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cornaca desistiu de convencê-lo, Foi o m elhor que eu podia fazer, se as contas falsas dele prevalecerem , isso não alterará a realidade dos quilóm etros que realm ente tiverm os percorrido, não discutas com quem m anda, subhro, aprende a viver.

Havia acabado de acordar, ainda com a im pressão de ter tido um a dor aguda no ventre enquanto dorm ia, m as não lhe parecia que ela se fosse repetir, porém sentia o interior suspeitosam ente alvoroçado, uns borborigm os surdos nos intestinos, e, de repente, a dor regressou com o um a punhalada. Levantou-se com o pôde, fez sinal à sentinela m ais próxim a de que ia ali e j á vinha, e com eçou a subir, em direção a um renque basto de árvores, a pendente suave em que tinham acam pado, tão suave que era com o se estivessem estendidos num a cam a com a parte da cabeceira ligeiram ente levantada. Chegou no últim o segundo. Desviem os a vista enquanto ele se livra da roupa, que, m ilagrosam ente, ainda não suj ou, e esperem os que levante a cabeça para ver o que nós j á vim os, aquela aldeia banhada pelo m aravilhoso luar de agosto que m odelava todos os relevos, am aciava as próprias som bras que havia criado, e ao m esm o tem po fazia resplandecer as zonas que ilum inava. A voz que estávam os aguardando m anifestou-se finalm ente, Um a aldeia, um a aldeia. Provavelm ente por virem cansados, ninguém tivera a lem brança de subir a pendente para ver o que haveria do outro lado. É certo que é sem pre tem po de ver um a aldeia, se não for um a é outra, m as é duvidoso que logo à prim eira que se encontra tenham os à nossa espera um a potente j unta de bois, capaz de endireitar a torre de pisa com um só puxão. Aliviado da m aior, o cornaca lim pou-se o m elhor que pôde com as ervas que cresciam ao redor, m uita sorte teve de não haver por ali sem pre-noivas, tam bém cham adas sanguinárias, que essas o fariam saltar com o se sofresse da dança de são vito, tais seriam os ardores e os picores que lhe atacariam a delicada m ucosa inferior. Um a nuvem grossa tapou a lua, e a aldeia tornou-se de súbito negra, sum iu-se com o um sonho na obscuridade circundante. Não im portava, o sol rom peria à sua hora e m ostraria o cam inho para o estábulo, onde os bois, agora rum inando, tinham pressentim entos de m udança de vida. Subhro atravessou o espesso renque de árvores e

regressou ao seu lugar na cam arata com um . Em cam inho, pensou que se o com andante estivesse acordado lhe daria, para falar em term os planetários, a m aior satisfação do m undo. E a glória de ter descoberto a aldeia seria m inha, m urm urou. Porque não valia a pena alim entar ilusões.

Durante o que ainda faltava passar da noite outros hom ens podiam ter necessidade de dar de corpo e o único sítio onde o poderiam fazer com discrição era no m eio daquelas árvores, m as, supondo que tal não viesse a suceder, então será só esperar que am anheça para assistirm os ao desfile de quantos tiveram que obedecer aos im perativos dos intestinos e da bexiga. Isto, no fundo, são anim ais, não há que estranhar. Mal conform ado, o cornaca resolveu fazer um desvio para o lado onde o com andante dorm ia, quem sabe, as pessoas às vezes têm insónias, despertam angustiadas porque no seu sonho acreditavam que estavam m ortas, ou então é um percevej o, dos tantos que se escondem nas bainhas das m antas, que veio sugar o sangue do adorm ecido. Fica a inform ação de que o percevej o foi o inconsciente inventor das transfusões. Baldada esperança, o com andante dorm ia, e não só dorm ia, com o roncava. Um a sentinela veio perguntar ao cornaca o que é que queria dali e subhro respondeu que tinha um recado para dar ao com andante, m as, visto ele estar a dorm ir, ia voltar para a sua cam a, A estas horas não se dão recados a ninguém , espera-se que am anheça, Era im portante, respondeu o cornaca, m as, com o diz a filosofia do elefante, se não pode ser, não pode ser, Se quiseres dar-m e o recado a m im , eu inform o-o assim que ele acordar. O cornaca deitou contas às probabilidades favoráveis e achou que valia a pena apostar nesta única carta, a de que o com andante j á tivesse sido inform ado pela sentinela da existência da aldeia, quando, na prim eira luz da m anhã, se ouvisse o grito, Alvíssaras, alvíssaras, há aqui um a aldeia. A dura experiência da vida tem -nos m ostrado que não é aconselhável confiar dem asiado na natureza hum ana, em geral. A partir de agora, ficám os a saber que, pelo m enos para guardar segredos, tam bém não nos devem os fiar da arm a de cavalaria. Foi o caso que antes que o cornaca tivesse regressado ao sono, j á a outra sentinela estava a par da notícia, e logo os soldados que dorm iam m ais perto. A excitação foi enorm e, um deles chegou a propor que fizessem um reconhecim ento à aldeia a fim de colher inform ações presenciais que robustecessem , pela autenticidade da respectiva fonte, a estratégia a definir na m anhã seguinte.

O tem or de que o com andante despertasse, se levantasse do catre e não visse nenhum dos soldados, ou, pior ainda, se visse algum e não os outros, fê-los desistir da prom etedora aventura.

As horas passaram , um a pálida claridade a oriente com eçou a desenhar a curva da porta por onde o sol haveria de entrar, ao m esm o tem po que no lado oposto a lua se deixava cair suavem ente nos braços de outra noite. Estávam os nós nisto, atrasando o m om ento da revelação, duvidando ainda se não haveria m odo de encontrar um a solução m ais dram ática ou, o que seria ouro sobre azul, com m ais potência sim bólica, quando se ouviu o fatal grito, Há aqui um a aldeia.

