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O prim eiro a falar foi o soldado que sabia m uito de lobos, A tua história é bonita, disse para subhro, e essa vaca m erecia, pelo m enos, um a m edalha ao valor e ao m érito, m as há no relato algum as coisas pouco claras e até m esm o bastante duvidosas, Por exem plo, perguntou o cornaca em tom de quem j á se preparava para a luta, Por exem plo, quem te contou esse caso, Um galego, E com o o conheceu ele, Deve tê-lo ouvido a alguém , Ou lido, Não creio que saiba ler,

Ouviu-o e decorou-o, Pode ser, eu contentei-m e com repeti-lo o m elhor que pude, Tens boa retentiva, tanto m ais que a história vem contada num a linguagem nada corrente, Obrigado, disse subhro, m as agora gostaria de saber que coisas pouco claras e bastante duvidosas encontras tu no relato, A prim eira é o facto de se dar a entender, ou m elhor, é claram ente afirm ado que a luta entre a vaca e os lobos durou doze dias e doze noites, o que significaria que os lobos atacaram a vaca logo na prim eira noite e se retiraram , provavelm ente com baixas, na últim a, Não estávam os lá, não pudem os ver, Sim , m as os que conhecem algum a coisa sobre lobos sabem que esses anim ais, em bora vivam em alcateia, caçam sozinhos, Aonde queres tu chegar, perguntou subhro, Quero chegar a que a vaca não poderia resistir a um ataque concertado de três ou quatro lobos, j á não digo doze dias, m as um a única hora, Então, na história da vaca lutadora é tudo m entira, Não, m entira são só os exageros, os arrebiques de linguagem , as m eias verdades que querem passar por verdades inteiras, Que crês tu então que se passou, perguntou subhro, Creio que a vaca realm ente se perdeu, que foi atacada por um lobo, que lutou com ele e o obrigou a fugir talvez m al ferido, e depois se deixou ficar por ali pastando e dando de m am ar ao vitelo, até ser encontrada, E não pode ter sucedido que viesse outro lobo, Sim , m as isso j á seria m uito im aginar, para j ustificar a m edalha ao valor e ao m érito um lobo j á é bastante. A assistência aplaudiu pensando que, bem vistas as coisas, a vaca galega m erecia a verdade tanto com o a m edalha.

Reunida à prim eira hora da m anhã, a assem bleia geral dos carregadores decidiu, sem votos contra, que o regresso a lisboa se haveria de com eter por rotas m enos duras e perigosas que as da vinda, por cam inhos m ais afáveis e m acios de piso e sem tem er as m iradas am arelas dos lobos e os sinuosos rodeios com que, pouco a pouco, vão acurralando os cérebros das suas vítim as. Não é que os lobos não apareçam nas regiões da costa do m ar, pelo contrário, aparecem , e m uito, e fazem grandes razias nos rebanhos, m as há um a diferença enorm e entre cam inhar entre penhascos que só de os olhar o coração estrem ece e pisar a areia fresca das praias de pescadores, gente boa sem pre capaz de abrir m ão de m eia dúzia de sardinhas em pago de um a aj uda, m esm o que apenas sim bólica, ao arraste do barco. Os carregadores j á têm os seus farnéis e agora esperam que venham subhro e o elefante para as despedidas. Alguém teve a ideia, seguram ente o próprio cornaca. E não se sabe com o ela lhe terá surgido, um a vez que não há nada escrito sobre o assunto. Um a pessoa pode ser abraçada por um elefante, m as não há m aneira nenhum a de im aginar o gesto contrário correspondente. E quanto aos apertos de m ão, esses, seriam sim plesm ente im possíveis, cinco insignificantes dedos hum anos j am ais poderão abarcar um a patorra grossa com o um tronco de árvore. Subhro m andara-os form ar em linha dupla, quinze à frente e quinze atrás, deixando a distância de um côvado entre cada dois hom ens, o que indicava com o provável que o elefante não teria que fazer m ais que desfilar diante deles com o se estivesse a passar revista à tropa. Subhro tom ou outra vez a palavra para dizer que cada hom em , quando salom ão parasse na sua frente, deveria estender a m ão direita, com a palm a para cim a, e esperar a despedida. E não tenham m edo, salom ão está triste, m as não está zangado, tinha-se habituado a vocês e agora descobriu que se vão em bora, E com o o soube ele, Essa é um a daquelas coisas que nem vale a pena perguntar, se o interrogássem os diretam ente, o m ais certo seria não nos responder, Por não saber ou por não querer, Creio que na cabeça de salom ão o não querer e o não saber se confundem num a grande interrogação sobre o m undo em que o puseram a viver, aliás, penso que nessa interrogação nos encontram os todos, nós e os elefantes. Im ediatam ente, subhro pensou que tinha acabado de proferir um a frase estúpida, daquelas que poderiam ocupar um lugar de honra na lista dos narizes de cera, Felizm ente que ninguém m e entendeu, m urm urou enquanto se afastava para trazer o elefante, um a boa coisa que a ignorância tem é defender-nos dos falsos saberes. Cá fora os hom ens im pacientavam -se, não viam a hora de se porem a cam inho, iriam ao longo da m argem esquerda do rio douro para m aior segurança, até chegarem à cidade do porto, que tinha reputação de receber bem as pessoas e onde alguns, desde que se resolvesse a questão da cobrança do salário, o que só em lisboa poderia ser feito, j á pensavam em estabelecer-se. Estava-se nisto, cada qual com os seus pensam entos, quando salom ão apareceu, m ovendo pesadam ente as suas quatro toneladas de carne e ossos e os seus três m etros de altura. Alguns hom ens m enos afoitos sentiram um aperto na boca do estôm ago só de im aginarem que algum a coisa poderia correr m al nesta despedida, assunto, o das despedidas entre espécies anim ais diferentes, sobre o qual, com o dissem os, não existe bibliografia. Acolitado pelos seus auxiliares, a quem não falta m uito para que se lhes acabe

o dolce far niente em que têm vivido desde que saíram de lisboa, subhro vem sentado no am plo cachaço de salom ão, o que só serviu para aum entar o desassossego dos hom ens alinhados. A pergunta estava em todas as cabeças, Com o poderá ele acudir-nos se está lá tão alto. As duas filas oscilaram um a e outra vez, parecia que haviam sido sacudidas por um vento fortíssim o, m as os carregadores não se dispersaram . Aliás, seria inútil porque o elefante j á se aproxim ava.

Subhro fê-lo deter-se diante do hom em que se encontrava no extrem o direito da prim eira fila e disse em voz clara, A m ão estendida, a palm a para cim a. O hom em fez o que lhe ordenavam , a m ão ali estava, firm e na aparência. Então o elefante pousou sobre a m ão aberta a extrem idade da trom ba e o hom em respondeu ao gesto instintivam ente, apertando-a com o se fosse a m ão de um a pessoa, ao m esm o tem po que tentava dom inar a contração que se lhe estava a form ar na garganta e que poderia, se deixada à solta, term inar em lágrim as. Trem ia dos pés à cabeça, enquanto subhro, lá de cim a, o olhava com sim patia. Com o hom em ao lado repetiu-se m ais ou m enos a m ím ica, m as houve tam bém um caso de rej eição m útua, nem o hom em quis estender o braço nem o elefante avançou a trom ba, um a espécie de antipatia fulm inante, instintiva, que ninguém saberia explicar, um a vez que durante a viagem nada se passara entre os dois que pudesse anunciar sem elhante hostilidade. Em com pensação, houve m om entos de vivíssim a em oção, com o foi o caso daquele hom em que explodiu num choro convulsivo com o se tivesse reencontrado um ser querido de quem havia m uitos anos não tinha notícias. A este tratou-o o elefante com particular com placência. Passou-lhe a trom ba pelos om bros e pela cabeça em carícias que quase pareciam hum anas, tal eram a suavidade e a ternura que delas se desprendiam no m enor m ovim ento. Pela prim eira vez na história da hum anidade, um anim al despediu-se, em sentido próprio, de alguns seres hum anos com o se lhes devesse am izade e respeito, o que os preceitos m orais dos nossos códigos de com portam ento estão longe de confirm ar, m as que talvez se encontrem inscritos em letras de ouro nas leis fundam entais da espécie elefantina. Um a leitura com parativa dos docum entos de am bas as partes seria certam ente bastante elucidativa e talvez nos aj udasse a com preender a reação negativa m útua que, m uito a nosso pesar, por am or da verdade, tivem os de descrever acim a. No fundo, talvez os hom ens e os elefantes não cheguem a entender-se nunca. Salom ão acaba de soltar um barrito que deverá ter sido escutado num a légua ao redor de figueira de castelo rodrigo, não um a légua das nossas, m as das outras, m ais antigas e bastante m ais curtas. Os m otivos e as intenções do berro estridente que lhe irrom peu dos pulm ões não são facilm ente decifráveis por pessoas com o nós, que de elefantes sabem os tão pouco. E se a subhro fôssem os perguntar o que, na sua qualidade de perito, pensa sobre o assunto, o m ais certo seria não querer com prom eter-se dando-nos um a resposta evasiva, daquelas que fecham a porta a qualquer outro intento. Não obstante as incertezas, sem pre presentes quando se falam idiom as diferentes, parece j ustificado adm itir que o elefante salom ão tenha gostado da cerim ónia do adeus. Os carregadores j á se haviam posto em m archa. A convivência com os m ilitares tinha-os levado, quase sem darem por tal, a ganhar certos hábitos de disciplina com o aqueles que possam resultar da ordem de form atura, por exem plo, escolher entre organizar um a coluna de dois ou de três de fundo, porquanto não é o m esm o disporem -se trinta hom ens de um a m aneira ou da outra, no prim eiro caso a coluna teria quinze filas, um exagero de extensão facilm ente rom pível à m ais pequena com oção pessoal ou coletiva, ao que no segundo caso elas seriam reduzidas a um sólido bloco de dez, a que só faltariam os escudos para parecer a tartaruga rom ana. No entanto, a diferença é sobretudo

