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Aí estão os alpes. Sim , estão, m as m al se veem . A neve desce de m anso, com o leves farrapos de algodão em ram a, m as essa suavidade é enganosa, que o diga o nosso elefante, que leva às costas, cada vez m ais visível, um a m ancha de gelo que j á deveria ter sido obj eto da atenção do cornaca se não fosse a circunstância de ele ser oriundo das terras quentes onde esta espécie de inverno nem sequer por im aginação se concebe. Claro que na velha índia, lá para o norte, não hão-de faltar m ontanhas e neve em cim a delas, m as subhro, agora fritz, nunca gozou de m eios para viaj ar por seu próprio prazer e ver m undo. A sua única experiência de neve teve-a em lisboa poucas sem anas depois de haver chegado de goa, quando, num a noite fria, viu descer do céu um a poalha branca, com o farinha caindo da peneira, que se derretia m al tocava o solo. Nada portanto que se pareça com a vastidão branca que tem diante dos olhos, até onde a vista pode alcançar. Em pouco tem po, os farrapos de algodão tinham -se convertido em grandes e pesados flocos que, em purrados pelo vento, vinham fustigar com o bofetadas a cara do cornaca.

Escarranchado na nuca de solim ão, em brulhado no capote, fritz não sentia dem asiado o frio, m as aqueles golpes contínuos, incessantes, inquietavam -no com o um a am eaça perigosa. Tinham -lhe dito que de trento a bolzano era, por assim dizer, um passeio, aí um as dez léguas, ou um pouco m enos, isto é, o salto de um a pulga, m as não com este tem po, quando a neve parece ter unhas para prender e retardar todo e qualquer m ovim ento e até m esm o a própria respiração, com o se não estivesse disposta a deixar ir-se dali o im prudente. Que o diga solim ão que, apesar da força que a natureza lhe deu, só penosam ente se vai arrastando pelas em pinadas ladeiras do cam inho.

Não sabem os o que pensa, m as, pelo m enos, de um a coisa podem os ter a certeza nestes alpes, não é um elefante feliz. Tirando as ocasiões em que os couraceiros passam cavalgando o m elhor que podem nas suas transidas m ontadas, serra abaixo, serra acim a, para observar a disposição da caravana com vista a evitar dispersões ou desvios que poderiam ser causa de m orte para quem nestas geladas paragens se perdesse, o cam inho parece existir só para o elefante e o seu cornaca.

Habituado desde valladolid à proxim idade da carruagem dos arquiduques, estranha o cornaca não a ver à sua frente, que do elefante não nos atreverem os a falar porque, com o j á dissem os antes, não sabem os o que pensa. O coche arquiducal está por aí algures, m as não se vislum bra nem o rasto dele, e da galera das forragens, que deve vir atrás, tão pouco há notícias. O cornaca olhou nessa direção, a ver se era certo, e foi este olhar providencial que o fez reparar na cam ada de gelo que cobria os quartos traseiros de solim ão. Em bora não conhecesse nada de desportos de inverno, pareceu-lhe que o gelo era bastante delgado e tinha um aspecto quebradiço, o que provavelm ente se deveria ao calor do corpo do anim al, que não o deixaria endurecer por com pleto. Do m al, o m enos, pensou. Em todo o caso, antes que a coisa fosse a m ais, era necessário tirá-lo dali. Com m il cuidados, não fosse resvalar ele próprio, o cornaca gatinhou pelo lom bo do elefante até chegar à intrusa placa de gelo, que afinal não era tão delgada nem tão quebradiça quanto havia parecido antes. Do gelo nunca há que fiar-se, prim eira lição que é indispensável aprender. Pisando um m ar que o frio gelou podem os dar a ideia aos dem ais de que som os pessoas para cam inhar sobre as águas, m as essa ilusão é falsa, tão falsa com o foi falso o

m ilagre de solim ão à porta da basílica de santo antónio, de repente vai-se o gelo abaixo e nunca se sabe o que poderá acontecer. O problem a que fritz tem agora para resolver é a falta de um instrum ento capaz de soltar o m aldito gelo da pele do elefante, um a espátula de lâm ina fina e ponta redonda, por exem plo, seria o ideal, m as espátulas dessas não se encontram por aqui, se é que j á neste tem po há gente para fabricá-las. A única solução, portanto, será trabalhar à unha, e não o dizem os em sentido figurado. O cornaca j á tinha os dedos engadanhados quando percebeu onde estava o nó górdio da questão, nada m ais, nada m enos que terem feito os grossos e duros pelos do elefante causa com um com o gelo, custando portanto cada pequeno avanço um a dura batalha, pois se não havia espátula para aj udar a despegar o gelo da pele, tão pouco havia tesoura para ir cortando o entram ado piloso. Desprender cada pelo desses foi um a tarefa que rapidam ente se revelou estar m uito além das possibilidades físicas e m entais de fritz, obrigado por fim a desistir da operação antes que se tornasse ele próprio num a lam entável estátua de neve a que só faltariam um cachim bo na boca e um a cenoura no lugar do nariz. Os m esm os pelos que haviam sido fonte de um prom etedor negócio, logo frustrado pelos escrúpulos m orais do arquiduque, eram agora causa de um fiasco cuj as consequências para a saúde do elefante ainda estavam por ver-se. Com o se isto fosse pouco, um a outra questão, ao parecer com caráter de urgência, se havia apresentado nos últim os m inutos. Desconcertado pela deslocação do peso fam iliar do cornaca da nuca para os quartos traseiros, o elefante dava claros sinais de desorientação, com o se tivesse perdido a noção do cam inho e não soubesse por onde ir. Fritz não teve outro rem édio que gatinhar rapidam ente até ao seu costum ado assento e retom ar as alavancas da condução. Quanto à placa de gelo que ficou lá atrás, roguem os ao deus dos elefantes que evite m ales m aiores. Se houvesse por aqui um a árvore com um ram o assaz forte a três m etros de altura e razoavelm ente paralelo ao solo, o próprio solim ão se encarregaria de libertar-se da incóm oda e acaso perigosa m anta de gelo, bastaria que pudesse esfregar-se com o é im em orial tradição esfregarem -se os elefantes nos troncos das árvores quando um a com ichão aperta m ais que o suportável. Agora que a neve havia redobrado de intensidade, e isto não quer dizer que um a coisa fosse a consequência da outra, o cam inho tornara-se m ais íngrem e, com o se estivesse cansado de arrastar-se ao rés da terra e quisesse ascender aos céus, ainda que fosse a um dos seus níveis inferiores. Tam bém as asas do beij a-flor não podem sonhar com o potente bater de asas da procelária contra a violência do vento nem com o m aj estoso adej ar da águia-dourada sobre os vales. Cada um é para o que nasceu, m as há que contar sem pre com a possibilidade de que nos apareçam pela frente exceções im portantes, com o é o caso de solim ão, que não nasceu para isto, m as a quem não restou outro rem édio que inventar por sua própria conta algum a m aneira de com pensar a inclinação do terreno, com o foi esta de alongar a trom ba para a frente, o que lhe dá o ar inconfundível de um guerreiro lançado à carga e a quem esperam m orte ou glória. E tudo, ao redor, é neve e solidão. Esta brancura, di-lo quem conhece a região, oculta um a paisagem de extraordinária beleza. Pois ninguém o diria, e nós, que aqui estam os, m enos que ninguém . A neve devorou os vales, fez desaparecer a vegetação, se há por aqui casas habitadas m al se veem , um pouco de fum o saindo pela cham iné é o único sinal de vida, alguém lá dentro chegou lum e às achas de lenha úm ida e espera, com a porta praticam ente bloqueada pelo nevão, o socorro de um são-bernardo com a botij a de brande ao pescoço. Quase sem se dar por isso, a ladeira tinha acabado, solim ão j á poderá norm alizar a respiração, reduzir a um tranquilo passo de passeio o trem endo esforço que viera fazendo, de m ais a m ais com um