Absortos nas nossas lucubrações, não tínham os dado por que um hom em se havia levantado e subido a pendente, m as agora, sim , víam o-lo aparecer entre as árvores, ouvíam o-lo repetir o triunfal anúncio, em bora sem pedir alvíssaras, com o havíam os im aginado, Há aqui um a aldeia.

Era o com andante. O destino, quando lhe dá para aí, é capaz de escrever por linhas tortas e torcidas tão bem com o deus, ou m elhor ainda. Sentado na sua m anta, subhro pensou, Antes assim que pior, a ele sem pre poderia dizer que se tinha levantado de noite e havia sido o prim eiro a ver a aldeia. Arriscar-se-á a que o com andante lhe pergunte com voz sorna, com o sabem os que haverá de perguntar, E testem unhas, tens, ao que ele apenas poderá responder, m etendo, m etaforicam ente falando, o rabo entre as pernas, Negativo, m eu com andante, estava sozinho,

Deves ter sonhado, Tanto não sonhei que dei a inform ação a um dos soldados que estavam de sentinela para quando o m eu com andante despertasse, Nenhum soldado falou com igo, Mas o m eu com andante pode falar com ele, eu digo-lhe qual foi. O com andante reagiu m al à proposta, Se eu não precisasse de ti para conduzir o elefante, despachava-te j á para lisboa, im agina só a situação em que te ias colocar, seria a tua palavra contra a m inha, tira daí o sentido, a não ser que queiras que te deportem para a índia. Resolvida a questão de saber quem havia sido, oficialm ente, o prim eiro a descobrir a aldeia, o com andante dispunha-se a virar as costas ao cornaca, quando este disse, O principal não é isso, o principal é saber se haverá ali um a j unta de bois capaz, Não tardarem os a sabê-lo, tu cuida dos teus assuntos, que eu cá m e encarrego do resto, Vossa senhoria não quer que eu vá à aldeia, perguntou subhro, Não, não quero, bastam -m e o sargento, para acabar de com por o grupo, e o boieiro. Subhro pensou que, ao m enos por um a vez, o com andante tinha razão. Se alguém , por direito natural, tinha ali lugar, era o boieiro. O

com andante j á lá ia, dando instruções a um lado e a outro, ao sargento, ao pessoal da intendência, que era sua intenção pôr a trabalhar para abastecer de com ida suficiente aos hom ens das forças, que em nada de tem po as perderiam se continuassem a alim entar-se de figos secos e pão bolorento, Quem desenhou a estratégia para esta viagem bem pode lim par as m ãos à parede, os m anda-m ais da corte devem pensar que a gente pode viver só do ar que respira, m urm urou entredentes. O acam pam ento j á estava levantado, enrolavam -se m antas, ordenavam -se ferram entas, que as havia em quantidade, a m aior parte delas provavelm ente nunca teriam uso, salvo se o elefante viesse a cair por um barranco e fosse preciso tirá-lo de lá com um cabrestante. A ideia do com andante era pôr-se em m archa quando, com j unta de bois ou sem j unta de bois, regressasse da aldeia. O sol j á se tinha despegado da linha do horizonte, era dia claro, apenas um as poucas nuvens boiando no céu, oxalá não venha a aquecer dem asiado, derretem -se os m úsculos, às vezes até parece que o suor se vai pôr a ferver na pele. O

com andante cham ou o boieiro, explicou-lhe ao que iam e recom endou-lhe que observasse bem os anim ais, se os houvesse, porque deles dependeria a rapidez da expedição e um breve regresso a lisboa. O boieiro disse que sim senhor duas vezes, em bora a ele pouco lhe im portasse, não vivia em lisboa, m as num a aldeia não longe cham ada m em m artins, ou algo deste j eito. Com o o boieiro não sabia cavalgar, um caso flagrante, com o se vê, das consequências negativas de um a excessiva especialização profissional, içou-se com dificuldade para a garupa do cavalo do sargento e lá foi, rezando, num a voz que ele próprio m al conseguia ouvir, um interm inável padre-nosso, oração da sua especial estim a por aquilo que nela se diz de perdoar as nossas dívidas. O

m al, que em tudo está, e às vezes até deixa o rabo de fora para que não tenham os ilusões sobre a natureza do bicho, vem logo na frase seguinte, quando se diz que é obrigação nossa de cristãos perdoar aos nossos devedores. O pé não j oga com a chinela, ou um a coisa ou outra, resm ungava o boieiro, se uns perdoam e outros não pagam o que devem onde está o benefício do negócio, perguntava-se. Entraram na prim eira rua da aldeia que encontraram , em bora fosse sinal de espírito delirante cham ar àquilo rua, um cam inho que era o m ais parecido que havia no tem po com um a m ontanha-russa, e à prim eira pessoa que encontraram o com andante perguntou com o se cham ava e onde m orava o principal lavrador do lugar. O hom em , um velho labrego com a enxada às costas, conhecia as respostas, O principal é o senhor conde, m as não está cá, O senhor conde, repetiu o com andante, ligeiram ente inquieto, Sim , saiba vossa senhoria que três quartas partes destas terras, ou m ais, lhe pertencem , Mas disseste que ele não está em casa, Fale vossa

senhoria com o feitor, o feitor é quem governa o barco, Andaste no m ar, Saiba vossa senhoria que sim , m as aquilo, entre afogados e afligidos de escorbutos e outras m isérias, era um a tal m ortandade que resolvi vir m orrer em terra, E onde posso encontrar o feitor, Se não está j á no cam po, encontra-o na quinta do palácio, Há um palácio, perguntou o com andante, olhando em redor, Não é um palácio daqueles altos e com torres, tem só o térreo e um andar, m as dizem que há lá m ais riquezas que em todos os palácios e palacetes de lisboa, Podes guiar-nos até lá, perguntou o com andante, Para isso m e trouxeram aqui os m eus passos, O conde é conde de quê.