psicológica. Pensem os que estes hom ens têm pela frente um a longa m archa e que o natural é que, no decurso dela, vão conversando para entreter o tem po. Ora, dois hom ens que tenham de cam inhar j untos durante duas ou três horas seguidas, m esm o im aginando que sej a grande o desej o de com unicação, acabarão fatalm ente, m ais cedo ou m ais tarde, por cair em contrafeitos silêncios, quem sabe m esm o se odiar-se. Algum desses hom ens poderia não ser capaz de resistir à tentação de atirar o outro por um a ribanceira abaixo. Razão têm , portanto, as pessoas que dizem que três foi a conta que deus fez, a conta da paz, a conta da concórdia. Em três, ao m enos, um qualquer poderá estar calado durante alguns m inutos sem que se note dem asiado. O pior é se um deles que tenha andado a pensar em elim inar outro para lhe ficar com o farnel, por exem plo, convida o terceiro a colaborar na repreensiva ação, e este lhe responde, pesaroso, Não posso, j á estou com prom etido em aj udar a m atar-te a ti.

Ouviu-se o trote esfogueado de um cavalo. Era o com andante que vinha para despedir os carregadores e desej ar-lhes boa viagem , atenção que não se esperaria de um oficial do exército por reconhecidam ente bom que sej a o seu fundo m oral, m as que não seria vista com bons olhos pelos superiores, acérrim os defensores de um preceito velho com o a sé de braga, aquele que determ ina que terá de haver um lugar para cada coisa a fim de que cada coisa tenha o seu lugar e dele não saia. Com o princípio básico de um a eficaz arrum ação dom éstica, nada m ais louvável, m au é quando se pretenda distribuir a gente pelos cacifos da m esm a m aneira. O que parece m ais do que evidente é que os carregadores, no caso de se virem a concretizar as conspirações de assassínio que germ inam em algum as daquelas cabeças, não m erecem estas delicadezas.

Deixem o-los portanto entregues à sua sorte e vej am os que quer aquele hom em que se aproxim a a toda a pressa apesar de, pela idade, j á não o aj udarem m uito as pernas. As ofegantes palavras que disse quando chegou ao alcance da voz foram estas, O senhor alcaide m anda avisar vossa senhoria de que o pom bo j á chegou. Afinal, sem pre era verdade, os pom bos-correios voltam a casa. A m orada do alcaide não era longe dali, m as o com andante lançou o cavalo a um a velocidade tal que era com o se pretendesse entrar em valladolid ainda antes da hora do alm oço.

Menos de cinco m inutos depois apeava-se à porta da m ansão, subia a escada a correr e ao prim eiro criado que encontrou pediu que o conduzisse ao alcaide. Não foi preciso ir procurá-lo porque ele j á vinha aí, trazendo na cara um ar de satisfação com o só se supõe que o tenham os am antes da colum bofilia perante os triunfos dos seus pupilos. Já chegou, j á chegou, venha com igo, dizia com entusiasm o. Saíram para um a am pla varanda coberta onde um a enorm e gaiola de cana ocupava boa parte da parede a que estava fixada. Ali está o herói, disse o alcaide.

O pom bo ainda tinha a m ensagem atada à pata, situação que o proprietário achou conveniente esclarecer, Em geral, retiro a m ensagem logo que o pom bo pousa e faço-o porque não quero que com ece a dar o trabalho por m al em pregado, m as neste caso preferi esperar a sua chegada para lhe dar a si um a satisfação com pleta, Não sei com o lho agradeça, senhor alcaide, creia que este é para m im um dia grande, Não duvido, com andante, nem tudo na vida são alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. O alcaide abriu a porta da gaiola, introduziu o braço e agarrou o pom bo, que não resistiu nem tentou escapar, com o se j á antes tivesse estranhado que não lhe dessem atenção. Com m ovim entos rápidos m as cuidadosos o alcaide desfez os nós, desenrolou a m ensagem , um a estreita tira de papel que devia ter sido cortada assim para não entorpecer os m ovim entos da ave. Em frases breves, o esculca inform ava que os soldados eram couraceiros,

uns quarenta, todos austríacos, com o austríaco era tam bém o capitão que os com andava, e não os acom panhava nenhum pessoal civil ou não se dava por ele. Ligeiros de equipagem , com entou o com andante dos cavaleiros lusíadas, Assim parece, disse o alcaide, E arm as, De arm as não fala, im agino que não terá achado prudente incluir inform ações desse tipo, em com pensação diz que, pelo andam ento que trazem , deverão chegar à fronteira am anhã, sobre as doze do m eio dia, Vêm cedo, Talvez devêssem os convidá-los para alm oçar, Quarenta austríacos, senhor alcaide, nem pensar, por m uito ligeiros de equipagem que se apresentem , com ida sua devem trazer ou dinheiro para pagá-la, além disso, o m ais certo é que não gostem do que nós com em os, sem falar de que alim entar quarenta bocas não é coisa que se faça do pé para a m ão e nós, por nossa parte, j á com eçam os a estar curtos de víveres, o m eu parecer, senhor alcaide, é que cada um trate de si, enquanto deus trata de todos, Sej a com o for, não o dispenso da ceia de am anhã, Com igo pode contar, m as ou m e engano m uito ou está a pensar em convidar tam bém o capitão dos austríacos, Louvo-lhe a perspicácia, E porquê esse convite, se não abuso dem asiado da sua confiança ao perguntar, Será um gesto de apaziguam ento político, Realm ente espera que sej a necessário sem elhante gesto de apaziguam ento, quis saber o com andante, A experiência j á m e ensinou que de dois destacam entos m ilitares colocados frente a frente num a fronteira tudo se pode esperar, Farei o que puder para evitar o pior, não quero perder um só dos m eus hom ens, m as se tiver de usar a força, não duvidarei um instante, e agora, senhor alcaide, dê-m e licença para que m e retire, o m eu pessoal vai ter m uito que fazer, a com eçar por assear os uniform es o m elhor possível, com sol e com chuva tem os levado quase duas sem anas com eles postos, com eles dorm im os, com eles nos levantam os, m ais que um destacam ento m ilitar, parecem os um a avançada de m endigos, Muito bem , senhor com andante, am anhã, quando os austríacos chegarem , estarei consigo, com o é m inha obrigação, De acordo, senhor alcaide, se precisar de m im daqui até lá, j á sabe onde pode encontrar-m e.

Regressado ao castelo, o com andante m andou reunir a tropa. A arenga não foi longa, m as nela ficou dito tudo o que convinha saber-se. Em prim eiro lugar, fosse qual fosse o pretexto, não seria perm itida a entrada dos austríacos no castelo, m esm o que houvesse que recorrer às arm as. Isto seria a guerra, continuou, e espero que não tenham os de chegar a um tal extrem o, m as tanto m ais facilm ente lograrem os o que pretendem os, quanto m ais depressa form os capazes de convencer os austríacos de que estam os a falar a sério. Esperarem os a chegada deles fora dos m uros, e dali não nos m overem os ainda que façam m enção de quererem entrar. Com o com andante, eu m e encarregarei dos palratórios, de vocês, nesses prim eiros m om entos, só desej o que cada rosto sej a com o um livro aberto num a página onde se encontrem escritas estas palavras, Aqui não entram . Se o conseguirm os, e, custe o que custar, terem os de consegui-lo, os austríacos serão obrigados a bivacar fora dos m uros, o que irá colocá-los, logo de princípio, num a posição de inferioridade. É possível que nem tudo se passe com a facilidade que as m inhas palavras parecem estar a prom eter, m as garanto-vos que farei tudo para que os austríacos ouçam da m inha boca um a resposta que não desfeiteará esta arm a de cavalaria a que dedicám os as nossas vidas. Mesm o que não haj a briga, m esm o que não venha a disparar-se um tiro, a vitória terá de ser nossa, com o nossa tam bém terá de ser se nos obrigarem a fazer uso das arm as. Estes austríacos, em princípio, vinham a figueira de castelo rodrigo unicam ente para nos dar as boas-vindas e acom panhar-nos a valladolid, m as tem os razões para suspeitar que o seu propósito é

levarem eles o salom ão e deixarem -nos aqui com cara de parvos. Tão certo ser quem sou, vai-lhes sair o gado m osqueiro. Am anhã, antes das dez, quero duas atalaias na torre m ais alta do castelo, não sej a o caso de que eles tenham feito correr que chegarão ao m eio-dia e venham apanhar-nos a dar água aos cavalos. Com austríacos nunca se sabe, rem atou o com andante, sem se deter a pensar que, em m atéria de austríacos, estes iriam ser os prim eiros e provavelm ente os únicos na sua vida.