cornaca às escarranchas sobre a nuca e um a placa de gelo a oprim ir-lhe os quartos traseiros. A cortina de neve tinha-se aclarado um pouco, perm itindo, m ais ou m enos, distinguir um as três ou quatro centenas de m etros de cam inho, com o se o m undo tivesse decidido, enfim , recuperar a perdida norm alidade m eteorológica. Talvez fosse essa, realm ente, a intenção do m undo, m as algo de anorm al deveria haver sucedido ali para se ter form ado um aj untam ento de pessoas, cavalos e carros, com o se tivessem encontrado um bom sítio para o piquenique. Fritz fez alargar o passo de solim ão e depressa viu que estava com a sua gente, com a caravana, o que, aliás, não exigia grande perspicácia, pois, com o sabem os, arquiduque de áustria há só este e nenhum m ais.

Desceu do elefante e a pergunta que fez à prim eira pessoa que encontrou, Que foi que aconteceu, teve resposta pronta, Partiu-se o eixo dianteiro do coche de sua alteza, Que desgraça, exclam ou o cornaca, O carpinteiro de carros e os aj udantes j á estão a colocar outro eixo, dentro de um a hora estarem os prontos para continuar a m archa, E onde o tinham , Onde tinham , quê, Outro eixo, Saberás m uito de elefantes, m as não te passa pela cabeça que ninguém se arrisca a um a viagem destas sem levar consigo peças sobressalentes, E suas altezas, sofreram algum a m oléstia com o sucedido, Nenhum a, só um grande susto porque o coche bam beou a um lado, Onde estão agora, Abrigados num a outra carruagem , aí adiante, Não tarda que anoiteça, Com um nevão destes, há sem pre luz no cam inho, ninguém se perde, disse o sargento dos couraceiros, que era o interlocutor. E era certo porque agora m esm o estava chegando o carro que transportava os fardos de forragem , e em boa hora vinha ele porque solim ão, depois de ter arrastado pela serra acim a as suas quatro toneladas, estava m ais do que necessitado de refazer as forças. Em m enos que um am ém , desatou fritz dois fardos ali m esm o, e o segundo am ém , se o houve, j á encontrou o elefante a engolir sofregam ente a pitança. Logo atrás apareceram os couraceiros do couce da caravana e com eles a restante equipagem , transida de frio, com balida pelo trem endo esforço feito durante léguas e léguas, m as feliz por se ver reintegrada no coletivo viaj ante. Pensando bem , o acidente sofrido pelo coche arquiducal só pôde ter sido obra da divina providência. Com o ensina a nunca assaz louvada sabedoria popular, e com o um a vez m ais ficou dem onstrado, deus escreve direito por linhas tortas, e essas são m esm o as que prefere. Quando a substituição do eixo foi term inada e com provada a solidez da reparação, os arquiduques regressaram ao conforto do coche e a caravana, reagrupada, pôs-se em m archa, após terem recebido os seus com ponentes, tanto m ilitares com o futricas, ordens absolutam ente term inantes para que a coesão física fosse defendida a todo o custo, de m aneira a não voltar a cair-se na lam entável dispersão anterior, que só por grande sorte não havia tido as m ais funestas consequências. Era noite fechada quando a caravana entrou em bolzano.

No dia seguinte a caravana dorm iu até tarde, os arquiduques em casa de um a fam ília nobre do burgo, o resto espalhado pela pequena cidade de bolzano, uns aqui, outros por aí, os cavalos dos couraceiros distribuídos pelas estrebarias ainda com lugares disponíveis, e os hum anos aboletados em casas de particulares, que isso de acam par ao ar livre nada teria de apetitoso, nem sequer possível, salvo se ainda restassem forças à com panhia para levar o resto da noite a varrer a neve.