O velho disse-lho, e o com andante deu um assobio de adm iração, Conheço-o, disse, o que não sabia era que tinha terras para estes lados, E dizem que não é só aqui.

A aldeia era um a aldeia com o j á não se veem nos dias de hoj e, se estivéssem os no inverno seria com o um a pocilga escorrendo água e salpicando lam a por todos os lados, agora sugere outra coisa, os restos petrificados de um a civilização antiga, cobertos de pó, com o m ais cedo ou m ais tarde acontece aos m useus ao ar livre. Desem bocaram num a praça e ali estava o palácio.

O velho foi tocar a sineta de um a porta de serviço, ao cabo de um m inuto apareceu alguém a abrir e o velho entrou. As coisas não estavam a passar-se com o o com andante havia im aginado, m as talvez fosse m elhor assim . Encarregava-se o velho do prim eiro parlam ento e depois ele se encarregaria do m iolo do assunto. Passados uns bons quinze m inutos apareceu à porta um hom em gordo, de grandes bigodes, que lhe pendiam com o o lam baz de um barco. O com andante guiou o cavalo ao encontro dele e foi ainda de cim a do cavalo, para que ficassem bem claras as diferenças sociais, que disse as prim eiras palavras, És o feitor do senhor conde, Para servir a vossa senhoria. O com andante desm ontou e, dando prova de um a astúcia pouco com um , aproveitou o que vinha na bandej a, Neste caso, servir-m e a m im será o m esm o que servir ao senhor conde e a sua alteza o rei, Vossa senhoria fará o favor de m e explicar o que desej a, em tudo que não vá contra a salvação da m inha alm a e contra os interesses do m eu am o que m e com prom eti a defender, sou o seu hom em , Por m im não serão ofendidos os interesses do teu am o nem se perderá a tua alm a, e agora vam os ao caso que aqui m e trouxe. Fez um a pausa, um rápido sinal ao boieiro para se aproxim ar, e com eçou, Sou oficial de cavalaria de sua alteza, que m e confiou o encargo de levar a valladolid, espanha, um elefante para ser entregue ao arquiduque m axim iliano de áustria que ali está aposentado, no palácio do im perador carlos quinto, seu sogro. Ao feitor esbugalharam -se-lhe os olhos, o queixo caiu-lhe sobre a papada, efeitos anim adores que o com andante registou m entalm ente. E continuou, Trago na caravana um carro de bois que transporta os fardos de forragens de que o elefante se alim enta e a dorna de água em que m ata a sede, o carro é puxado por um a j unta de bois que até agora têm dado boa conta do recado, m as que eu m uito m e tem o não serem suficientes quando tiverem de se enfrentar com as grandes ladeiras das m ontanhas. O feitor assentiu com a cabeça, m as não proferiu palavra. O com andante respirou fundo, saltou um as quantas frases de adorno que havia estado alinhavando na cabeça e foi direito ao fim , Preciso de outra j unta de bois para a atrelar ao carro e pensei que poderia vir encontrá-la aqui, O senhor conde não está, só ele é que. O

com andante cortou-lhe a frase, Parece que não ouviste que estou aqui em nom e do rei, não sou eu quem te está a pedir o em préstim o de um a j unta de bois por uns dias, m as sua alteza o rei de portugal, Ouvi, m eu senhor, ouvi, m as o m eu am o, Não está, j á sei, m as está o seu feitor que conhece os seus deveres para com a pátria, A pátria, senhor, Nunca a viste, perguntou o