O com andante tivera razão nas suas desconfianças, pouco havia passado das dez horas quando do alto da torre ressoaram os gritos de alarm e das atalaias, Inim igo à vista, inim igo à vista. É

certo que os austríacos, pelo m enos na sua versão m ilitar, não gozam de boa reputação entre esta tropa portuguesa, m as daí, sem m ais aquelas, a cham ar-lhes inim igos, vai um a distância que o senso com um não pode não recrim inar severam ente, cham ando a atenção dos im prudentes para os perigos dos j uízos precipitados e da tendência para as condenações sem provas. O caso, porém , tem um a explicação. Às atalaias tinha-se-lhes ordenado que dessem voz de alarm e, m as ninguém se lem brou de lhes dizer, nem sequer o com andante, em geral tão precavido, em que deveria consistir essa voz. Perante o dilem a de terem de escolher entre Inim igos à vista, que qualquer civil é capaz de perceber, e um tão pouco m arcial As visitas estão a chegar, o uniform e que envergavam resolveu decidir por sua conta, exprim indo-se com o vocabulário e a voz que lhes são próprios. Ainda a últim a ressonância do alerta vibrava no ar e j á os soldados acorriam às am eias para ver o tal inim igo, que, a esta distância, uns quatro ou cinco quilóm etros, não passava de um a m ancha quase negra que m al parecia avançar e que, contra as expectativas, não fazia rebrilhar as couraças que traziam postas. Um soldado desfez a dúvida, Não adm ira, têm o sol pelas costas, o que, reconheçam o-lo, é m uito m ais bonito, m uito m ais literário, que dizer, Estão em contraluz. Os cavalos, todos zainos e alazões com a pelagem em diversos tons de castanho, daí a m ancha escura que form avam , avançavam a trote curto. Poderiam m esm o vir a passo que a diferença não se notaria, m as isso faria com que se perdesse o efeito psicológico de um avanço que pretende apresentar-se com o im parável, m as que, ao m esm o tem po, sabe gerir os m eios de que dispõe. É evidente que um bom galope de espadas ao alto, género carga da brigada ligeira, proporcionaria à galeria efeitos especiais m uito m ais espetaculares, m as, para um a vitória tão fácil com o esta prom ete vir a ser, seria absurdo cansar os cavalos m ais além do estritam ente necessário. Isto havia pensado o com andante austríaco, hom em de larga experiência em cam pos de batalha da europa central, e assim o fez transm itir aos m ilitares sob as suas ordens. Entretanto, castelo rodrigo preparava-se para o com bate. Os soldados, depois de ensilharem os anim ais, levaram -nos a passo para o exterior e aí os deixaram à guarda de m eia dúzia de cam aradas, os m ais capacitados para um a m issão que pareceria de sim ples pastoreio se à porta do castelo houvesse algum a coisa para com er. O sargento fora avisar o alcaide de que j á vinha o austríaco, Ainda vão dem orar um bocado, m as tem os de estar preparados, disse, Muito bem , respondeu o alcaide, eu acom panho-o. Quando chegaram ao castelo, a tropa j á estava form ada em frente da entrada, tapando-lhe o acesso, e o com andante preparava-se para fazer a sua últim a arenga.

Atraída pela exibição equestre gratuita e pela possibilidade de que o elefante tam bém saísse, um a boa parte da população de figueira de castelo rodrigo, hom ens, m ulheres, infantes e anciãos, tinha vindo j untar-se na praça, o que levou o com andante a dizer em voz baixa ao alcaide, Com toda esta gente a assistir, as hostilidades são pouco prováveis, Tam bém penso isso, m as com o austríaco nunca se sabe, Teve m ás experiências com eles, perguntou o com andante, Nem m ás nem boas, nenhum as, m as sei que o austríaco existe sem pre e isso, para m im , é quanto basta.

Em bora tivesse acenado com a cabeça em sinal de inteligência, o com andante não conseguiu captar a subtileza, salvo se se tom ar austríaco com o sinónim o de adversário, de inim igo. Resolveu por isso passar im ediatam ente à preleção com que esperava levantar o ânim o desfalecente de algum dos hom ens. Soldados, disse, o destacam ento austríaco está perto. Virão reclam ar o elefante para o levarem para valladolid, m as nós não acatarem os o pedido, ainda que ele venha a transform ar-se em im posição sustentada pela força. Os soldados portugueses acatam disciplinadam ente as ordens do seu rei e das suas autoridades m ilitares e civis. De ninguém m ais.

A prom essa do rei, de oferecer o elefante salom ão a sua alteza o arquiduque de áustria, será pontualm ente cum prida, m as só com o total respeito pelas form as por parte dos austríacos.

Quando, de cabeça levantada, voltem os para casa, poderem os ter a certeza de que este dia será recordado para todo o sem pre, de cada um de nós se há-de dizer enquanto houver portugal, Ele esteve em figueira de castelo rodrigo. O discurso não pôde chegar ao seu term o natural, isto é, quando a eloquência se esgotasse e se perdesse em lugares-com uns ainda piores, porque os austríacos j á estavam a entrar na praça, trazendo à frente o seu com andante. Houve aplausos do povo reunido, m as escassos e de pouca convicção. Com o alcaide ao lado, o com andante da hoste lusitana adiantou o cavalo os poucos m etros necessários para que se percebesse que estava a receber os visitantes de acordo com as m ais requintadas regras de educação. Foi nesse instante que um a m anobra dos soldados austríacos fez resplandecer de golpe, sob o sol, as couraças de aço polido. O efeito na assistência foi fulm inante. Perante os aplausos e as exclam ações de surpresa a saltar de todos os lados, era evidente que o im pério austríaco, sem disparar um só tiro, vencera a escaram uça inicial. O com andante português com preendeu que deveria contra-atacar im ediatam ente, m as não via a m aneira. Salvou-o do transe o alcaide ao dizer em voz baixa, Com o alcaide, devo ser o prim eiro a falar, tenham os calm a. O com andante recuou um pouco o cavalo, consciente da enorm e diferença, em potência e beleza, da sua m ontada em com paração com a égua alazã que o austríaco cavalgava. O alcaide j á tom ara a palavra, Em nom e da população de figueira de castelo rodrigo, de que m e honro de ser alcaide, dou as boas-vindas aos bravos m ilitares austríacos que nos visitam e a quem desej o os m elhores triunfos no desem penho da m issão que aqui os trouxe, certo com o estou de que eles contribuirão para o fortalecim ento dos laços de am izade que unem os nossos dois países. Sej am pois bem -vindos a figueira de castelo rodrigo. Um hom em m ontado num a m ula chegou-se para a frente e falou ao ouvido do com andante austríaco, que afastou a cara com im paciência. Era o língua, o intérprete. Quando a tradução term inou, o com andante alçou a voz poderosa, acostum ada a não ser escutada por ouvidos desatentos e m uito m enos desobedecida, Sabeis por que estam os aqui, sabeis que viem os buscar o elefante para levá-lo conosco a valladolid, é im portante que não percam os tem po e com ecem os j á com os preparativos da transferência, de m odo a que possam os partir am anhã o m ais cedo possível, são estas as instruções que recebi de quem podia dar-m as e que farei cum prir de acordo com a autoridade de que m e encontro investido. Estava claro que não se tratava de um convite à valsa. O alcaide m urm urou, A ceia foi por água abaixo, Assim parece, disse o com andante. Depois levantou por sua vez a fala, As m inhas instruções são diferentes, as que recebi, tam bém de quem m as podia dar, são sim ples, levar o elefante a valladolid e entregá-lo ao arquiduque de áustria pessoalm ente, sem interm ediários. A partir destas palavras, deliberadam ente provocativas e que talvez venham a ter consequências sérias, serão elim inadas do relato as versões alternadas do intérprete a fim de não só agilizar a j usta verbal, m as tam bém