O que m ais trabalho deu foi encontrar abrigo para solim ão. Depois de m uito procurar, acabou por se descobrir um telheiro que não era m ais do que isso, um alpendre sem resguardos laterais que pouca m ais proteção poderia proporcionar-lhe que se ele tivesse de dorm ir à la belle étoile, m aneira lírica que têm os franceses de dizer relento, palavra, esta portuguesa, tam bém im própria, pois relento não é senão um a um idade noturna, um orvalho, um a cacim ba, ninharias m eteorológicas se as com pararm os com este nevão dos alpes que bem terá j ustificado a designação de m anto alvinitente, leito acaso m ortal. Ali foram deixados nada m enos que três fardos de forragens para satisfação dos apetites, quer im ediatos quer noturnos, de solim ão, tão atreito a eles com o qualquer ser hum ano. Quanto ao cornaca, teve a sorte de beneficiar, na distribuição dos aloj am entos, de um a m isericordiosa enxerga no chão e de um não m enos m isericordioso cobertor, cuj o poder calorífero am pliou estendendo-lhe por cim a o capote, apesar de algo úm ido ainda. No quarto da acolhedora fam ília havia três cam as, um a para o pai e a m ãe, outra para os três filhos varões, de idades entre os nove e os catorze anos, e a terceira para a avó septuagenária e duas servas. O único pago que a fritz se lhe reclam ou foi que contasse algum as histórias de elefantes, ao que o cornaca acedeu de boa m ente, com eçando pela sua pièce de résistance, isto é, o nascim ento de ganeixa, e term inando na recente e, em sua opinião, heroica ascensão dos alpes de que crem os ter feito suficiente relato. Foi então que o pai disse, lá da cam a, enquanto se ouvia o ressonar da m ulher, que m ais ou m enos por estas m esm as paragens dos alpes, segundo antiquíssim as histórias e as subsequentes lendas, tinham tam bém andado, depois de haverem atravessado os pireneus, o fam oso general cartaginês aníbal e o seu exército de hom ens e elefantes africanos que tantos desgostos viriam a dar aos soldados de rom a, em bora, segundo m odernas versões, não se tratasse dos elefantes africanos propriam ente ditos, de grandes orelhas e assustadora corpulência, m as sim dos cham ados elefantes das florestas, não m uito m aiores que cavalos. Nevões, sim , eram os desses tem pos, acrescentou, e nessa altura nem cam inhos havia, Parece que não gosta m uito dos rom anos, insinuou fritz, A verdade é que nós aqui som os m ais austríacos que italianos, em alem ão a nossa cidade cham a-se bozen, A m im agrada-m e bolzano, disse o cornaca, cai-m e m elhor no ouvido, Será de ser português, Ter vindo de portugal não faz de m im português, Então donde é vossa senhoria, se não sou confiado em perguntar, Nasci na índia e sou cornaca, Cornaca, Sim senhor, cornaca é o nom e que se dá àqueles que conduzem os elefantes, Nesse caso, o general cartaginês tam bém deve ter trazido cornacas no seu exército, Não levaria os elefantes a lado nenhum se não houvesse quem os guiasse, Levou-os à guerra, À guerra dos hom ens, A bem dizer, não há outras. O hom em era filósofo.

Manhã alta, refeito de forças e com o estôm ago m ais ou m enos confortado, fritz agradeceu a hospitalidade e foi ver se ainda havia elefante para cuidar. Tinha sonhado que solim ão saíra de bolzano pela calada da noite e andara a correr os m ontes e vales ao redor, tom ado de um a espécie de em briaguez que só podia ter sido efeito da neve, em bora a bibliografia conhecida sobre a m atéria, se excetuarm os a dos desastres da guerra de aníbal nos alpes, se haj a lim itado, nos últim os tem pos, a registar, com aborrecida m onotonia, as pernas e os braços partidos dos am antes do esqui. Bons tem pos foram aqueles em que um a pessoa caía do alto de um a m ontanha para ir esborrachar-se, m il m etros abaixo, no fundo de um vale j á coalhado de costelas, tíbias e crânios de outros aventureiros igualm ente desafortunados. Aquilo, sim , era vida. Na praça j á havia uns quantos couraceiros reunidos, alguns m ontados, outros não, e os que ainda faltavam vinham chegando. Nevava, m as pouco. Fiel aos seus hábitos de curioso por necessidade, um a vez que ninguém o inform ava em prim eira m ão, foi perguntar ao sargento que notícias havia. Não precisou de dizer m ais que um educado bons-dias porque o m ilitar, sabendo de antem ão o que ele queria, lhe transm itiu as novidades, Vam os para bressanone, ou brixen, com o dizem os em alem ão, hoj e a viagem será curta, não chegará a dez léguas. Depois de um a pausa destinada a criar expectativa, o sargento acrescentou, Parece que em brixen vam os ter uns dias de descanso, que bem necessitados estam os, Por m im falo, solim ão m al pode pôr um a pata adiante da outra, isto não é clim a para ele, ainda m e apanha por aí um a pneum onia, e depois quero ver o que sua alteza vai fazer com os ossos do pobre, Tudo se há-de arranj ar, disse o sargento, até agora as coisas não têm corrido m al. Fritz não teve outro rem édio senão concordar e foi pelo elefante.

Encontrou-o no alpendre, aparentem ente tranquilo, m as ao cornaca, ainda sob a im pressão do incóm odo sonho, pareceu-lhe que ele estava disfarçando, com o se na verdade tivesse abandonado bolzano a m eio da noite para ir folgar entre as neves, talvez até aos cum es m ais altos, onde se diz que elas são eternas. No chão não havia o m enor vestígio da forragem que lhe haviam deixado, nem sequer um a palha para am ostra, o que, pelo m enos, perm itia esperar que o anim al não iria pôr-se a rabuj ar com fom e com o fazem as crianças pequenas, ainda que, coisa esta geralm ente pouco sabida, sej a ele, o elefante, um a outra espécie de criança, se não no físico, ao m enos no im perfeito intelecto. Em verdade, não sabem os o que um elefante pensa, m as tão pouco sabem os o que pensa um a criança, salvo o que ela entenda fazer-nos parte, portanto, em princípio, nada em que se deva depositar dem asiada confiança. Fritz fez sinal de que queria subir e o elefante, pressuroso, com todo o ar de desej ar que o desculpassem de algum a traquinice, ofereceu-lhe o dente para apoio do pé, tal com o se de um estribo se tratasse, e enlaçou-o pela cintura com a trom ba, com o um abraço. Com um único im pulso içou-o para o cachaço, onde o deixou confortavelm ente instalado. Fritz olhou para trás e, ao contrário do que esperava, não viu o m ais leve sinal de gelo nos quartos traseiros. Havia ali um m istério que provavelm ente não lhe seria dado decifrar. Ou bem o elefante, qualquer um , e este em particular, dispõe de um sistem a de autorregulação térm ica acidentalm ente capaz, após um a necessária concentração m ental, de derreter um a cam ada de gelo de espessura razoável, ou então o exercício de subir e descer m ontanhas em m archa acelerada fizera que o dito gelo se desprendesse da pele apesar do labiríntico entram ado de pelos que tanto trabalho havia dado ao cornaca fritz. Certos m istérios da natureza parecem à prim eira vista im penetráveis e a prudência talvez aconselhe a deixá-los assim , não sej a que de um conhecim ento adquirido em bruto acabe por nos vir m ais m al que bem . Vej a-se, por exem plo, o resultado de ter com ido adão no paraíso

o que parecia um a vulgar m açã. Pode ser que o fruto propriam ente dito tenha sido obra deliciosa de deus, em bora haj a quem afirm e que não foi um a m açã, que foi, sim , um a talhada de m elancia, porém , as sem entes, em qualquer caso, essas, foram lá postas pelo diabo. Ainda por cim a, negras.