com andante lançando-se num rapto lírico, vês aquelas nuvens que não sabem aonde vão, elas são a pátria, vês o sol que um as vezes está, outras não, ele é a pátria, vês aquele renque de árvores donde, com as calças na m ão, avistei a aldeia nesta m adrugada, elas são a pátria, portanto não podes negar-te nem opor dificuldades à m inha m issão, Se vossa senhoria o diz, Dou-te a m inha palavra de oficial de cavalaria, e agora basta de conversa, vam os à abegoaria ver os bois que lá tens. O feitor cofiou o bigode pingão com o se estivesse a consultá-lo, e finalm ente decidiu-se, a pátria acim a de tudo, m as, ainda tem eroso dos efeitos da sua cedência, perguntou ao oficial se lhe deixava um a garantia, ao que o com andante respondeu, Deixo-te um papel escrito de m eu punho e letra no qual assegurarei que a j unta de bois será por m im próprio devolvida à procedência tão cedo o elefante fique entregue ao arquiduque de áustria, não esperareis m ais que o tem po de ir de aqui a valladolid e de valladolid aqui, Vam os então à abegoaria, onde estão os bois de trabalho, disse o feitor, Este aqui é o m eu boieiro, entrará com igo, eu entendo m ais de cavalos e guerra, quando a há, disse o com andante. Na abegoaria havia oito bois. Tem os m ais quatro, disse o feitor, m as estão no cam po. A um sinal do com andante, o boieiro aproxim ou-se dos anim ais, exam inou-os atentam ente, um por um , fez levantar dois que estavam deitados, exam inou-os tam bém , e por fim declarou, Este e este, Boa escolha, são os m elhores, disse o feitor. O com andante sentiu um a onda de orgulho subir-lhe do plexo solar à garganta. Realm ente, cada gesto seu, cada passo que dava, cada decisão que tom ava, revelavam um estratego de prim eiríssim a água, m erecedor dos m ais altos reconhecim entos, um a pronta prom oção a coronel, para com eçar. O feitor, que havia saído, regressava com papel e pena, e ali m esm o foi exarado o com prom isso. Quando o feitor recebeu o docum ento, as m ãos trem iam -lhe de em oção, m as recuperou a serenidade ao ouvir dizer ao boieiro, Faltam os apeiros, Estão além , apontou o feitor. Não têm falhado neste relato considerações m ais ou m enos certeiras sobre a natureza hum ana, e a todas fom os fielm ente consignando e com entando segundo a respectiva pertinência e o hum or do m om ento. O que não esperávam os, francam ente, era vir um dia a registar um pensam ento tão generoso, tão excelso, tão sublim e, com o aquele que passou pela m ente do com andante com o fulgor de um relâm pago, isto é, que ao escudo de arm as do conde proprietário daqueles anim ais, em m em ória deste sucesso, deveriam ser apostos dois j ugos, ou cangas, com o tam bém se lhes cham a. Oxalá este voto se cum pra. Os bois j á estavam j ungidos, o boieiro j á os levava para fora da abegoaria, quando o feitor perguntou, E o elefante. Form ulada desta m aneira, tão rústica quanto direta, a pergunta podia ser sim plesm ente ignorada, m as o com andante pensou que devia a este hom em um favor e portanto foi um sentim ento parente da gratidão que o fez dizer, Está atrás daquelas árvores, onde passám os a noite, Nunca vi um elefante na m inha vida, disse o feitor com voz triste, com o se de ver um elefante dependesse a sua felicidade e a dos seus, Hom em , isso tem bom rem édio, vem conosco, Vá vossa senhoria andando, que eu aparelho a m ula e j á o alcanço. O com andante saiu para a praça, onde o esperava o sargento, e disse, Já tem os bois, Sim senhor, passaram por aqui, o boieiro parecia ter engolido um pau, de tão vaidoso que ia à cabeça deles, Vam os, disse o com andante m ontando, Sim senhor, disse o sargento m ontando tam bém . Alcançaram a vanguarda em pouco tem po, e aí se apresentou ao com andante um sério dilem a, ou galopar para o acam pam ento e anunciar a vitória às hostes reunidas, ou acom panhar a j unta e receber os aplausos em presença do prém io vivo do seu engenho. Precisou de cem m etros de intensa reflexão para encontrar a resposta ao problem a, um recurso a que, antecipando cinco séculos, poderíam os cham ar terceira via, isto é,

m andar o sargento à frente com a notícia a fim de predispor os ânim os à m ais entusiástica das recepções. Assim se faria. Não tinham andado m uito quando ouviram o tosco tropear da m ula, a quem nunca se pedira um trote, e m uito m enos um galope. O com andante parou por cortesia, o m esm o fez o sargento sem saber porquê, só o boieiro e os bois, com o se pertencessem a outro m undo e se regulassem por diferentes leis, continuaram com o passo de sem pre, isto é, a passo.

O com andante deu ordem para que o sargento se adiantasse, m as não tardou a arrepender-se de o ter feito. A sua im paciência crescia a cada m inuto. Tinha sido um erro crasso m andar o sargento à frente. A esta hora j á ele recebera os prim eiros aplausos, os m ais calorosos, aqueles que acolhem um a boa notícia dada em prim eira m ão, e se alguns, ou m esm o m uitos, se vierem a m anifestar depois, sem pre hão-de ter um sabor a caldo requentado. Enganava-se. Quando o com andante chegou ao acam pam ento, haveria que discutir se acom panhado por ou acom panhando o boieiro e os bois, estavam os hom ens form ados em duas linhas, os braçais de um lado, os m ilitares do outro, e ao centro o elefante com o seu cornaca sentado, todos aplaudindo com entusiasm o, dando vozes de alegria, se isto aqui fosse um barco de piratas seria a altura de dizer, Um rum duplo para todos. Sej a com o sej a, talvez se apresente ocasião m ais adiante para m andar servir um quartilho de vinho tinto a toda a com panhia. Acalm adas as expansões, principiou a caravana a organizar-se. O boieiro atrelou ao carro os bois do conde, m ais fortes e m ais frescos, e à frente deles, para repousarem , os que tinham vindo de lisboa. O

feitor talvez fosse de opinião contrária, m as, m ontado na sua m ula, não fazia m ais que benzer-se e tornar a benzer-se, m al acreditando no que os seus olhos viam , Um elefante, aquilo é que é o tal elefante, m urm urava, não tem m enos de quatro côvados de altura, e a trom ba, e os dentes, e as patas, que grossas são as patas. Quando a caravana se pôs em m archa, seguiu-a até à estrada.

Despediu-se do com andante, a quem desej ou boa viagem e m elhor regresso, e ficou a olhá-los enquanto se afastavam . Fazia grandes gestos de adeus. Não é todos os dias que aparece nas nossas vidas um elefante.

Não é verdade que o céu sej a indiferente às nossas preocupações e anseios. O céu está constantem ente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizem os bons conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele e a nossa, j á dem onstrou que não vale a pena esforçar a m em ória, que todos a tem os m ais ou m enos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estiverm os de olho atento, com o foi o caso do com andante quando sobre a caravana, em certa altura do cam inho, caiu um rápido m as abundante aguaceiro. Para os hom ens da força, em penhados no penoso trabalho de em purrar o carro de bois, aquela chuva foi um a bênção, um ato de caridade pelo sofrim ento em que têm vivido suj eitas as classes baixas. O

elefante salom ão e o seu cornaca subhro desfrutaram do súbito refresco, o que não im pediu o guia de pensar no arranj o que lhe faria futuram ente um guarda-chuva em situações com o estas, principalm ente no cam inho para viena, de poleiro e protegido da água que caísse das nuvens.

