resposta que era por ter trom ba. Um austríaco, m esm o que pertença às classes baixas, não é um a pessoa com o qualquer outra, sem pre há-de saber tudo do que haj a para saber. Outra ideia que nasceu entre esta boa gente, assim com este ar de proteção costum am os dizer, foi que no país de onde o elefante viera todas as pessoas possuíam um , com o aqui um cavalo, um a m ula ou m ais frequentem ente um burro, e que todas elas eram bastante ricas para poderem alim entar um anim al daquele tam anho. A prova de que assim era tiveram -na quando foi preciso parar no m eio da estrada para dar de com er a solim ão que, por um a razão desconhecida, torcera o nariz ao pequeno-alm oço. Juntou-se ao redor um a pequena m ultidão assom brada com a rapidez com que o elefante, com a aj uda da trom ba, m etia pela boca abaixo e engolia os feixes de palha depois de lhes ter dado duas voltas entre uns poderosos m olares que, não podendo ser vistos de fora, facilm ente se im aginavam . À m edida que se aproxim avam de viena ia-se notando, aos poucos, um a certa m elhoria no estado do tem po. Nada de extraordinário, as nuvens continuavam baixas,

m as havia deixado de nevar. Alguém disse, Se isto continua, irem os ter em viena céu descoberto e um sol a brilhar. Não seria exatam ente assim , porém , outro galo teria cantado nesta viagem se a m eteorologia geral tivesse seguido o exem plo desta que será conhecida um dia por cidade das valsas. De vez em quando a caravana era obrigada a parar porque os aldeãos e as aldeãs das redondezas queriam m ostrar as suas habilidades de canto e dança, as quais agradavam especialm ente à arquiduquesa cuj a satisfação o arquiduque partilhava de um a m aneira benevolente, quase paternal, que correspondia a um pensam ento m uito com um , então e sem pre, Que se lhes há-de fazer, as m ulheres são assim . As torres e as cúpulas de viena j á estavam no horizonte, as portas da cidade abertas de par em par, e o povo nas ruas e nas praças, envergando as suas m elhores galas em honra dos arquiduques. Tinha sido assim em valladolid quando da chegada do elefante, m as os povos ibéricos por qualquer coisa se põem contentes, são com o crianças. Aqui, em viena de áustria, cultiva-se a disciplina e a ordem , há algo de teutónico nesta educação, com o o futuro se encarregará de explicar m elhor. Vem entrando na cidade a m áxim a expressão da autoridade pública e um sentim ento de respeito e acatam ento incondicional é o que prevalece entre a população. A vida, porém , tem m uitas cartas no baralho e não é raro que as j ogue quando m enos se espera. Ia o elefante no seu passo m edido, sem pressa, o passo de quem sabe que para chegar nem sem pre é preciso correr. De súbito, um a m enina de uns cinco anos, soube-se m ais tarde que esta era a sua idade, assistindo com os pais à passagem do cortej o, desprendeu-se da m ão da m ãe, e correu para o elefante. Um grito de susto saiu da garganta de quantos se aperceberam da tragédia que se preparava, as patas do anim al derrubando e calcando o pobre corpinho, o regresso do arquiduque assinalado por um a desgraça, um luto, um a terrível m ancha de sangue no brasão de arm as da cidade. Era não conhecer salom ão. Enlaçou com a trom ba o corpo da m enina com o se a abraçasse e levantou-a ao ar com o um a nova bandeira, a de um a vida salva no últim o instante, quando j á se perdia. Os pais da m enina, chorando, correram para salom ão e receberam nos braços a filha recuperada, ressuscitada, enquanto toda a gente aplaudia, não poucos desfazendo-se em lágrim as de incontida em oção, alguns dizendo que aquilo havia sido um m ilagre, e m ais não sabiam daquele que salom ão tinha com etido em pádua, aj oelhando-se à porta da basílica de santo antónio. Com o se ainda estivesse a faltar algo ao desenlace do dram ático lance a que acabám os de assistir, viu-se o arquiduque descer do coche, dar a m ão à arquiduquesa para aj udá-la a descer tam bém , e os dois, j untos, de m ãos dadas, dirigiram -se ao elefante, que as pessoas continuavam a rodear e festej ar com o o herói desse dia e que o será por m uito tem po m ais, pois a história do elefante que em viena salvou de m orte certa um a m enina irá ser contada m il vezes, am pliada outras tantas, até hoj e. Quando as pessoas deram pela aproxim ação dos arquiduques fizeram silêncio e abriram alas. A com oção era visível em m uitos daqueles rostos, havia ainda quem enxugasse com dificuldade as últim as lágrim as. Fritz tinha descido do elefante e esperava. O arquiduque parou diante dele, olhou-o a direito nos olhos. Fritz curvou a cabeça e encontrou diante de si a m ão direita, aberta e expectante, Senhor, não m e atrevo, disse, e m ostrou as suas próprias m ãos, suj as dos contínuos contatos com a pele do elefante, que, ainda assim , era o m ais lim po dos dois, um a vez que fritz j á perdeu a m em ória do que é um banho geral e solim ão não pode ver um charco de água que não corra a chafurdar nele. Com o o arquiduque não retirava a m ão, fritz não teve outra solução que tocar-lhe com a sua, a pele grossa e calosa de um cornaca e a pele fina e delicada de quem nem sequer se veste com as suas próprias m ãos. Então o arquiduque disse, Agradeço-te teres evitado