O coche dos arquiduques j á está à espera dos seus nobres, ilustres, egrégios passageiros. Fritz encam inha o elefante para o lugar que lhe está reservado no séquito, isto é, atrás do coche, m as a um a distância prudente, não vá enfadar-se o arquiduque com a vizinhança de um burlão que, não chegando ao extrem o clássico de vender gato por lebre, ainda assim ludibriava os infelizes calvos, incluindo m esm o os m ais coraj osos couraceiros, com a prom essa de um a cabeleira tão farta com o a daquele m ítico e infeliz sansão. Inútil preocupação foi esta, porque o arquiduque sim plesm ente não olhou nesta direção, pelos vistos teria m ais em que pensar, queria chegar a bressanone com luz de dia e j á iam atrasados. Despachou o aj udante de cam po para que levasse as suas ordens à cabeça da caravana, resum íveis em três palavras praticam ente sinónim as, rapidez, velocidade, presteza, ressalvando sem pre, claro está, os efeitos retardadores da neve que com eçara a cair com m ais força, e tam bém o estado dos cam inhos, em geral m aus e agora piores. Serão só dez léguas, tinha inform ado o prestável sargento, m as se, pelas contas atuais, dez léguas são cinquenta m il m etros, ou um as quantas dezenas de m ilhares de passos dos antigos, e a isso, contas são contas, não há que fugir, esta gente e estes anim ais que acabam de arrancar para m ais um a penosa j ornada vão ter m uito que sofrer, principalm ente aqueles a quem faltou o favor de um teto, que são quase todos. Que bonita é a neve vista por trás da vidraça, disse ingenuam ente a arquiduquesa m aria ao arquiduque m axim iliano, seu m arido, m as lá fora, com os olhos cegados pela ventania e as botas feitas num a sopa, com as frieiras dos pés e das m ãos a arderem com o um fogo do inferno, é caso para perguntar aos céus que foi que fizem os nós para m erecerm os tal castigo. Com o escreveu o poeta, os pinheiros bem acenam , m as o céu não lhes responde. Tam bém não responde aos hom ens, apesar de estes, em sua m aioria, saberem desde pequenos as orações precisas, o problem a está em acertar com um a língua que deus sej a capaz de entender. Tam bém o frio, quando nasce, é para todos, diz-se, m as nem todos apanham nos lom bos com a m esm a porção dele. A diferença está entre viaj ar num coche forrado de peliças e m antas com term ostato e ter de cam inhar sob o açoite da neve por seu pé ou com ele enfiado num estribo gelado que oprim e com o um torniquete. O que ainda assim valeu foi que a inform ação que o sargento passou a fritz sobre a possibilidade de um bom descanso em bressanone se havia espalhado com o um a brisa de prim avera por toda a caravana, m as logo os pessim istas, um por um e todos j untos, recordaram aos olvidadiços os perigos do passo de isarco, para não falar por enquanto de algo bem pior que será o outro m ais adiante, o de brenner, j á em território austríaco. Tivesse aníbal ousado avançar por eles e provavelm ente não teríam os tido que esperar pela batalha de zam a para assistir, no cinem a do bairro, à últim a e definitiva derrota do exército cartaginês por cipião, o africano, longa m etragem de rom anos produzida pelo filho m ais velho de benito, vittorio m ussolini. Desta vez, ao grande aníbal, não lhe valeram os elefantes.

Montado na nuca de solim ão, apanhando em cheio na cara a fustigação da neve que vinha arroj ada pela incessante ventania, fritz não está na m elhor das situações para elaborar e desenvolver pensam entos elevados. Ainda assim , vem dando voltas à cabeça para descobrir a

m aneira de m elhorar as suas relações com o arquiduque, que não só lhe retirou a palavra com o o próprio olhar. Em valladolid a coisa até tinha com eçado bem , m as solim ão, com as suas descom posições de ventre no cam inho para rosas, causou sério dano à nobre causa da harm onização de classes sociais tão afastadas um a da outra com o a dos cornacas e a dos arquiduques. Com boa vontade, poderia esquecer-se tudo isto, m as o seu delito, seu de subhro ou de fritz, ou quem diabo ele sej a, esse delírio que o levou a querer enriquecer-se por m eios ilícitos e m oralm ente reprováveis, deu cabo de qualquer esperança de recom posição da quase fraternal estim a que, por um m ágico instante, tinha aproxim ado o futuro im perador da áustria do hum ilde condutor de elefantes. Têm razão os céticos quando afirm am que a história da hum anidade é um a interm inável sucessão de ocasiões perdidas. Felizm ente, graças à inesgotável generosidade da im aginação, cá vam os suprindo as faltas, preenchendo as lacunas o m elhor que se pode, rom pendo passagens em becos sem saída e que sem saída irão continuar, inventando chaves para abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram . É o que está fazendo fritz neste m om ento enquanto solim ão, levantando as pesadas patas com dificuldade, um , dois, um , dois, pisa a neve que continua a acum ular-se no cam inho, enquanto a pura água de que ela é feita insidiosam ente se vai convertendo no m ais resvaladiço dos gelos. Am argurado, fritz pensa que só um ato de heroicidade da sua parte poderá restituir-lhe a benevolência do arquiduque, m as, por m ais voltas que dê à cabeça, não encontra nada suficientem ente grandioso para atrair, ao m enos por um segundo, um olhar com placente de sua alteza. É então que im agina que o eixo da carruagem de aparato, tendo-se partido um a vez, outra vez se partiu, e que, escancarada a porta do coche pelo súbito desequilíbrio, por ela se precipitou desam parada a arquiduquesa que, deslizando sobre as suas m últiplas saias por um a pendente não dem asiado íngrem e, só conseguiu parar no fundo do barranco, felizm ente ilesa. Tinha chegado a hora do cornaca fritz. Com um toque enérgico do bastão que lhe faz as vezes de volante, encam inhou solim ão para a borda do barranco e fê-lo descer com firm eza e segurança até onde estava, ainda m eio aturdida, a filha de carlos quinto.

Alguns couraceiros dispuseram -se a descer tam bém , m as o arquiduque deteve-os, Deixem -no, vam os ver com o descalça ele a bota. Ainda m al tinha term inado a frase e j á a arquiduquesa, içada pela trom ba do elefante, se encontrava sentada entre as pernas escarranchadas de fritz, num a proxim idade corporal que, noutras circunstâncias, seria m otivo de gravíssim o escândalo.