para que fique habilm ente insinuada a ideia precursora de que a esgrim a de argum entos de um lado e do outro estará a ser percebida por am bas as partes em tem po real. Ouve-se agora o com andante austríaco, Receio que a sua pouco com preensiva atitude estej a a im pedir um a solução pacífica do diferendo que nos opõe, é evidente que o ponto central está em que o elefante, sej a quem for que o leve, terá de ir para valladolid, porém , há porm enores prioritários a tom ar em consideração, o prim eiro dos quais é o facto de que o arquiduque m axim iliano, ao declarar aceitar o presente, se tornou ipso facto proprietário do elefante, o que significa que as ideias de sua alteza o arquiduque sobre o assunto terão de prevalecer sobre quaisquer outras, por m uito m erecedoras de respeito que presum am ser, portanto, insisto, o elefante deve ser-m e entregue agora m esm o, sem m ais dilação, com o única m aneira de evitar que os m eus soldados penetrem no castelo pela força e se apoderem do anim al, Gostaria de ver com o o lograriam , m as tenho trinta hom ens a cobrir a entrada do castelo e não estou a pensar em dizer-lhes que se retirem ou que abram alas para deixar passar os seus quarenta. Nesta altura a praça j á estava quase deserta de paisanos, o am biente com eçara a cheirar a esturro, em casos com o este há sem pre a possibilidade de um a bala perdida ou de um a pranchada cega pelas costas abaixo, enquanto a guerra não passa de um espetáculo, bem está, o m au é quando pretendem converter-nos em figurantes nela, ainda por cim a sem preparação nem experiência. Foram , portanto, j á poucos os que ainda ouviram a réplica do com andante austríaco à insolência do português, Os couraceiros sob o m eu com ando poderão, a um a sim ples ordem , varrer do cam po, em m enos tem po do que levo a dizê-lo, a fraca força m ilitar que se lhes opõe, m ais sim bólica que efetiva, e assim será feito se não for im ediatam ente deposta a insensata obstinação de que o seu com andante está dando m ostras, o que m e obriga a avisar de que as inevitáveis perdas hum anas, que no lado português, dependendo do grau de resistência, poderão vir a ser totais, serão de sua inteira e única responsabilidade, depois não venham para cá queixar-se, Um a vez que, se bem entendi, vossa senhoria se propõe m atar-nos a todos, não vej o com o poderem os depois queixar-nos, suponho que irá ter algum a dificuldade em j ustificar um a ação a esse ponto violenta contra soldados que não fazem m ais que defender o direito do seu rei a estabelecer as regras para a entrega do elefante oferecido ao arquiduque m axim iliano de áustria, que, neste caso, m e parece ter sido m uito m al aconselhado, tanto no plano político com o no plano m ilitar. O com andante austríaco não respondeu im ediatam ente, a ideia de que teria de j ustificar perante viena e lisboa um a ação de tão drásticas consequências dava-lhe voltas na cabeça, e a cada volta lhe parecia m ais com plicada a questão. Por fim , j ulgou ter encontrado um a plataform a conciliatória, propor que lhes fosse perm itido, a ele e aos seus hom ens, entrar no castelo para se certificarem do estado de saúde do elefante. Suponho que os seus soldados não são alveitares, respondeu o com andante português, quanto a vossa senhoria, não sei, m as não creio que se tenha especializado na arte de curar bestas, portanto não vej o qualquer utilidade em deixá-los entrar, pelo m enos antes que m e sej a reconhecido o direito a ir a valladolid fazer, pessoalm ente, entrega do elefante a sua alteza o arquiduque de áustria. Novo silêncio do com andante austríaco. Vendo que a resposta não chegava, o alcaide disse, Eu falo com ele. Ao fim de alguns m inutos regressava com um a expressão de contentam ento no rosto, Está de acordo, Diga-lhe então, pediu o com andante português, que para m im será um a honra acom panhá-lo na visita. Enquanto o alcaide ia e vinha, o com andante português deu ordem ao sargento para m andar form ar a tropa em duas alas. Adiantou o cavalo quando a m anobra ficou concluída, até o pôr ao lado da égua do

austríaco, e pediu ao intérprete que traduzisse, Sej a outra vez bem -vindo a castelo rodrigo, vam os ver o elefante.

Tirante um a briga sem dem asiada im portância entre alguns soldados, três de cada lado, a cam inhada para valladolid decorreu sem incidentes assinaláveis. Num gesto de paz digno de m enção, o com andante português cedeu a organização da caravana, isto é, decidir quem vai à frente e quem vai atrás, ao bom alvedrio do capitão austríaco, o qual foi m uito explícito na sua opção, Nós vam os à frente, o resto que se arrum e com o entender m elhor ou, um a vez que j á têm experiência, de acordo com a disposição da coluna com que saíram de lisboa. Havia duas excelentes e óbvias razões para terem escolhido ir à frente, a prim eira era o facto de que, praticam ente, estavam em casa, a segunda, ainda que não confessada, porque, em caso de céu descoberto, com o agora, e até que o sol atingisse o zênite, isto é, durante as m anhãs, teriam o cham ado astro-rei de frente logo na prim eira linha, com evidente benefício para o fulgor das couraças. Quanto a repetir a disposição da coluna, nós sabem os que tal não será possível, um a vez que os carregadores j á vão a cam inho de lisboa, com passagem pela que será, num futuro ainda distante, a invicta e sem pre leal cidade do porto. De qualquer m aneira, não havia que dar-lhe m uitas voltas. Se se m antém vigente a norm a de que o m ais lento de um a caravana será aquele que m arcará o passo, e portanto a velocidade do avanço, então não há dúvida, os bois m archarão atrás dos couraceiros, que terão naturalm ente roda livre para galopar sem pre que lhes apetecer, a fim de que o gentio que vier à estrada a ver o desfile não possa confundir churras com m erinas, provérbio castelhano que utilizam os precisam ente por em castela estarm os e não desconhecerm os a capacidade sugestiva de um leve toque de cor local, sendo que as churras, para quem não saiba, são as lãs suj as e as m erinas as lãs lim pas. Ou, por outros term os, um a coisa são cavalos, ainda por cim a m ontados por couraceiros chapeados de sol, e outra, m uito diferente, duas j untas de m agros bois a puxar um carro carregado com um a dorna de água e uns quantos fardos de forragem para um elefante que vem logo a seguir e traz um hom em escarranchado no cachaço. Depois do elefante é que vem o destacam ento de cavalaria português, ainda frem ente de orgulho pela sua valerosa atuação na véspera, tapando com os seus próprios corpos a entrada do castelo. A nenhum dos soldados que aqui vai se lhe esquecerá, por m uitos anos que viva, o m om ento em que após a visita ao elefante o com andante austríaco deu ordem ao seu sargento para m ontar o bivaque ali m esm o, na praça, É só por um a noite, j ustificou, ao abrigo de uns quantos carvalhos que, em bora pela idade tivessem visto m uita coisa, nunca soldados a dorm irem positivam ente ao relento ao lado de um castelo onde teriam podido aloj ar-se com toda a com odidade três divisões de infantaria com as respectivas bandas de m úsica. O triunfo sobre as abusivas pretensões dos austríacos, que havia sido absoluto, era tam bém , coisa rara em casos com o estes, o triunfo do senso com um , porquanto, por m uito sangue que tivesse corrido em castelo rodrigo, qualquer guerra entre portugal e áustria seria, não só absurda, com o im praticável, a não ser que os dois países alugassem , por exem plo, à frança, um a porção do seu território, m ais ou m enos a m eio cam inho entre os dois contendores, para poderem alinhar as tropas e organizar os com bates. Enfim , tudo está bem quando bem acaba.

Subhro não tem a certeza de vir a recolher algum a vantagem do tranquilizador ditado. Os

basbaques que o veem passar na estrada, alcandorado a três m etros de altura e vestindo o seu colorido traj e novo, o de ir ver a m adrinha se a tivesse, que pôs, não por vaidade pessoal, m as para que o país donde vinha ficasse bem visto, im aginam que vai ali um ser dotado de poderes extraordinários, quando a realidade é que o pobre indiano trem e só de pensar no seu futuro próxim o. Crê que até valladolid terá em prego garantido, alguém lhe há-de pagar o tem po e o trabalho, parece pequena coisa viaj ar às costas de um elefante, m as isso diz quem nunca experim entou obrigá-lo, por exem plo, a ir para a direita quando ele quer ir para a esquerda.

Porém , daí em diante os ares turvam -se. Que tenha pensado desde o prim eiro dia que a sua m issão era acom panhar salom ão a viena, m otivos j ulgava ter, porquanto isso entrava no dom ínio do im plícito, um a vez que se um elefante tem o seu cornaca pessoal, é natural que aonde for um terá de ir o outro. Mas que lho tivessem dito, olhos nos olhos, isso nunca lho disseram . A valladolid, sim , m as nada m ais. É portanto natural que a im aginação de subhro o tenha levado a representar-se a pior das situações possíveis, chegar a valladolid e encontrar outro cornaca à espera do testem unho para prosseguir a j ornada e, chegado a viena, viver à tripa-forra na corte do arquiduque m axim iliano. Porém , ao contrário do que qualquer poderia pensar, acostum ados com o estam os a colocar os baixos interesses m ateriais acim a dos autênticos valores espirituais, não foi a com ida e a bebida, e a cam a feita todos os dias, que fizeram suspirar subhro, m as um a revelação súbita que, sendo revelação, súbita não o era em sentido rigoroso, pois os estados latentes tam bém contam , a de am ar aquele anim al e não querer separar-se dele. Sim , m as se j á estiver em valladolid outro cuidador à espera de tom ar posse do cargo, as razões de coração de subhro pesarão nada na im parcial balança do arquiduque. Foi então que subhro, balouçando ao ritm o dos passos do elefante, disse em voz alta, lá em cim a, onde ninguém o podia ouvir, Preciso de ter um a conversa a sério contigo, salom ão. Felizm ente não havia m ais ninguém presente, j ulgariam que o cornaca estava doido e que, em consequência, a segurança da caravana corria sério risco. A partir deste m om ento os sonhos de subhro tom aram outra direção. Com o num caso de am ores m al aceites, daqueles que toda a gente, não se sabe porquê, decide contrariar, subhro fugia com o elefante através de planícies, colinas e m ontanhas, ladeava lagos, atravessava rios e bosques, iludindo a perseguição dos couraceiros, a quem não lhes servia de m uito o rápido galopar dos seus alazões, porque um elefante, quando quer, tam bém é capaz do seu galopezinho.