Quem não apreciou nada o líquido m eteoro foram os soldados da cavalaria, habitualm ente presum idos nas suas fardas coloridas, agora m anchadas e pingonas, com o se estivessem a regressar vencidos de um a batalha. Quanto ao com andante, esse, com a sua j á provada agilidade de espírito, havia com preendido im ediatam ente que tinha ali um problem a m uito sério. Um a vez m ais se dem onstrava que a estratégia para esta m issão fora desenhada por pessoal incom petente, incapaz de prever os acontecim entos m ais correntios, com o este de chover em agosto, quando a sabedoria popular j á vinha avisando desde a noite dos tem pos que o inverno, precisam ente, é em agosto que com eça. A não ser que o aguaceiro tivesse sido um a coisa de ocasião e que o bom tem po voltasse para ficar, tinham -se acabado as noites dorm idas ao ar livre sob a lua ou o arco estrelado do cam inho de santiago. E não só isso. Tendo de pernoitar em lugares habitados, era preciso que neles houvesse um espaço coberto para abrigar os cavalos e o elefante, os quatro bois, e um as boas dezenas de hom ens, e isso, com o se pode calcular, era algo custoso de encontrar no portugal do século dezasseis, onde ainda não se tinha aprendido a construir naves industriais nem estalagens de turism o. E se a chuva nos apanha na estrada, não um aguaceiro com o este, m as um a chuva contínua, daquelas que não param durante horas e horas, perguntou-se o com andante, e concluiu, Não terem os outro rem édio que apará-la toda nas costas. Levantou a cabeça, perscrutou o espaço e disse, Por agora parece ter escam pado, oxalá tenha sido só um am eaço. Infelizm ente não tinha sido só um am eaço. Por duas vezes, antes de chegarem a porto salvo, se tal se podia cham ar a duas dezenas de casebres afastados uns dos outros, com um a igrej a descabeçada, isto é, só com m eia torre, sem nave industrial à vista, ainda lhes caíram em cim a duas bátegas, que o com andante, j á perito neste sistem a de com unicações, interpretou logo com o dois novos avisos do céu, decerto im paciente por não ver que estivessem a ser tom adas as m edidas preventivas necessárias, as que poupariam à ensopada caravana resfriam entos, constipações, defluxos e m ais do que prováveis pneum onias. Esse é o grande equívoco do céu, com o a ele nada é im possível, im agina que os hom ens, feitos, segundo se diz, à im agem e sem elhança do seu poderoso inquilino, gozam do m esm o privilégio. Queríam os ver o que sucederia ao céu na situação do com andante, indo de casa em casa com a m esm a cantilena, Sou

oficial de cavalaria em m issão de serviço ordenada por sua alteza o rei de portugal, a de acom panhar um elefante à cidade espanhola de valladolid, e não ver senão caras desconfiadas, aliás m ais do que j ustificadam ente, dado que j am ais se tinha ouvido falar da espécie elefantina por aquelas paragens nem havia a m enor ideia do que fosse um elefante. Queríam os ver o céu a perguntar se tinham por ali um celeiro grande ou, na sua falta, um a nave industrial, onde se pudessem recolher por um a noite os anim ais e as pessoas, o que de todo não seria im possível, basta que recordem os a perem ptória afirm ação daquele fam oso j esus de galileia que, nos seus m elhores tem pos, se gabou de ser capaz de destruir e reconstruir o tem plo entre a m anhã e a noite de um único dia. Ignora-se se foi por falta de m ão de obra ou de cim ento que não o fez, ou se foi por ter chegado à sensata conclusão de que o trabalho não m erecia a pena, considerando que se algo se vai destruir para construí-lo outra vez, m elhor será deixar tudo com o estava antes.

Proeza, essa sim , foi o episódio da m ultiplicação dos pães e dos peixes, que se aqui cham am os à colação é tão som ente porque, por ordem do com andante e esforço da intendência da cavalaria, vai ser servida hoj e com ida quente para quantos hum anos vão na caravana, o que não é pequeno m ilagre se considerarm os a falta de com odidades e a instabilidade do tem po. Felizm ente não choverá. Os hom ens despiram as roupas m ais pesadas e puseram -nas a secar em varas a j eito de que lhes aproveitasse o calor das fogueiras entretanto acendidas. Depois foi só esperar que o caldeirão da com ida chegasse, sentir a consoladora contração do estôm ago ao cheirar-lhe que a sua fom e vai ser finalm ente satisfeita, sentir-se um hom em com o aqueles outros a quem , a horas certas, com o se de benéfica fatalidade do destino se tratasse, alguém vem servir um prato de com ida e um a fatia de pão. Este com andante não é com o outros, pensa nos seus hom ens, incluindo os colaterais, com o se fossem seus filhos. Além disso, preocupa-se pouco com hierarquias, pelo m enos em circunstâncias com o as presentes, tanto assim que não foi com er à parte, está aqui, ocupa um lugar ao redor do lum e, e, se até agora tem participado pouco nas conversas, foi só para deixar os hom ens à vontade. Aqui m esm o um da cavalaria acaba de perguntar o que tem andado na cabeça de todos, E tu, ó cornaca, que raios vais tu fazer com o elefante a viena, Provavelm ente o m esm o que em lisboa, nada de im portante, respondeu subhro, irão dar-lhe m uitas palm as, irá sair m uita gente à rua, e depois esquecem -se dele, assim é a lei da vida, triunfo e olvido, Nem sem pre, Aos elefantes e aos hom ens, sem pre, em bora dos hom ens eu não deva falar, não passo de um indiano em terra que não é sua, m as, que eu conheça, só um elefante escapou a esta lei, Que elefante foi esse, perguntou um dos hom ens das forças, Um elefante que estava m oribundo e a quem cortaram a cabeça depois de m orto, Então acabou-se tudo aí, Não, a cabeça foi posta no pescoço de um deus que se cham a ganeixa e que estava m orto, Fala-nos desse tal ganeixa, disse o com andante, Com andante, a religião hinduísta é m uito com plicada, só um indiano está capacitado para com preendê-la, e nem todos o conseguem , Creio recordar que m e disseste que és cristão, E eu recordo-m e de ter respondido, m ais ou m enos, m eu com andante, m ais ou m enos, Que quer isso dizer na realidade, és ou não és cristão, Batizaram -m e na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois, nada, respondeu o cornaca com um encolher de om bros, Nunca praticaste, Não fui cham ado, senhor, devem ter-se esquecido de m im , Não perdeste nada com isso, disse a voz desconhecida que não foi possível localizar, m as que, em bora isto não sej a crível, pareceu ter brotado das brasas da fogueira. Fez-se um grande silêncio só interrom pido pelos estalidos da lenha a arder. Segundo a tua religião, quem foi que criou o universo, perguntou o com andante, Bram a, m eu senhor, Então, esse é deus,