Fosse ela rainha de portugal e teríam os confissão pela certa. Lá em cim a, os couraceiros e a m ais gente do séquito aplaudiam com entusiasm o o heroico salvam ento, enquanto o elefante, que parecia consciente do seu feito, subia a passo, com renovada firm eza, a encosta. Chegados ao cam inho, o arquiduque recebeu nos braços a m ulher e, levantando a cabeça para olhar o cornaca de frente, disse em castelhano, Muy bien, fritz, gracias. A alm a de fritz teria rebentado ali m esm o de felicidade, supondo que tal fenóm eno poderia acontecer em algo que é m enos ainda que um puro espírito, se tudo o que aí ficou descrito não tivesse sido outra coisa que o fruto doentio de um a im aginação culpada. A realidade m ostrava-o tal qual era, curvado sobre o elefante, quase invisível sob a neve, a desolada im agem de um triunfador derrotado, um a vez m ais se dem onstrando que o capitólio está ao lado da rocha tarpeia, que ali te coroam de louros e aqui te em purram para onde, esfum ada a glória, perdida a honra, deixarás os m íseros ossos. O

eixo do coche não se partiu, a arquiduquesa dorm ita em paz sobre o om bro do m arido, sem suspeitar que a salvou um elefante e que um cornaca vindo de portugal serviu de instrum ento à providência divina. Apesar de toda a crítica que sobre ele se vem fazendo, o m undo vai

descobrindo em cada dia m aneiras de ir funcionando tant bien que m al, perm ita-se-nos esta pequena hom enagem à cultura francesa, a prova é que quando as coisas boas não sucedem por si m esm as na realidade, a livre im aginação dá um a aj uda à com posição equilibrada do quadro. É

certo que o cornaca não salvou a arquiduquesa, m as poderia tê-lo feito, um a vez que o im aginou, e isso é o que conta. Apesar de se ver devolvido sem piedade à solidão e às dentadas do frio e da neve, fritz, graças a certas crenças fatalistas que havia tido tem po de interiorizar, isto é, de m eter na cabeça, em lisboa, pensa que se nas tábuas do destino estiver previsto que o arquiduque fará as pazes com ele, esse m om ento por força chegará. Com esta confortável certeza, abandonou-se ao balancear dos passos de solim ão, sozinho na paisagem porque, um a vez m ais, por causa da neve que continuava a cair, a traseira do coche deixara de poder ser vista. A escassa visibilidade ainda perm itia distinguir onde se punham os pés, m as não aonde eles levariam . No entanto, a orografia viera a m odificar-se, prim eiro de um a m aneira a que se poderia cham ar discreta, m ansa, quase pura ondulação, agora com um a violência que dava que pensar, com o se as m ontanhas tivessem iniciado um processo apocalíptico de fraturas em progressão geom étrica. Vinte léguas tinham sido suficientes para passar dos contrafortes arredondados, que eram com o falsas colinas, à agitação tum ultuosa das m assas rochosas, rasgadas em desfiladeiros, erguidas em píncaros que escalavam o céu e donde, de vez em quando, se precipitavam , vertente abaixo, velozes aludes que iam configurar novas paisagens e novas pistas para futuro deleite dos am antes do esqui. Pelos vistos vam o-nos aproxim ando do passo de isarco, a que os austríacos insistem em cham ar eisack.

Ainda vai ser preciso cam inhar pelo m enos um a hora m ais para lá chegar, m as um a providencial dim inuição na espessa cortina de neve perm itiu que se avistasse ao longe, por um breve instante, um rasgão vertical na m ontanha, O isarco, disse o cornaca. Assim era. Um a coisa que custa trabalho a entender é que o arquiduque m axim iliano tenha decidido fazer a viagem de regresso nesta época do ano, m as a história assim o deixou registado com o fato incontroverso e docum entado, avalizado pelos historiadores e confirm ado pelo rom ancista, a quem haverá que perdoar certas liberdades em nom e, não só do seu direito a inventar, m as tam bém da necessidade de preencher os vazios para que não viesse a perder-se de todo a sagrada coerência do relato. No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas seletiva, é tam bém discrim inatória, só colhe da vida o que lhe interessa com o m aterial socialm ente tido por histórico e despreza todo o resto, precisam ente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos fatos, das coisas, da puta realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale m ais ser rom ancista, ficcionista, m entiroso. Ou cornaca, apesar das descabeladas fantasias a que, por origem ou profissão, parecem ser atreitos. Em bora a fritz não lhe reste outro rem édio que deixar-se levar por solim ão, tem os de reconhecer que esta lecionadora história que vim os contando não seria a m esm a se outro fosse o guia do elefante. Até agora, fritz tem sido personagem decisiva em todos os m om entos do relato, dos dram áticos e dos cóm icos, arriscando o próprio ridículo sem pre que foi achado conveniente para o bom tem pero da narrativa, ou apenas taticam ente aconselhável, disfarçando as hum ilhações sem levantar a voz, sem alterar a expressão da cara, cuidadoso em não deixar transparecer que, se não fosse por ele, não haveria ali ninguém para levar a carta a garcia, o elefante a viena. Estas observações talvez venham a ser consideradas desnecessárias pelos leitores m ais interessados na dinâm ica do texto que em m anifestações pretensam ente solidárias, e de certa m aneira ecum énicas, m as fritz, com o se viu, bastante desanim ado em consequência dos últim os desastrosos sucessos, estava a precisar de que alguém

lhe pusesse um a m ão am iga no om bro, e isso foi só o que fizem os, pôr-lhe a m ão no om bro.