um a tragédia, Eu não fiz nada, m eu senhor, os m éritos são todos de solim ão, Assim terá sido, m as im agino que em algo haverás aj udado, Fiz o que pude, m eu senhor, para isso sou o cornaca, Se toda a gente fizesse o que pode, o m undo estaria com certeza m elhor, Basta que vossa alteza o diga para que sej a certo, Estás perdoado, não precisas de lisonj ear-m e, Obrigado, m eu senhor, Que sej as bem -vindo a viena e que viena te m ereça, a ti e a solim ão, aqui sereis felizes. E com esta palavra m axim iliano segundo retirou-se para o coche levando a arquiduquesa pela m ão. A filha de carlos quinto está grávida outra vez.

O elefante m orreu quase dois anos depois, outra vez inverno, no últim o m ês de m il quinhentos e cinquenta e três. A causa da m orte não chegou a ser conhecida, ainda não era tem po de análises de sangue, radiografias do tórax, endoscopias, ressonâncias m agnéticas e outras observações que hoj e são o pão de cada dia para os hum anos, não tanto para os anim ais, que sim plesm ente m orrem sem um a enferm eira que lhes ponha a m ão na testa. Além de o terem esfolado, a salom ão cortaram -lhe as patas dianteiras para que, após as necessárias operações de lim peza e curtim ento, servissem de recipientes, à entrada do palácio, para depositar as bengalas, os bastões, os guarda-chuvas e as som brinhas de verão. Com o se vê, a salom ão não lhe serviu de nada ter-se aj oelhado. O cornaca subhro recebeu das m ãos do intendente a parte de soldada que estava em dívida, acrescida, por ordem do arquiduque, de um a propina bastante generosa, e, com esse dinheiro, com prou um a m ula para servir-lhe de m ontada e um burro para levar-lhe a caixa com os seus poucos haveres. Anunciou que ia regressar a lisboa, m as não há notícia de ter entrado no país. Ou m udou de ideias, ou m orreu no cam inho.

Sem anas depois chegou à corte portuguesa um a carta do arquiduque. Nela se inform ava que o elefante solim ão tinha m orrido, m as que os habitantes de viena nunca o esqueceriam , pois havia salvo a vida de um a criança no m esm o dia em que chegou à cidade. O prim eiro leitor da carta foi o secretário de estado pêro de alcáçova carneiro que a entregou ao rei, ao m esm o tem po que dizia, Morreu o salom ão, m eu senhor. Dom j oão terceiro fez um gesto de surpresa e um a som bra de m ágoa cobriu-lhe o rosto. Mande cham ar a rainha, disse. Dona catarina não tardou, com o se adivinhasse que a carta trazia notícias que lhe interessavam , talvez um nascim ento, talvez um a boda. Nascim ento e boda não deveriam ser, a cara do m arido contava outra história. Dom j oão terceiro m urm urou, Diz aqui o prim o m axim iliano que o salom ão. A rainha não o deixou acabar, Não quero saber, gritou, não quero saber. E correu a encerrar-se na sua câm ara, onde chorou todo o resto do dia.

SOBRE JOSÉ SARAMAGO E A VIAGEM DE UM ELEFANTE

Alberto da Costa e Silva

Cada um de nós, ainda que não o saiba, é um a antologia am bulante e traz dentro de si um a história do m undo. Um m useu particular. Um álbum de paisagens. A sua estante de livros, com os versos de que se socorre, quando necessita de desabafo, consolo, estím ulo e exem plo, os versos que lhe descem naturalm ente da m em ória, com o se fossem dele, isto é, nossos, e não de seus achadores. Aos poetas pedim os isto, que falem por nós, antes que saibam os o que desej ávam os dizer. Disso não dispensam os os ficcionistas sobretudo aqueles que com eçaram com o poetas e continuam poetas, com o José Saram ago, m as neles querem os tam bém encontrar as nossas outras vidas possíveis ou sonháveis, no tem po e no espaço. Se um teste do grande poeta é ter versos que se incorporam ao falar diário com o “um urubu pousou na m inha sorte” ou “tinha um a pedra no m eio do cam inho”, o do rom ancista e do contista é deixar conosco personagens a quem poderíam os estender ou recusar a m ão, em cenários que incluím os entre aqueles que algum dia frequentam os, e acom panhar em situações que perm anecem em nossa lem brança com o algo vivo, porque im aginado.