Sim , m as não o único, Explica-te, É que não basta ter criado o universo, é preciso tam bém quem o conserve, e essa é a tarefa de outro deus, um que se cham a vixnu, Há m ais deuses além desses, cornaca, Tem os m ilhares, m as o terceiro em im portância é siva, o destruidor, Queres dizer que aquilo que vixnu conserva, siva o destrói, Não, m eu com andante, com siva, a m orte é entendida com o princípio gerador da vida, Se bem percebo, os três fazem parte de um a trindade, são um a trindade, com o no cristianism o, No cristianism o são quatro, m eu com andante, com perdão do atrevim ento, Quatro, exclam ou o com andante, estupefacto, quem é esse quarto, A virgem , m eu senhor, A virgem está fora disto, o que tem os é o pai, o filho e o espírito santo, E a virgem , Se não te explicas, corto-te a cabeça, com o fizeram ao elefante, Nunca ouvi pedir nada a deus, nem a j esus, nem ao espírito santo, m as a virgem não tem m ãos a m edir com tantos rogos, preces e solicitações que lhe chegam a casa a todas as horas do dia e da noite, Cuidado, que está aí a inquisição, para teu bem não te m etas em terrenos pantanosos, Se chego a viena, não volto m ais, Não regressas à índia, perguntou o com andante, Já não sou indiano, Em todo o caso vej o que do teu hinduísm o pareces saber m uito, Mais ou m enos, m eu com andante, m ais ou m enos, Porquê, Porque tudo isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada, Ganeixa é um a palavra, perguntou o com andante, Sim , um a palavra que, com o todas as m ais, só por outras palavras poderá ser explicada, m as, com o as palavras que tentaram explicar, quer tenham conseguido fazê-lo ou não, terão, por sua vez, de ser explicadas, o nosso discurso avançará sem rum o, alternará, com o por m aldição, o errado com o certo, sem se dar conta do que está bem e do que está m al, Conta-m e quem foi ganeixa, Ganeixa é filho de siva e de parvati, tam bém cham ada durga ou kali, a deusa dos cem braços, Se em vez de braços tivessem sido pernas, podíam os cham ar-lhe centopeia, disse um dos hom ens rindo-se contrafeito, com o arrependido do com entário m al ele lhe saíra da boca. O cornaca não lhe prestou atenção e prosseguiu, Há que dizer, com o aconteceu com a vossa virgem , que ganeixa foi gerado por sua m ãe, parvati, sem intervenção do m arido, siva, o que se explica pelo facto de que este, sendo eterno, não sentia nenhum a necessidade de ter filhos. Um dia, tendo parvati decidido tom ar banho, sucedeu que não havia guardas por ali a fim de a protegerem de alguém que quisesse entrar na sala. Então ela criou um ídolo com a form a de um rapazinho, feito com a pasta que havia preparado para lavar-se, e que não devia ser outra coisa que sabão. A deusa infundiu vida no boneco, e este foi o prim eiro nascim ento de ganeixa. Parvati ordenou a ganeixa que não perm itisse a entrada de ninguém e ele seguiu à risca as ordens da m ãe. Passado pouco tem po, siva regressou da floresta e quis entrar em casa, m as ganeixa não perm itiu, o que, com o é natural, enfureceu siva. Então deu-se o seguinte diálogo, Sou o esposo de parvati, portanto a casa dela é a m inha casa, Aqui só entra quem m inha m ãe quiser, e ela não m e disse que tu podias entrar. Siva perdeu a paciência e lançou-se num a feroz batalha com ganeixa, que term inou com o deus cortando com o seu tridente a cabeça ao adversário. Quando parvati saiu e viu o corpo sem vida do filho, os seus gritos de dor depressa se transform aram em uivos de fúria. Ordenou a siva que devolvesse im ediatam ente a vida a ganeixa, m as, por desgraça, o golpe que o tinha degolado havia sido tão poderoso que a cabeça foi atirada para m uito longe e nunca m ais a viram . Então, com o últim o recurso, siva foi pedir auxílio a bram a, que lhe sugeriu que substituísse a cabeça de ganeixa pela do prim eiro ser vivo que encontrasse no cam inho, desde que estivesse na direção norte. Siva m andou então o seu exército celestial para que tom asse a cabeça de qualquer criatura que encontrassem dorm indo com a cabeça na direção norte. Encontraram um elefante m oribundo

que dorm ia desta m aneira e, após a sua m orte, cortaram -lhe a cabeça. Regressaram aonde estavam siva e parvati e entregaram -lhes a cabeça do elefante, a qual foi colocada no corpo de ganeixa, trazendo-o de novo à vida. E foi assim que nasceu ganeixa depois de ter vivido e m orrido. Histórias da carochinha, resm ungou um soldado, Com o a daquele que, tendo m orrido, ressuscitou ao terceiro dia, respondeu subhro, Cuidado, cornaca, estás a ir longe de m ais, repreendeu o com andante, Eu tam bém não acredito no conto do m enino de sabão que veio a tornar-se deus com um corpo de hom em barrigudo e cabeça de elefante, m as foi-m e pedido que explicasse quem era ganeixa, e eu não fiz m ais que obedecer, Sim , m as fizeste considerações pouco am áveis sobre j esus cristo e a virgem que não caíram nada bem no espírito das pessoas aqui presentes, Peço desculpa a quem se sentiu ofendido, foi sem intenção, respondeu o cornaca.