Nessa noite, subhro, que nunca dorm ia longe de salom ão, aproxim ou-se m ais dele, tom ando cuidado em não o despertar, e com eçou a falar-lhe ao ouvido. Vertia as palavras para dentro da orelha, um sussurro ininteligível, que tanto podia ser híndi com o bengali, ou um a linguagem só dos dois conhecida, nascida e criada em anos de solidão, que solidão foi, m esm o quando a interrom piam os gritinhos dos fidalgotes da corte de lisboa ou as galhofas do populacho da cidade e arredores, ou, antes disso, na longa viagem de barco que os trouxe a portugal, as chufas dos m arinheiros. Por absoluto desconhecim ento das línguas, não podem os revelar o que esteve a dizer subhro ao ouvido de salom ão, m as, conhecidas as inquietantes expectativas que preocupam o cornaca, não é im possível im aginar em que terá consistido a conversação. Subhro, sim plesm ente, estava a pedir aj uda a salom ão, fazendo-lhe um as certas sugestões práticas de com portam ento, com o, por exem plo, m anifestar, pelos processos m ais expressivos ao alcance de qualquer elefante, incluindo os radicais, o seu descontentam ento pela separação forçada do cornaca, se esse viesse a ser o caso. Um cético obj etará que não se pode esperar m uito de um a conversação destas, um a vez que o elefante não só não deu qualquer resposta à petição, com o

continuou a dorm ir placidam ente. É não conhecer os elefantes. Se lhes falam ao ouvido em híndi ou em bengali, sobretudo quando estão a dorm ir, são tal qual o génio da lâm pada, que, m al saído da garrafa, pergunta, Que m anda o m eu senhor. Sej a com o for, estam os em condições de antecipar que nada acontecerá em valladolid. Logo na noite seguinte, m ovido pelo arrependim ento, subhro foi dizer a salom ão que não fizesse caso do que lhe havia pedido, que tinha sido pior que o pior dos egoístas, que aquelas não eram m aneiras de resolver os assuntos, Se acontecer o que tem o, sou eu quem deverá assum ir as responsabilidades e tratar de convencer o arquiduque a que nos deixe continuar j untos, portanto, ouve-m e, suceda o que suceder, tu não fazes nada, ouviste, não fazes nada. O m esm o cético, se aqui estivesse, não teria outro rem édio que depor por um instante o seu ceticism o e reconhecer, Bonito gesto, este cornaca é realm ente um bom hom em , não há dúvida de que as m elhores lições nos vêm sem pre da gente sim ples.

Com o espírito em paz, subhro regressou à sua enxerga de palha e em poucos m inutos adorm ecia. Quando despertou na m anhã seguinte e recordou a decisão que havia tom ado, não pôde evitar perguntar a si m esm o, E para que iria querer o arquiduque um cornaca se j á está servido com este. E continuou a desfiar as suas razões, Tenho o capitão dos couraceiros por testem unha e abonador, viu-nos no castelo e é im possível que não tenha reparado que poucas vezes se terá visto um a conj unção m ais perfeita entre um anim al e um a pessoa, é verdade que de elefantes entenderá pouco, m as sabe bastante de cavalos, e isso j á é algum a coisa. Que salom ão tenha um bom fundo natural, toda a gente o reconhece, m as eu pergunto se com outro cornaca ele teria feito o que fez na despedida dos carregadores. Não que eu lho tivesse ensinado, quero deixá-lo aqui bem claro, aquilo foi coisa que lhe saiu espontaneam ente da alm a, eu próprio pensava que ele chegaria ali, faria, quando m uito, um aceno com a trom ba, soltaria um barrito, daria dois passos de dança e adeus, até à vista, m as, conhecendo-o com o eu o conheço, com ecei a perceber que andaria a congem inar naquela cabeçorra algo que nos iria deixar estupefatos a todos. Im agino que m uito se terá escrito j á sobre os elefantes com o espécie e m uito m ais se haverá de escrever no futuro, m as duvido que algum desses autores tenha sido testem unha ou sim plesm ente ouvido falar de um prodígio elefantino que se possa com parar com aquele que, m al acreditando no que os m eus olhos viam , presenciei em castelo rodrigo.

Na coluna dos couraceiros há diferenças de opinião. Uns, talvez por serem m ais j ovens e atrevidos, ainda com o sangue na guelra, defendem que o seu com andante deveria, custasse o que custasse, ter-se m antido até ao últim o reduto na linha estratégica com que entrou em castelo rodrigo, ou sej a, a entrega im ediata e sem condições do elefante, m esm o que viesse a ser preciso fazer uso persuasório da força. Tudo m enos aquela súbita rendição perante as provocações sucessivas do capitão português, que até parecia ansioso por passar a vias de facto, em bora devesse ter a certeza m atem ática de que acabaria derrotado no confronto. Pensavam estes que bastaria um sim ples gesto de efeito, com o o desem bainhar sim ultâneo de quarenta espadas à ordem de atacar para que a aparente intransigência dos esquálidos portugueses se desm oronasse e as portas do castelo fossem abertas de par em par aos vencedores austríacos. Outros, achando igualm ente incom preensível a atitude desistente do capitão, consideravam que o prim eiro erro fora chegar ao castelo e, sem m ais aquelas, im por, Passem para cá o elefante, que não tem os tem po a perder. Qualquer austríaco, nascido e criado na europa central, sabe que num caso com o este haveria que saber dialogar, ser am ável, interessar-se pela saúde da fam ília, fazer um

com entário lisonj eiro sobre o bom aspecto dos cavalos portugueses e a m aj estade im ponente das fortificações de castelo rodrigo, e depois, sim , com o quem subitam ente recorda haver m ais um assunto a tratar, Ah, é verdade, o elefante. Outros m ilitares ainda, m ais atentos às duras realidades da vida, argum entavam que se as coisas se houvessem passado com o queriam os colegas, iriam agora na estrada com o elefante e sem nada que dar-lhe de com er, um a vez que não faria qualquer sentido que os portugueses tivessem deixado ir o carro de bois com os fardos de forragem e a dorna da água, e ficado em castelo rodrigo, não se sabe quantos dias, à espera do regresso, Isto só tem um a explicação, rem atou um cabo que tinha cara de haver feito estudos, o capitão não trazia ordens do arquiduque ou de quem quer que fosse para exigir a entrega im ediata do elefante, e foi só depois, durante o cam inho ou j á em castelo rodrigo, que a ideia lhe ocorreu, Se eu pudesse excluir os portugueses desta partida de naipes, pensou, as honras seriam todas para os m eus hom ens e para m im . É legítim o perguntar com o é possível chegar-se a oficial dos couraceiros austríacos com pensam entos destes e tão grave falta de sinceridade, pois, com o até um a criança facilm ente perceberia, a am istosa alusão aos soldados não passou de m era tática para disfarçar a sua própria e exclusiva am bição. Um a pena. Som os, cada vez m ais, os defeitos que tem os, não as qualidades.