Quando o cérebro divaga, quando nos arrebata nas asas do devaneio, nem dam os pelas distâncias percorridas, sobretudo quando os pés que nos levam não são os nossos. Tirando um ou outro floco vagabundo que se havia perdido no traj eto, pode-se dizer que deixou de nevar. A vereda estreita que tem os na nossa frente é o fam oso passo de isarco. De um lado e do outro, praticam ente a pino, as paredes do desfiladeiro parecem a ponto de desabar sobre o cam inho. O coração de fritz encolheu-se de m edo, um frio diferente de tudo o que tinha conhecido até aqui traspassou-lhe os ossos. Estava sozinho no m eio da terrível am eaça que o rodeava, as ordens do arquiduque, aquelas im perativas ordens que determ inavam que a caravana deveria m anter-se unida e coesa com o única garantia da sua segurança, com o fazem os alpinistas que se atam por cordas uns aos outros, haviam sido sim plesm ente ignoradas. Um provérbio, se por tal nom e o dito pode ser designado, e que tanto terá de português com o de indiano e universal, resum e de m aneira elegante e eloquente situações com o esta, quando te recom enda que deverás fazer o que eu te diga, m as não fazer o que eu faça. Assim procedeu o arquiduque, havia ordenado, Mantenham onos j untos, m as, chegada a ocasião, em lugar de ali perm anecer, com o lhe com petia, à espera do elefante e do seu cornaca que vinham atrás, dem ais sendo proprietário de um e am o do outro, dera, em sentido figurado, de esporas ao cavalo, e pernas para que vos quero, direito à desem bocadura do perigoso passo antes que se fizesse dem asiado tarde e o céu lhe caísse em cim a. Im agine-se agora que a avançada dos couraceiros havia penetrado no desfiladeiro e aí tinha ficado à espera, im agine-se que igualm ente ficavam esperando os que fossem chegando, o arquiduque e a sua arquiduquesa, o elefante solim ão e o cornaca fritz, o carro das forragens, finalm ente o resto dos couraceiros que rem atavam a m archa, e tam bém as galeras interm édias, carregadas de cofres, arcas e baús, e a m ultidão da criadagem , todos fraternalm ente reunidos, à espera de que a m ontanha se viesse abaixo ou que um alude com o nunca se havia visto outro os am ortalhasse a todos, entupindo o desfiladeiro até à prim avera. O egoísm o, geralm ente tido por um a das atitudes m ais negativas e reprováveis da espécie hum ana, pode ter, em certas circunstâncias, as suas boas razões. Ao term os salvo a nossa rica pele, escapando-nos rapidam ente da ratoeira m ortal em que o passo de isarco poderia tornar-se, salvám os tam bém a pele dos com panheiros de viagem , que, chegada a sua vez de avançar, puderam continuar a viagem sem ser travados por engarrafam entos de trânsito inoportunos, logo, a conclusão é facílim a de tirar, cada um por si para que nos possam os salvar todos. Quem diria que a m oral nem sem pre é o que parece e que pode ser m oral tanto m ais efetiva quanto m ais contrária a si m esm a se m anifeste. Perante estas cristalinas evidências e estim ulado pelo im pacte súbito, uns cem m etros atrás, de um a m assa de neve que, sem aspirar ao nom e de alude, foi m ais que suficiente para que o susto fosse de tom o, fritz fez a solim ão o sinal de andar, j á, j á. Ao elefante pareceu-lhe pouco. Melhor que o sim ples passo, a situação, por tão perigosa ser, pedia um trote, ou, m elhor ainda, um galope que rapidam ente o pusesse a salvo das am eaças do isarco. Rápido foi, portanto, tão rápido com o santo antónio quando usou a quarta dim ensão para ir a lisboa salvar o pai da forca. O m al é que solim ão havia presum ido dem asiado das suas forças. Arquej ando, poucos m etros depois de ter deixado para trás a boca do desfiladeiro, foram -se-lhe abaixo as pernas dianteiras e os j oelhos ao chão. O cornaca, porém , teve sorte. O norm al seria que o choque o tivesse proj etado violentam ente para a frente da cabeça da infeliz m ontada, só deus sabe com que nefastas consequências, m as a tão celebrada m em ória de elefante fez recordar a

solim ão o que se tinha passado com o padre da aldeia que pretendia exorcizá-lo, quando, no últim o segundo, no derradeiro instante, logrou am ortecer a patada, porventura m ortal, que lhe havia desferido. A diferença em relação ao caso de agora foi que solim ão ainda logrou recorrer ao pouquíssim o que lhe restava de energia para reduzir a velocidade da sua própria queda, fazendo com que os grossos j oelhos tocassem o chão com a leveza de um floco de neve. Com o o terá conseguido, não se sabe, nem é coisa que se lhe vá perguntar. Tal com o os prestidigitadores, tam bém os elefantes têm os seus segredos. Entre falar e calar, um elefante sem pre preferirá o silêncio, por isso é que lhe cresceu tanto a trom ba que, além de transportar troncos de árvores e trabalhar de ascensor para o cornaca, tem a vantagem de representar um obstáculo sério para qualquer descontrolada loquacidade. Cautelosam ente, fritz deu a entender a solim ão que j á era hora de fazer um pequeno esforço para se levantar. Não ordenou, não recorreu ao seu variado repertório de toques de bastão, uns m ais agressivos que outros, apenas deu a entender, o que dem onstra um a vez m ais que o respeito pelos sentim entos alheios é a m elhor condição para um a próspera e feliz vida de relações e afetos. É a diferença entre um categórico Levanta-te e um dubitativo E se tu te levantasses. Há m esm o quem sustente que esta segunda frase, e não a prim eira, foi a que j esus realm ente proferiu, prova provada de que a ressurreição, afinal, estava, sobretudo, dependente da livre vontade de lázaro e não dos poderes m ilagrosos, por m uito sublim es que fossem , do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons m odos, tão sim ples com o isto. E que o m étodo continua a dar bons resultados, viu-se quando solim ão, aprum ando prim eiro a perna direita, depois a esquerda, restituiu fritz à segurança relativa de um a oscilante verticalidade, ele que até esse m om ento só se tinha podido valer da rij eza de uns quantos pelos da nuca do elefante para não se ver precipitado pela trom ba abaixo. Eis pois solim ão j á firm e nas suas quatro patas, ei-lo subitam ente anim ado pela chegada da galera da forragem que, ultrapassado, após trabalhosa luta das duas j untas de bois, o m ontão de neve a que antes nos referim os, avançava briosam ente em direção à saída do desfiladeiro e ao voraz apetite do elefante. A sua quase desfalecida alm a recebia agora o prém io pela proeza de haver feito regressar à vida o seu próprio corpo prostrado, com o para não levantar-se m ais, no m eio da branca e cruel paisagem . Ali m esm o foi posta a m esa e, enquanto fritz e o boieiro celebravam a salvação com uns quantos tragos de aguardente propriedade do hom em dos bois, solim ão devorava fardo após fardo com enternecedor entusiasm o. Só faltava que brotassem flores da neve e que as avezinhas da prim avera viessem entoar ao tirol as suas doces canções. Não se pode ter tudo. Já é m uito que fritz e o boieiro, m ultiplicando um a pela outra as suas respectivas inteligências, tivessem encontrado o rem édio para a preocupante tendência a separarem -se os diversos com ponentes da caravana com o se não tivessem nada que ver uns com os outros. Era um a solução, digam os, parcelar, m as sem dúvida precursora de um a m aneira diferente de abordar os problem as, isto é, m esm o que o obj etivo sej a servir os m eus interesses pessoais, é sem pre conveniente contar com a outra parte. Num a palavra, soluções integradas. A partir de agora os bois e o elefante viaj arão inapelavelm ente j untos, a galera dos fardos de forragem à frente, o elefante, por assim dizer ao cheiro da palha, atrás. Por m ais lógica e racional que se apresente a distribuição topográfica deste reduzido grupo, facto que ninguém ousará negar, nada do que aqui se logrou, graças à deliberada vontade de chegar a acordo, será aplicável, não faltaria m ais, aos arquiduques cuj o coche j á lá vai adiante, inclusive pode até ter j á chegado a bressanone. Se tal caso se der, estam os autorizados a revelar que solim ão gozará de um m erecido

descanso de duas sem anas nesta conhecida estância turística, concretam ente num a estalagem que tem o nom e de am hohen feld, que significa, nunca m elhor dito, terra íngrem e. É natural que a alguém lhe pareça estranho que um a estalagem que ainda se encontra em território italiano tenha um nom e alem ão, m as a coisa explica-se se nos lem brarm os de que a m aior parte dos hóspedes que aqui vêm são precisam ente austríacos e alem ães que gostam de sentir-se com o em sua casa. Razões afins levarão um dia a que, no algarve, com o alguém terá o cuidado de escrever, toda a praia que se preze, não é praia m as é beach, qualquer pescador fisherm an, tanto faz prezar-se com o não, e se de aldeam entos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquem os sabendo que é m ais aceite dizer-se holiday ’s village, ou village de vacances, ou ferienorte.