Ouviu-se um m urm úrio de apaziguam ento, a verdade é que àqueles hom ens, tanto soldados com o paisanos, pouco lhes im portavam as disputas religiosas, o que os inquietava era que se tocasse em assuntos tão retorcidos debaixo da própria cúpula celeste. Costum a-se dizer que as paredes têm ouvidos, im agine-se o tam anho que terão as orelhas das estrelas. Fosse com o fosse, eram horas de ir para a cam a, os lençóis e as m antas dela as roupas que tinham vestidas, o im portante era que não lhes chovesse em cim a, e isso tinha-o conseguido o com andante indo de casa em casa a pedir que dessem abrigo, por esta noite, a dois ou três dos seus hom ens, dorm iriam em cozinhas, em estábulos, em palheiros, m as desta vez com a barriga cheia, o que com pensaria esses e outros inconvenientes. Com eles dispersaram uns quantos habitantes da aldeia, quase todos hom ens, que por ali tinham andado, atraídos pela novidade do elefante, do qual, por m edo, não conseguiriam aproxim ar-se a m enos de vinte passos. Enrolando com a trom ba um a porção de forragem que bastaria para satisfazer o prim eiro apetite de um esquadrão de vacas, salom ão, apesar da sua vista curta, lançou-lhes um olhar severo, dando claram ente a entender que não era um anim al de concurso, m as sim um trabalhador honrado a quem certos infortúnios, que seria dem asiado longo relatar aqui, haviam deixado sem trabalho e, por assim dizer, entregue à caridade pública. Ao princípio, um dos hom ens da aldeia, por bravata, ainda deu uns quantos passos para além da linha invisível que logo iria tornar-se em fronteira cerrada, m as salom ão despachou-lhe um coice de aviso que, em bora não atingindo o alvo, deu lugar a um interessante debate entre eles sobre fam ílias ou clãs de anim ais. Mulas, m ulos, burros, burras, cavalos, éguas, são quadrúpedes que, com o toda a gente sabe, e alguns por dolorosa experiência, dão coices, o que bem se com preende, um a vez que não dispõem de outras arm as, quer ofensivas quer defensivas, m as um elefante, com aquela trom ba e aqueles dentes, com aquelas patorras enorm es que lem bram m artelos-pilões, ainda por cim a, com o se fosse pouco o que j á tem , é capaz de escoicear. Sugere a m ansidão em figura quando se olha para ele, porém , caso sej a necessário, poderá tornar-se num a fera. De estranhar é que, pertencendo à fam ília dos anim ais acim a m encionados, isto é, à fam ília dos que dão coices, não leve ferraduras. Afinal, disse um dos cam poneses, um elefante não tem m uito que ver, dá-se-lhe um a volta e j á está. Os outros concordaram , Dá-se-lhe um a volta e fica tudo visto. Podiam ter-se retirado para as suas casas, para o conforto dos seus lares, m as um deles disse que ainda ficava um bocado por ali, que queria ouvir o que se estava dizendo ao redor daquela fogueira. Foram todos. Ao princípio não com preenderam de que se estava tratando, não entendiam os nom es, tinham acentuações estranhas, até que tudo se lhes tornou claro quando chegaram à conclusão de que se estava a falar do elefante e que o elefante era deus. Agora cam inhavam para as suas casas, para o