A cidade de valladolid decidiu pôr de m anifesto as suas m elhores galas para receber o paquiderm e há tanto tem po esperado, chegando ao cúm ulo, com o se de procissão m aior se tratasse, de pendurar um as quantas colgaduras dos balcões e fazer flutuar à brisa j á quase outonal uns quantos pendões que ainda não haviam perdido de todo o colorido. Vestidas de lavado até onde naquelas difíceis épocas o perm itia a pouca higiene, as fam ílias percorriam as ruas, estas bastante m enos lim pas, im pelidas, as fam ílias, por duas ideias centrais, saber onde se encontrava o elefante e o que se iria passar depois. Havia desm ancha-prazeres que afirm avam que o elefante era um boato, que talvez viesse um dia, sim , m as por enquanto não se podia saber quando tal aconteceria. Havia quem j urasse que o pobre anim al, exausto, estava a repousar desde que chegara, ontem , após os longos e duros cam inhos que tivera de percorrer para chegar a valladolid, prim eiro entre lisboa e figueira de castelo rodrigo, depois entre a fronteira portuguesa e esta cidade que tinha a honra de albergar há dois anos, na qualidade de regentes de espanha, as excelsas pessoas de sua alteza real o arquiduque m axim iliano e sua esposa, m aria, filha do im perador carlos quinto. Isto se escreve para que se vej a quão im portante era este m undo de personagens, todas elas pertencentes às m ais altas realezas, que viveram no tem po de salom ão e que, de um a m aneira ou outra, não só tiveram conhecim ento direto da sua existência, m as tam bém das épicas ainda que pacíficas façanhas que com eteu. Agora m esm o, o arquiduque e a esposa assistem , enlevados, ao asseio do elefante, em presença de m em bros distinguidos da corte e do clero e de alguns artistas expressam ente cham ados para im ortalizarem no papel, na tábua ou na tela o sem blante do anim al e o seu im ponente arcaboiço. Orienta as operações, em que, um a vez m ais, não faltam a água a j orros e a escova de piaçaba de cabo com prido, o alter ego de salom ão que é o indiano subhro. Subhro está feliz porque não viu, desde que chegou, há m ais de vinte e quatro horas, qualquer sinal da intrusão de um outro cornaca, m as j á foi inform ado oficialm ente pelo intendente do arquiduque de que salom ão, daqui em diante, passará a cham ar-se solim ão. Desgostou-o profundam ente a m udança do nom e, m as, com o sói dizer-se, vão-se os anéis e fiquem os dedos. A aparência de solim ão, resignem o-nos, não tem os outro rem édio que cham ar-lhe assim , havia m elhorado m uito com a lavagem geral a que havia sido suj eito, m as tornou-se em autêntico esplendor, diríam os até deslum bram ento, quando, com grande esforço, uns quantos criados lhe lançaram por cim a um a enorm e gualdrapa em que m ais de vinte bordadores haviam trabalhado durante sem anas, sem interrupção, um a obra que dificilm ente encontrará par no m undo, tal a abundância de pedras que, em bora não sendo de todo preciosas, brilhavam com o se o fossem , m ais o fio de ouro, os opulentíssim os veludos. Mal em pregado tudo, rosnou para dentro o arcebispo, sentado a pouca distância do arquiduque, com aquilo que se m algastou com este bicho tinha-se bordado para a catedral um pálio m agnífico, para não term os de sair sem pre com o m esm o, com o se fôssem os, em vez de valladolid, um a aldeia pelintra, dessas de por aí. Um gesto do regente interrom peu-lhe os subversivos pensam entos. Não foi necessário perceber as palavras, bastou o j ogo das reais m ãos, apontando, descendo, subindo, era claríssim o, o arquiduque queria falar com o cornaca. Acom panhado por

um dignitário m enor da corte, a subhro pareceu-lhe que estava sonhando um sonho j á sonhado, quando, no im undo cercado de belém , foi conduzido a um hom em de barbas com pridas que era o rei de portugal, j oão terceiro. Aquele senhor que agora o m andou cham ar não usa barba, tem a cara perfeitam ente escanhoada, e é, sem favor, um a bela figura de hom em . A seu lado está sentada a form osíssim a esposa, a arquiduquesa m aria, em cuj os rosto e corpo a beleza não irá durar m uito porque parirá nem m ais nem m enos que dezasseis vezes, dez varões e seis fêm eas.

Um a barbaridade. Subhro está parado diante do arquiduque, e aguarda as perguntas. Que nom e é o teu, foi, com o era m ais do que previsível, a prim eira delas, O m eu nom e é subhro, m eu senhor, Sub, quê, Subhro, m eu senhor, é esse o m eu nom e, E significa algum a coisa, esse teu nom e, Significa branco, m eu senhor, Em que língua, Em bengali, m eu senhor, um a das línguas da índia.

O arquiduque ficou calado durante alguns segundos, depois perguntou, És natural da índia, Sim , m eu senhor, fui para portugal com o elefante, há dois anos, Gostas do teu nom e, Não o escolhi, foi o nom e que m e deram , m eu senhor, Escolherias outro, se pudesses, Não sei, m eu senhor, nunca pensei em tal, Que dirias tu se eu te fizesse m udar de nom e, Vossa alteza haveria de ter um a razão, Tenho-a. Subhro não respondeu, dem asiado sabia que não é perm itido dirigir perguntas aos reis, esse será o m otivo por que sem pre foi difícil, e às vezes m esm o im possível, arrancar-lhes um a resposta às dúvidas e às ralações dos seus súbditos. Então o arquiduque m axim iliano disse, O teu nom e é custoso de pronunciar, Já m o têm dito, m eu senhor, Tenho a certeza de que em viena ninguém o irá entender, O m al será m eu, m eu senhor, Mas esse m al tem rem édio, passarás a cham ar-te fritz, Fritz, repetiu com voz dorida subhro, Sim , é um nom e fácil de reter, além disso há j á um a quantidade enorm e de fritz na aústria, tu serás m ais um , m as o único com um elefante, Se vossa alteza m o perm ite, eu preferiria continuar com o m eu nom e de sem pre, Já decidi, e ficas avisado de que m e enfadarei contigo se voltares a pedir-m o, m ete na tua cabeça que o teu nom e é fritz e nenhum outro, Sim , m eu senhor. Então o arquiduque, levantando-se do sum ptuoso assento que ocupava, disse em alta e sonora voz, Atenção, este hom em acaba de aceitar o nom e de fritz que lhe dei, isso e m ais a responsabilidade de ser ele o cuidador do elefante solim ão levam -m e a determ inar que por todos vós sej a tratado com consideração e respeito, sob pena, em caso de desacato, de sofrerem os responsáveis as consequências do m eu desagrado. O aviso não caiu bem nos espíritos, houve de tudo no brevíssim o m urm úrio que se seguiu, acatam ento disciplinado, ironia benevolente, irritação ofendida, im agine-se, ter de guardar respeito a um cornaca, a um dom ador, a um hom em que fede a anim ais selvagens, com o se fosse um a prim eira figura no reino, o que vale é que em pouco tem po lhe passará ao arquiduque o capricho. Diga-se, no entanto, por am or da verdade, que um outro m urm úrio não tardou a ouvir-se, um em que não se percebiam sentim entos hostis ou contraditórios, porque foi de pura adm iração, quando o elefante levantou na trom ba e em um dos dentes o cornaca e o depôs na sua am pla nuca, espaçosa com o um a eira. Então o cornaca disse, Éram os subhro e salom ão, agora serem os fritz e solim ão. Não se dirigia a ninguém em particular, dizia-o a si próprio, sabendo que estes nom es nada significam , m esm o tendo eles vindo ocupar o lugar de outros que, sim , significavam . Nasci para ser subhro, e não fritz, pensou. Guiou os passos de solim ão para o recinto que lhe havia sido consignado, um pátio do palácio que, apesar de interior, tinha fácil com unicação para fora, e ali o deixou com as suas forragens e a sua dorna de água, além da com panhia dos dois aj udantes que de lisboa tinham vindo. Subhro, ou fritz, vai ser difícil que nos habituem os, necessita falar com o com andante, o nosso, que o dos

couraceiros austríacos não voltou a aparecer, deve estar a penitenciar-se pela péssim a figura que foi fazer em figueira de castelo rodrigo. Ainda não será para despedir-se, os lusíadas só partem am anhã, subhro apenas quer conversar um pouco sobre a vida que o espera, anunciar que lhes m udaram os nom es, a ele e ao elefante. E desej ar-lhe, e aos seus soldados, boa viagem de regresso, enfim , adeus até nunca m ais. Os m ilitares estão acam pados a pouca distância da cidade, num lugar arborizado, com um arroio de águas claras passando, onde a m aior parte deles j á se banhou. O com andante foi ao encontro de subhro e, achando-o com cara de caso, perguntou, Aconteceu algum a coisa, Mudaram -nos os nom es, agora sou fritz, e salom ão passou a ser solim ão, Quem fez isso, Fê-lo quem podia, o arquiduque, E porquê, Ele o saberá, no m eu caso porque subhro lhe parece difícil de pronunciar, Enquanto não nos habituam os, Sim , m as ele não tem ninguém que lhe diga que deveria habituar-se. Houve um silêncio contrafeito, que o com andante rom peu o m elhor que pôde, Partim os am anhã, disse, Já sabia, respondeu subhro, virei aqui para m e despedir, Voltarem os a ver-nos, perguntou o com andante, O m ais certo é que não, viena está longe de lisboa, Tenho pena, agora que j á éram os am igos, Am igo é um a palavra grande, senhor, eu não sou m ais que um cornaca a quem acabaram de m udar o nom e, E eu um capitão de cavalaria dentro de quem algo tam bém m udou durante esta viagem , Suponho que por ter visto lobos pela prim eira vez, Vi um há m uitos anos, quando era pequeno, j á m al m e lem bro, A experiência dos lobos deve m udar m uito as pessoas, Não creio que a causa tenham sido eles, Então o elefante, É m ais provável, se bem que, podendo com preender m ais ou m enos um cão ou um gato, não consigo entender um elefante, Os cães e os gatos vivem ao nosso lado, isso facilita m uito a relação, m esm o que nos equivoquem os, a contínua convivência resolverá a questão, j á eles, não sabem os se se equivocam e disso têm consciência, E o elefante, O elefante, j á lho disse no outro dia, é outra coisa, em um elefante há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persistirá em ignorar tudo, Com o sabes tu isso, Descobri que sou tal qual o elefante, um a parte de m im aprende, a outra ignora o que a outra parte aprendeu, e tanto m ais vai ignorando quanto m ais tem po vai vivendo, Não sou capaz de te seguir nesses j ogos de palavras, Não sou eu quem j oga com as palavras, são elas que j ogam com igo, Quando parte o arquiduque, Ouvi dizer que daqui a três dias, Vou sentir a tua falta, E eu a sua, disse subhro, ou fritz. O

com andante estendeu-lhe a m ão, subhro apertou-lha com pouca força, com o se não quisesse m agoá-lo, Vem o-nos am anhã, disse, Vem o-nos am anhã, repetiu o m ilitar. Viraram costas um ao outro e afastaram -se. Nenhum deles olhou para trás.