Chega-se ao cúm ulo de não haver nom e para loj a de m odas, porque ela é, num a espécie de português por adoção, boutique, e, necessariam ente, fashion shop em inglês, m enos necessariam ente m odes em francês, e francam ente m odegeschäft em alem ão. Um a sapataria apresenta-se com o shoes, e não se fala m ais nisso. E se o viaj ante pudesse catar, com o quem cata piolhos, nom es de bares e buates, quando chegasse a sines ainda iria nas prim eiras letras do alfabeto. Tão desprezado este na lusitana arrum ação que do algarve se pode dizer, nestas épocas em que descem os civilizados à barbárie, ser ele a terra do português tal qual se cala. Assim está bressanone.

Diz-se, depois de que prim eiro o tivesse dito tolstoi, que as fam ílias felizes não têm história.

Tam bém os elefantes felizes não parece que a tenham . Vej a-se o caso de solim ão. Durante as duas sem anas que esteve em bressanone descansou, dorm iu, com eu e bebeu à tripa-forra, até lhe chegar com o dedo, algo assim com o um as quatro toneladas de forragem e uns três m il litros de água, com o que pôde com pensar as num erosas dietas forçadas a que havia sido obrigado a subm eter-se durante a longa viagem por terras de portugal, espanha e itália, quando nem sem pre foi possível reabastecer-lhe com regularidade a despensa. Agora, solim ão recuperou as forças, está gordo, form oso, logo ao cabo de um a sem ana a pele flácida e enrugada j á tinha deixado de lhe fazer pregas com o um capote m al pendurado num a escápula. As boas notícias chegaram ao arquiduque que não dem orou a fazer um a visita a casa do elefante, isto é, ao seu próprio estábulo, em vez de o m andar sair à praça, para que exibisse perante a arquiducal autoridade e a população reunida, a excelente figura, o look m agnífico, que agora tem . Com o é natural, fritz esteve presente no ato, m as, consciente de que a paz com o arquiduque ainda não havia sido form alizada, se algum a vez o virá a ser, m ostrou-se discreto e atento, sem cham ar dem asiado as atenções, m as esperando que o arquiduque deixasse cair, pelo m enos, um a palavra de congratulação, um breve elogio. Assim aconteceu. No fim da visita, o arquiduque dirigiu-lhe de passagem um rápido relance de olhos e disse, Fizeste um bom trabalho, fritz, solim ão deve estar satisfeito, ao que ele respondeu, Não desej o outra coisa, m eu senhor, a m inha vida está posta ao serviço de vossa alteza. O arquiduque não respondeu, lim itou-se a resm ungar, lacónico, Uhm , uhm , som prim itivo, se não inicial, que cada um tratará de interpretar com o m elhor lhe convenha. Para fritz, sem pre disposto, por tem peram ento e filosofia de vida, a um a visão otim ista dos acontecim entos, aquele resm ungo, apesar da aparente secura e do im próprio de tal linguagem na boca de um a arquiducal e am anhã im perial pessoa, foi com o um passo, um pequeno m as seguro passo, em direção à tão ansiada concórdia. Esperem os até viena para ver o que sucede.

De bressanone ao desfiladeiro de brenner a distância é tão curta que de certeza não haverá tem po para que a caravana se disperse. Nem tem po nem distância. O que significará que irem os topar outra vez com o m esm o dilem a m oral de antes, o do passo de isarco, isto é, se vam os de com panhia ou separados. Assusta só de pensar que a extensa caravana poderá ver-se, toda ela, desde os couraceiros da frente até aos couraceiros da retaguarda, com o que entalada entre as paredes do desfiladeiro e sob a am eaça dos aludes de neve ou dos desm oronam entos de rochas.

Provavelm ente o m elhor será deixar a resolução do problem a nas m ãos de deus, ele que decida.

Vam os andando, vam os andando, e depois logo se vê. Contudo, esta preocupação, por m uito com preensível que sej a, não deverá fazer-nos esquecer a outra. Dizem os conhecedores que o passo de brenner é dez vezes m ais perigoso que o de isarco, outros dizem vinte vezes, e que todos os anos cobra um as quantas vítim as, sepultadas sob os aludes ou esm agadas pelos pedregulhos que rolam da m ontanha abaixo, se bem que ao princípio da queda não parecesse que levavam consigo esse aziago destino. Oxalá chegue o tem po em que por via da construção de viadutos que

unam as alturas um as às outras se elim inem os passos profundos em que, em bora ainda vivos, j á vam os m eio enterrados. O interessante do caso é que aqueles que têm de utilizar estes passos o fazem sem pre com um a espécie de resignação fatalista que, se não evita que o m edo lhes assalte o corpo, ao m enos parece deixar-lhes a alm a intacta, serena, com o um a luz firm e que nenhum furacão será capaz de apagar. Contam -se m uitas coisas e nem todas serão certas, m as o ser hum ano foi desta m aneira feito, tão capaz de crer que o pelo de elefante, depois de um processo de m aceração, faz crescer o cabelo, com o de im aginar que leva dentro de si um a luz única que o conduzirá pelos cam inhos da vida, incluindo os desfiladeiros. De um a m aneira ou outra, dizia o sábio erm ita dos alpes, sem pre terem os de m orrer.

O tem po não está bom , o que, nesta época do ano, com o j á tivem os abundantes provas, não é nenhum a novidade. É certo que a neve cai sem exageros e a visibilidade é quase norm al, m as o vento sopra com o lâm inas afiadas que vêm cortar as roupas, por m ais abrigo que elas pareçam dar. Que o digam os couraceiros. Segundo a notícia posta a correr na caravana, se a viagem vai recom eçar hoj e é porque am anhã se espera um agravam ento da situação m eteorológica, e tam bém porque, assim que estiverem percorridos uns quantos quilóm etros m ais para o norte, o pior dos alpes, em princípio, com eçará a ficar para trás. Ou, por outras palavras, antes que o inim igo nos ataque, ataquem o-lo nós a ele. Um a boa parte dos habitantes de bressanone veio assistir à partida do arquiduque m axim iliano e do seu elefante e em pago tiveram um a surpresa.