Ou im aginado, porque vivido. Com o Baltasar Sete-Sóis a cortar um m olho de vim e no alagadiço, enquanto Blim unda, em vez de olhar para dentro das pessoas, colhe lírios-d’água para enfeitar as orelhas do burrico. A um só tem po reais e im prováveis, os dois estão na antologia de gente que m orrerá com igo. Com o tam bém Ricardo Reis a andar pelo Alto de Santa Catarina, com o tantas vezes eu andei, sem sequer pressentir que lhe pisava os passos.

O m ais difícil, digo a propósito desse Ricardo Reis, é inventar o que j á foi inventado, dar carne, dúvidas e fraquezas a um certo poeta que Fernando Pessoa desentranhou de si m esm o, para escrever dez dúzias de poem as. E trazê-lo do Brasil e do im aginário para a Lisboa de 1935.

Nunca m ais, para m im , pelo m enos, o Ricardo Reis será apenas o da curta biografia deixada por quem prim eiro o criou ou o do retrato que dele fez Alm ada Negreiros. No ano da sua m orte, Reis tom ou, num rom ance, o corpo que um outro lhe deu, e é este Reis quem ficará para sem pre com igo e conosco.

Saram ago possui o dom de vestir a história de ficção e a ficção de história, ao passar pelo urdum e do real a tram a do feérico. Com o neste A viagem do elefante, no qual as escassas notícias de um presente dado, em 1551, por dom João iii e Catarina d’Áustria ao arquiduque Maxim iliano e sua m ulher, tom am vida na cadência de um a longa m archa por terras portuguesas, espanholas, italianas e austríacas, e com tam anha verdade e intensidade que m e senti, em todo o percurso, m ais do que leitor, personagem .

Sei de outros presentes de anim ais exóticos, m as que só eram exóticos para quem os recebia e não, com o no caso do elefante Salom ão, tam bém para quem os dava. Lem bro duas girafas: a que o sultão do Egito enviou a Lorenzo de Médicis e encheu de adm iração as ruas de Florença; e a que o sultão de Melinde fez chegar ao im perador da China, na prim eira ou segunda década do século xv, e foi tida pelos chineses com o em blem a da perfeita virtude e da perfeita harm onia no Im pério e no Universo. Am bos os anim ais fizeram longas travessias, m as destas não nos ficaram

m ais do que rápidos registros. Tam bém são poucos e breves os da viagem do elefante Salom ão de Lisboa a Viena d’Áustria. Mas, neste últim o caso, ganharam , quatro séculos e m eio m ais tarde, a im aginação de um m estre em transform ar o real num sonho com os contornos do real, num a prosa em que nos repete, livro após livro e com o vocabulário e a m úsica de um poeta em quem o hum or e a ironia acom panham a indignação, que a beleza teim a em agasalhar-nos, ainda que a vida, com o a tem os, nos m altrate as esperanças.

Sem pre terei Saram ago com o quem sai de um livro seu, Levantado do chão, que acabara de ler quando o conheci, num j á distante dia de 1983 ou 1984. “Dói-m e o m undo.” Isso m e disse com estas e outras palavras, num a das num erosas conversas que tivem os desde então, sobretudo em Lisboa, onde, por cinco anos, nos encontrávam os com frequência. E acrescentava: “Não m e conform o com o que os hom ens fazem aos hom ens”.

José Saram ago é um grande escritor, destes que se atrevem a tentar recriar a hum anidade e de cuj os livros saím os diferentes. Um grande escritor que não esquece e não quer que esqueçam os que saram ago é um a erva rústica, confundida por alguns com o arm olão, e que era de coisas assim que os pobres, dos quais j am ais se apartou, tiravam os sobrenom es.

Copy right © 2008 by José Saram ago

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou emvigor no Brasil em 2009.

Capa:

Hélio de Almeida

sobre Carnaval ou Cosm ogonie ( 1959), gravura em metal, goiva, de Arthur Luiz Piza, 59,6 × 46,5 cm.

Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo — MAM

Reprodução: Rômulo Fialdini

Revisão:

Carmen S. da Costa

Atualização ortográfica:

Verba Editorial

ISBN 978-85-8086-347-5

Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção;não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião Todos os direitos desta edição reservados à

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