No dia seguinte, cedo, subhro voltou ao acam pam ento, levando consigo o elefante.

Acom panhavam -no os dois aj udantes, que subiram im ediatam ente para o carro de bois, onde pensavam desfrutar do m ais agradável dos passeios. Os soldados esperavam a ordem de m ontar.

O com andante aproxim ou-se do cornaca e disse, Aqui nos separam os, Desej o-lhes boa viagem , capitão, a si e aos seus hom ens, Tu e o salom ão ainda têm m uito cam inho para andar daqui até viena, calculo que j á será inverno quando lá chegarem , O salom ão leva-m e às costas, não m e cansarei m uito, Tanto quanto j ulgo saber, aquelas terras são de frio, neve e gelo, m oléstias que nunca tiveste de sofrer em lisboa, Frio, algum , há que reconhecer, senhor, Lisboa é a cidade m ais fria do m undo, disse o com andante sorrindo, o que lhe vale é estar onde está. Subhro sorriu tam bém , a conversação era interessante, podia-se ficar ali o resto da m anhã e a tarde, partir só no dia seguinte, que diferença ia fazer, pergunto eu, chegar a casa vinte e quatro horas m ais

tarde. Foi neste m om ento que o com andante resolveu fazer o seu discurso de adeus, Soldados, subhro veio despedir-se de nós e trouxe, para nossa alegria, o elefante cuj a segurança tivem os a responsabilidade de proteger durante as últim as sem anas. Ter partilhado as horas com este hom em foi um a das m ais felizes experiências da m inha vida, talvez porque a índia saiba algum as coisas que nós desconhecem os. Não tenho a certeza de ter chegado a conhecê-lo bem , m as tenho-a, sim , de que ele e eu poderíam os ser, m ais do que sim ples am igos, irm ãos. Viena está longe, lisboa m ais longe ainda, é provável que não nos vej am os nunca m ais, e talvez sej a m elhor assim , que guardem os a recordação destes dias de tal m aneira que se possa dizer que tam bém nós, estes m odestos soldados portugueses, tem os m em ória de elefante. O capitão ainda continuou a falar uns cinco m inutos m ais, m as o essencial ficara j á dito. Enquanto ele falava, subhro pensava no que faria o elefante, se se lem braria de algo sim ilar ao que havia sido a despedida dos carregadores, m as a verdade é que as repetições decepcionam quase sem pre, perdem a graça, nota-se que lhes falta espontaneidade, e, se a espontaneidade falta, falta tudo. Melhor seria que sim plesm ente nos separássem os, pensou o cornaca. O elefante, porém , não estava de acordo.

Quando o discurso term inou e o capitão se aproxim ou de subhro para o abraçar, salom ão deu dois passos em frente e tocou com o extrem o da trom ba, essa espécie de lábio palpitante, o om bro do m ilitar. A despedida dos carregadores havia sido, digam os, m ais cenográfica, m as esta, talvez porque os soldados estej am habituados a outro tipo de adeuses, tipo Honrai a pátria, que a pátria vos contem pla, tocou-lhes as cordas sensíveis, e não foi um nem dois que tiveram de enxugar, envergonhados, as lágrim as às m angas do casaco ou da j aqueta, ou com o quer que se cham asse na época a essa peça do vestuário m ilitar. O cornaca acom panhou salom ão na revista, dando-se tam bém ele por despedido. Não era hom em para perm itir que se lhe desm andasse o coração em público, m esm o quando, com o agora, lágrim as invisíveis lhe deslizam pela cara abaixo. A coluna pôs-se em m ovim ento, levando o carro de bois à frente, acabou-se, não os voltarem os a ver neste teatro, a vida é assim , os atores aparecem , logo saem do palco, porque o próprio, o com um , o que sem pre virá a acontecer m ais tarde ou m ais cedo, é debitarem as falas que aprenderam e sum irem -se pela porta do fundo, a que dá para o j ardim . Adiante o cam inho faz um a curva, os soldados detêm os cavalos para levantarem um braço e acenarem o últim o adeus. Subhro im ita-lhes o gesto e salom ão deixa sair da garganta o seu barrito m ais sentido, é tudo quanto se lhes perm ite fazer, este pano caído não se levantará m ais.

O terceiro dia am anheceu chuvoso, o que aborreceu especialm ente o arquiduque, porquanto, não lhe faltando pessoal para organizar da m aneira m ais funcional e efetiva a caravana, tinha feito questão de ser ele a decidir em que lugar do cortej o deveria m archar o elefante. Era sim ples, exatam ente à frente do coche que o transportaria a ele e à arquiduquesa. Um privado de confiança rogou-lhe que atendesse ao facto conhecido de que os elefantes, tal com o, por exem plo, os cavalos, defecam e urinam em m ovim ento, O espetáculo iria ofender inevitavelm ente a sensibilidade de suas altezas, antecipou o privado fazendo cara da m ais profunda inquietação cívica, ao que o arquiduque respondeu que não se preocupasse com o assunto, sem pre haveria gente na caravana para lim par o cam inho de cada vez que se produzissem tais deposições naturais. O m au era a chuva. Ao elefante, historicam ente acostum ado à m onção, tanto assim que tinha dado pela falta dela nos últim os dois anos, não se lhe alterariam nem os hum ores nem o ritm o dos passos, o problem a, realm ente a requerer solução,

era o arquiduque. Com preende-se. Atravessar m eia espanha atrás de um elefante para o qual havia sido bordada aquela que talvez fosse a m ais bela gualdrapa do m undo e não poder usá-la porque a chuva a danificaria seriam ente a ponto de não servir nem para um pálio de aldeia, seria a pior das decepções do seu arquiducado. Ora, m axim iliano não daria um passo enquanto solim ão não estivesse devidam ente tapado, com os enfeites da gualdrapa refulgindo ao sol. Eis portanto o que ele disse, Esta chuva terá de parar algum a vez, vam os esperar que escam pe. E

assim foi. Durante duas horas a chuva não cessou, m as ao cabo desse tem po o céu com eçou a clarear, nuvens havia-as, m as m enos escuras, e de repente deixou de chover, o ar tornou-se m ais leve, transparente à prim eira luz do sol, enfim descoberto. De tão contente que ficou, o arquiduque perm itiu-se dar um a palm ada intencionalm ente brej eira na coxa da arquiduquesa.

Retom ada a com postura, m andou vir um aj udante de cam po a quem deu ordem de galopar até à cabeça da coluna, onde brilhavam os couraceiros, Que arranquem im ediatam ente, disse, tem os de recuperar o tem po perdido. Neste entretanto, os criados responsáveis, com grande esforço, j á tinham trazido a im ensa gualdrapa e, seguindo as indicações de fritz, estenderam -na sobre o poderoso dorso de solim ão. Vestido com um traj e que em qualidade de tecidos e luxo de confecção deixava a perder de vista o que havia trazido de lisboa e que tanto afetara o equilíbrio do erário público local, fritz foi içado para o cachaço de solim ão, donde, para a frente e para trás, podia desfrutar da im ponente visão da caravana em toda a sua extensão. Acim a dele ninguém viaj ava ali, nem sequer o arquiduque de áustria com todo o seu poder. Capaz de m udar os nom es a um hom em e a um elefante, m as com os olhos à altura da m ais com um das pessoas, era levado dentro de um coche onde os perfum es não conseguiam disfarçar de todo os m aus cheiros exteriores.

É natural que se queira saber se toda esta caravana vai a cam inho de viena. Esclareçam os j á que não. Um a boa parte dos que vão viaj ando aqui em grande estado não irá m ais longe que o porto de m ar da vila de rosas, j unto à fronteira francesa. Aí se despedirão dos arquiduques, assistirão provavelm ente ao em barque, e sobretudo observarão com preocupação que consequências terá o súbito carregam ento das quatro toneladas brutas de solim ão, se o tom badilho do barco aguentará tanto peso, enfim , se não irão regressar a valladolid com um a história de naufrágio para contar. Os m ais agoireiros preveem danos causados à navegação e à segurança do barco pelo elefante, assustado com o balancear da em barcação, inseguro, incapaz de m anter-se em equilíbrio nas pernas, Não quero nem pensar, diziam com pungidos aos seus m ais próxim os, lisonj eando-se a si m esm os com a possibilidade de virem a poder dizer, Eu bem avisei. Esquecem os em pata-festas que este elefante veio de longe, da índia rem ota, desafiando im pávido as torm entas do índico e do atlântico, e ei-lo aqui, firm e, decidido, com o se não tivesse feito outra coisa na vida senão navegar. Por enquanto, porém , só se trata de andar. E quanto.