Quando o arquiduque e a esposa se dispunham a entrar no coche, solim ão fincou os dois j oelhos no chão gelado, o que fez levantar na assistência um a revoada de palm as e vivas absolutam ente digna de registo. O arquiduque com eçou por sorrir, m as logo franziu o sobrolho, pensando que este novo m ilagre havia sido um a m anobra desleal de fritz, desesperado por fazer as pazes. Não tem razão o nobre arquiduque, o gesto do elefante foi com pletam ente espontâneo, saiu-lhe, por assim dizer, da alm a, terá sido um a form a de agradecer, a quem de direito, o bom trato recebido na estalagem am hohen feld durante estes quinze dias, duas sem anas de felicidade autêntica, e, portanto, sem história. Em todo o caso, não deverá excluir-se a possibilidade de que o nosso elefante, j ustam ente preocupado com a m anifesta frieza das relações entre o seu cornaca e o arquiduque, tivesse querido contribuir com tão bonito gesto para apaziguar os ânim os desavindos, com o no futuro se dirá e depois deixará de dizer-se. Ou, para que não se nos acuse de parcialidade por supostam ente estarm os a om itir a verdadeira chave da questão, não se pode excluir a hipótese, que não é m eram ente acadêm ica, de que fritz, ou fosse de caso pensado ou por pura inadvertência, tenha tocado com o bastão na orelha direita de solim ão, órgão m ilagreiro por excelência com o em pádua se dem onstrou. Com o j á deveríam os saber, a representação m ais exata, m ais precisa, da alm a hum ana é o labirinto. Com ela tudo é possível.

A caravana está pronta para partir. Há um sentim ento geral de apreensão, um a tensão indisfarçável, percebe-se que as pessoas não conseguem tirar da cabeça o passo de brenner e os seus perigos. E o cronista destes acontecim entos não tem pej o em confessar que tem e não ser capaz de descrever o fam oso desfiladeiro que m ais adiante nos espera, ele que, j á quando do passo de isarco, teve de disfarçar o m elhor que podia a sua insuficiência, divagando por m atérias secundárias, talvez de algum a im portância em si m esm as, m as fugindo claram ente ao fundam ental. Pena que no século dezasseis a fotografia ainda não tivesse sido inventada, porque então a solução seria facílim a, bastaria inserir aqui um as quantas im agens da época, sobretudo se

captadas de helicóptero, e o leitor teria todos os m otivos para considerar-se am plam ente com pensado e reconhecer o ingente esforço inform ativo da nossa redação. A propósito, é hora de dizer que a pequena cidade que vem a seguir, a pouquíssim a distância de bressanone, se cham a em italiano, j á que em itália estam os ainda, vitipeno. Que os austríacos e os alem ães lhe cham em sterzing é algo que ultrapassa a nossa capacidade de com preensão. Não obstante, adm itim os com o possível, m as sem pôr as m ãos no fogo, que o italiano se cale m enos nestas partes que o português se tem calado nos algarves.

Já saím os de bressanone. Custa a entender que num a região tão acidentada com o esta, onde abundam vertiginosas cadeias de m ontanhas às cavalitas um as das outras, ainda tenha sido preciso rasgar as cicatrizes profundas dos passos do isarco e do brenner, em vez de ir pô-las noutros lugares do planeta m enos distinguidos com os bens da natureza, onde a excepcionalidade do assom broso fenóm eno geológico pudesse, graças à indústria do turism o, beneficiar m aterialm ente as m odestas e sofridas vidas dos habitantes. Ao contrário do que será lícito pensar, tendo em consideração os problem as narrativos francam ente expostos a propósito da travessia do isarco, estes com entários não se destinam a suprir por antecipação a previsível escassez de descrições do passo de brenner em que estam os prestes a entrar. São, isso sim , o hum ilde reconhecim ento de quanta verdade há na conhecida frase, Faltam -m e as palavras. Efetivam ente faltam -nos as palavras. Diz-se que num a das línguas faladas pelos índigenas da am érica do sul, talvez na am azónia, existem m ais de vinte expressões, um as vinte e sete, creio recordar, para designar a cor verde. Com parando com a pobreza do nosso vocabulário quanto a esta m atéria, parecerá que devia ser fácil para eles descrever as florestas em que vivem , no m eio de todos aqueles verdes m inuciosos e diferenciados, apenas separados por subtis e quase inapreensíveis m atizes. Não sabem os se algum a vez o tentaram e se ficaram satisfeitos com o resultado. O que, sim , sabem os, é que um m onocrom atism o qualquer, por exem plo, para não ir m ais longe, o aparente branco absoluto destas m ontanhas, tam bém não decide a questão, talvez porque haj a m ais de vinte m atizes de branco que o olho não pode perceber, m as cuj a existência pressente. A verdade, se quiserm os aceitá-la em toda a sua crueza, é que, sim plesm ente, não é possível descrever um a paisagem com palavras. Ou m elhor, ser possível, é, m as não vale a pena.

Pergunto se vale a pena escrever a palavra m ontanha se não sabem os que nom e se daria a m ontanha a si m esm a. Já a pintura é outra coisa, é m uito capaz de criar sobre a paleta vinte e sete tons de verde seus que escaparam à natureza, e alguns m ais que não o parecem , e a isso, com o com pete, cham am os arte. Às árvores pintadas não caem as folhas.

Já estam os no passo de brenner. Por ordem expressa do arquiduque, em silêncio total. Ao contrário do que havia sucedido até agora, a caravana, com o se o m edo tivesse produzido um efeito congregador, não tem m ostrado tendência a dispersar-se, os cavalos do coche arquiducal quase tocam com os focinhos os quartos traseiros das últim as m ontadas dos couraceiros, solim ão vai tão próxim o do frasquinho de essências da arquiduquesa que chega a aspirar deliciado o olor que dele se desprende cada vez que a filha de carlos quinto sente necessidade de refrescar-se. O

resto da caravana, com eçando pelo carro de bois com a forragem e a dorna da água segue o rasto com o se não houvesse outra m aneira de chegar ao destino. Trem e-se de frio, m as sobretudo de m edo. Nas anfractuosidades das altíssim as escarpas acum ula-se a neve que de vez em quando se desprende e vem cair com um ruído surdo sobre a caravana em pequenos aludes

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