Um a pessoa olha o m apa e fica logo cansada. E, no entanto, parece que tudo ali está perto, por assim dizer, ao alcance da m ão. A explicação, evidentem ente, encontra-se na escala. É fácil de aceitar que um centím etro no m apa equivalha a vinte quilóm etros na realidade, m as o que não costum am os pensar é que nós próprios sofrem os na operação um a redução dim ensional equivalente, por isso é que, sendo j á tão m ínim a coisa no m undo, o som os infinitam ente m enos nos m apas. Seria interessante saber, por exem plo, quanto m ediria um pé hum ano àquela m esm a escala. Ou a pata de um elefante. Ou a com itiva toda do arquiduque m axim iliano de áustria.

Não passaram m ais de dois dias e o cortej o j á perdeu um a boa parte do seu esplendor. A persistente chuva que caiu na m anhã da partida teve um a ação nefasta nos panej am entos dos coches e carruagens, m as tam bém nas indum entárias daqueles que, por dever do cargo, tiveram de arrostar com a intem périe por m ais ou m enos tem po. Agora a caravana avança por um a região onde parece não ter chovido desde o princípio do m undo. A poeira com eça a levantar-se logo à passagem dos couraceiros, a quem a chuva tam bém j á não havia poupado, pois um a couraça não é um a caixa herm ética, as partes que a com põem nem sem pre se aj ustam bem um as às outras e as ligações feitas por correias deixam folgas por onde as espadas e as lanças podem penetrar quase sem obstáculo, afinal, todo aquele esplendor, orgulhosam ente exibido em figueira de castelo rodrigo, não serve de m uito na vida prática. Depois vem um a fila enorm e de carros, galeras, coches e carruagens de todos os tipos e finalidades, as carroças de carga, os esquadrões da criadagem , e tudo isto levanta pó que, por falta de vento, ficará suspenso no ar até que a tarde se feche. Desta vez não se cum priu o preceito de que a velocidade do m ais lento determ inará a velocidade geral. Os dois carros de bois que trazem a forragem e a água para o elefante foram relegados para o couce do cortej o, o que significa que de vez em quando é necessário m andar parar tudo para que o conj unto possa reconstituir-se. O que aborrece e irrita toda a gente, a com eçar pelo arquiduque, que j á m al disfarça a sua contrariedade, é a sesta obrigatória de solim ão, esse descanso de que m ais ninguém beneficia a não ser ele, m as de que, afinal, todos acabam por aproveitar-se, em bora insistam nas suas críticas, dizendo, Assim nunca m ais chegarem os. A prim eira vez que a caravana se deteve e com eçou a correr a notícia de que a causa era a necessidade de descanso de solim ão, o arquiduque m andou cham ar fritz para perguntar-lhe quem m andava ali, a pergunta não foi exatam ente assim , um arquiduque de áustria nunca se rebaixaria a adm itir que pudesse haver quem m andasse m ais que ele onde quer que estivesse, m as, tal com o a deixám os form ulada, num a expressão de tom decididam ente popular, a única resposta consentânea com a situação deveria ser m eter-se fritz, de vergonha, pelo chão abaixo. Tivem os ocasião de verificar, porém , ao longo destes dias, que subhro não é hom em para se assustar facilm ente, e agora, neste seu novo avatar, é difícil, se não im possível, im aginá-lo calado por um ataque de tim idez, com o rabo entre as pernas, dizendo, Dê-m e as suas ordens, m eu senhor. A resposta dele foi exem plar, Se o arquiduque de áustria não fez delegação da sua autoridade, o m ando absoluto pertence-lhe por direito, tradição e reconhecim ento dos seus súbditos naturais ou adquiridos, com o é o m eu caso, Falas com o um letrado, Sou sim plesm ente um cornaca que fez algum as leituras na vida, Que se passa com solim ão, que é isso de que tem de descansar durante a prim eira parte da tarde, São costum es da índia, m eu senhor, Estam os em espanha, não na índia, Se vossa alteza conhecesse os elefantes com o eu tenho a pretensão de conhecer, saberia que para um elefante indiano, dos africanos não falo, não são da m inha com petência, qualquer lugar em que se encontre é índia, um a índia que, sej a o que for que suceda, sem pre perm anecerá intacta dentro dele, Tudo isso é m uito bonito, m as eu tenho um a longa viagem por diante e esse elefante faz-m e perder três ou quatro horas por dia, a partir de hoj e solim ão descansará um a hora, e basta, Sinto-m e um m iserável por não poder estar de acordo com vossa alteza, m as, creia em m im e na m inha experiência, não bastará, Verem os. A ordem foi dada, m as cancelada logo ao segundo dia. É preciso ser-se lógico, dizia fritz, assim com o não estou a contar que alguém tenha a ideia de reduzir a um terço a quantidade de forragem e água de que solim ão necessita para viver, tam bém não posso consentir sem protesto

que se lhe roube a m aior parte do seu j usto descanso, sem o qual tam bém não poderia sobreviver ao esforço titânico que todos os dias se lhe exige, é certo que um elefante na selva indiana anda m uitos quilóm etros desde a m anhã até ao anoitecer, m as está na terra que é sua, não num descam pado com o este, sem um a som bra a que possa acolher-se um gato. Não nos esquecem os de que quando fritz se cham ava subhro não levantou qualquer obj eção à redução do repouso de salom ão de quatro para duas horas, m as esses tem pos eram outros, o com andante da cavalaria portuguesa era um hom em com quem se podia falar, um am igo, não um arquiduque autoritário com o este, que, além de ser genro de carlos quinto, não se vê que outros m éritos possua. Fritz estava a ser inj usto, ao m enos deveria ser obrigado a reconhecer que nunca ninguém havia tratado a solim ão com o este arquiduque de aústria de repente tão m al estim ado. A gualdrapa, por exem plo. Nem sequer na índia os elefantes pertencentes aos raj ás eram m im ados assim . Fosse com o fosse, o arquiduque não estava contente, havia dem asiada rebelião no ar que se respirava.

Castigar a fritz pelos seus atrevim entos dialéticos estaria m ais do que j ustificado, m as o arquiduque sabia perfeitam ente que não iria encontrar em viena outro cornaca. E se, por m ilagre, existisse essa rara avis, seria indispensável um período de com penetração m útua entre o elefante e o novo tratador, sem o que haveria que tem er o pior do com portam ento de um anim al daquela corpulência, cuj o cérebro, para qualquer ser hum ano, incluindo os arquiduques, não passava de um a aposta em que as esperanças de ganhar se apresentavam com o praticam ente nulas. O elefante, em realidade, era um ser outro. Tão outro que nada tinha que ver com este m undo, governava-se por regras que não se inseriam em nenhum código m oral conhecido, a ponto de, com o logo se viu, lhe ser indiferente viaj ar à frente ou atrás do coche arquiducal. Na verdade, os arquiduques j á não podiam suportar m ais o espetáculo repetido das dej eções de solim ão, além de terem de receber nos seus delicados narizes, habituados a outros arom as, os fétidos odores que delas se desprendiam . No fundo, a quem o arquiduque queria castigar era a fritz, agora relegado para um a posição secundária depois de durante uns dias ter aparecido aos olhos de toda a gente com o um a das grandes figuras da com itiva. Viaj a à m esm a altura que antes, m as do coche do arquiduque não poderá ver nunca m ais que a parte traseira. Fritz suspeita que está a ser castigado, m as não pode pedir j ustiça, porque a m esm a j ustiça, ao determ inar a m udança de sítio do elefante na caravana, não fazia m ais que im pedir as m oléstias sensoriais por ele causadas ao arquiduque m axim iliano e a sua esposa m aria, filha de carlos quinto. Resolvido este problem a, o outro resolveu-se tam bém , e foi nessa m esm a noite. Anim ada pela relegação do elefante à qualidade de m ero seguidor, m aria pediu ao m arido que se livrassem daquela gualdrapa, Creio que levá-la às costas é um a punição que o pobre solim ão não m erece, e além disso, Além disso, quê, perguntou o arquiduque, Com aquela espécie de param ento de igrej a às costas, um anim al tão grande, tão im ponente, passado o prim eiro efeito da surpresa, torna-se rapidam ente ridículo, grotesco, e pior ainda irá sendo quanto m ais olharm os para ele, A ideia foi m inha, disse o arquiduque, m as penso que tens razão, vou m andar a gualdrapa ao bispo de valladolid, ele lhe encontrará destino, provavelm ente, se em espanha ficássem os, voltaríam os a ver, baj o palio, um general dos m ais bem vistos pela santa m adre igrej a.

Are sens