conforto dos lares, levando cada um consigo dois ou três hóspedes entre m ilitares e hom ens de forças. Com o elefante ficaram de sentinela dois soldados de cavalaria, o que m ais reforçou neles a ideia de que era urgente ir falar ao cura. As portas fecharam -se e a aldeia encolheu-se toda no m eio da escuridão. Pouco depois algum as tornaram a abrir-se sigilosam ente e os cinco hom ens que delas saíram encam inharam -se para a praça do poço, ponto de reunião que haviam com binado. A ideia deles era ir falar com o padre, que a esta hora j á estaria na cam a e provavelm ente a dorm ir. O reverendo era conhecido pelo seu péssim o hum or quando o despertavam a horas inconvenientes, que para ele eram todas em que estivesse nos braços de m orfeu. Um dos hom ens ainda aventurou um a alternativa, E se viéssem os de m anhã, perguntou, m as outro, m ais determ inado, ou sim plesm ente m ais propenso à lógica das previsões, obj etou, Se eles tiverem decidido sair ao alvorecer, arriscam o-nos a não encontrar ninguém , com boa cara de parvos ficaríam os então. Estavam diante da porta do passal e parecia que nenhum dos noturnos visitantes se ia atrever a levantar a aldraba. Aldraba tinha-a tam bém a porta da residência, m as essa era dem asiado pequena para conseguir acordar o inquilino. Por fim , com o um tiro de canhão no silêncio pétreo da aldeia, a aldraba do passal deu sinal de vida. Ainda teve de disparar m ais duas vezes antes que de dentro se ouvisse a voz rouca e irritada do cura, Quem é. Obviam ente, não era prudente nem cóm odo falar de deus em plena rua, tendo por m eio algum as paredes e um portão de m adeira grossa. Não tardaria m uito que os vizinhos pusessem o ouvido à escuta das altas vozes com que seriam obrigadas a com unicar-se as partes dialogantes, transform ando assim um a gravíssim a questão teológica na fábula da tem porada. A porta da residência abriu-se enfim e a cabeça redonda do cura apareceu, Que querem vocês a estas horas da noite. Os hom ens deixaram o portão do passal e avançaram , arrastando os pés, para a outra porta. Está alguém a m orrer, perguntou o cura. Todos disseram que não senhor. Então, insistiu o servo de deus, aconchegando-se m elhor com a m anta que tinha lançado sobre os om bros, Na rua não podem os falar, disse um hom em . O cura resm ungou, Pois se não podem falar na rua, vão am anhã à igrej a, Tem os de falar agora, senhor padre, am anhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é m uito sério, é um assunto de igrej a, De igrej a, repetiu o cura, subitam ente inquieto, pensando que o apodrecido travej am ento do teto tinha vindo abaixo, Sim senhor, de igrej a, Então entrem , entrem . Em purrou-os para a cozinha em cuj a lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queim ada, acendeu um a candeia, sentou-se num m ocho e disse, Falem . Os hom ens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, m as estava claro que só tinha realm ente legitim idade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o com andante e o cornaca. Não foi preciso votar, o hom em em questão tinha tom ado a palavra, Senhor padre, deus é um elefante. O padre suspirou de alívio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do m ais, a herética afirm ação era de fácil resposta, Deus está em todas as suas criaturas, disse. Os hom ens m overam as cabeças no m odo afirm ativo, m as o porta-voz, m uito consciente dos seus direitos e das suas responsabilidades, retorquiu, Mas nenhum a delas é deus, Era o que faltava, respondeu o cura, teríam os aí um m undo a abarrotar de deuses, e ninguém se entenderia, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, Senhor padre, o que nós ouvim os, com estes ouvidos que a terra há-de com er, é que o elefante que aí está é deus, Quem foi que proferiu sem elhante barbaridade, perguntou o cura usando um a palavra não corrente na aldeia, o que nele era claro sinal de enfado, O com andante da cavalaria e o hom em que viaj a em cim a, Em cim a de quê, De deus, do anim al. O cura respirou fundo,

suj eitou o ânim o que o estava im pelindo a m aiores extrem os e perguntou, Vocês estão bêbados, Não, senhor padre, respondeu o coro, é difícil estar bêbado nos tem pos que correm , o vinho está caro, Então, se não estão bêbados, se apesar desse conto de perlim pim pim continuam a ser bons cristãos, ouçam -m e bem . Os hom ens aproxim aram -se para não perderem um a palavra, e o cura, depois de ter lim pado a carraspeira que sentia na garganta e que, pensava ele, era resultado de ter saído bruscam ente da quentura dos lençóis para o frio am biente exterior, com eçou o serm ão, Eu podia m andá-los para casa com um a penitência, uns quantos padre-nossos e um as quantas ave-m arias, e não pensar m ais no caso, m as com o todos m e pareceis de boa-fé, am anhã de m anhã, antes de nascer o sol, irem os eu e vocês, com as vossas fam ílias, e tam bém todos os outros vizinhos da aldeia, a quem tereis de avisar, aonde se encontra o elefante, não para o excom ungar, um a vez que, sendo um anim al, não recebeu o santo sacram ento do batism o nem pôde acolher-se aos bens espirituais concedidos pela igrej a, m as para o lim par de qualquer possessão diabólica que haj a sido introduzida pelo m aligno na sua natureza de bruto, com o aconteceu aos dois m il porcos que se afogaram no m ar da galileia, com o deveis estar lem brados.

Abriu espaço para um a pausa, e logo perguntou, Entendidos, Sim senhor, responderam todos, exceto o porta-voz que ia tom ando cada vez m ais a sério a sua função, Senhor padre, disse, esse caso sem pre m e fez confusão na cabeça, Porquê, Não percebo por que tinham esses porcos que m orrer, está bem que j esus tenha feito o m ilagre de expulsar os espíritos im undos do corpo do geraseno, m as consentir que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca m e pareceu um a boa m aneira de acabar o trabalho, tanto m ais que, sendo os dem ónios im ortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído à água j á os dem ónios se haviam escapado, em m inha opinião j esus não pensou bem , E tu quem és para dizeres que j esus não pensou bem , Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler, m as sei ouvir, Há algum a bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de um a bíblia, m as alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A m inha filha m ais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, m as, graças às vezes que j á leu o m esm o, vam os percebendo-a cada vez m elhor, Em com pensação, o pior é que, com tais pensam entos e opiniões, se a inquisição aqui chega serás o prim eiro a ir para a fogueira, A gente de algum a coisa terá de m orrer, padre, Não m e venhas com estupidezes, deixa-te de evangelhos e dá m ais atenção ao que eu digo na igrej a, apontar o cam inho reto é m issão m inha e de m ais ninguém , lem bra-te de que quem se m ete por atalhos, nunca sai de sobressaltos, Sim , padre, Do que aqui se disse, nem um a palavra, se alguém , fora dos que aqui estão, m e vier falar destes assuntos, aquele que de vocês tiver dado com a língua nos dentes sofrerá pena de excom unhão m aior, nem que eu tenha de ir andando a rom a para dar testem unho pessoalm ente. O cura fez um a pausa dram ática, e depois perguntou em voz cavernosa, Entendidos, Sim , padre, entendidos, Am anhã, antes que o sol nasça, quero toda a gente no adro da igrej a, eu, vosso pastor, irei na dianteira, e j untos, com a m inha palavra e a vossa presença, pelej arem os pela nossa santa religião, lem brai-vos, o povo unido j am ais será vencido.

O dia am anheceu nevoento, m as ninguém se havia perdido, toda a gente encontrou, no m eio de um a neblina quase tão espessa com o um a sopa feita só de batatas cozidas, um cam inho para chegar à igrej a com o antes encontraram o acam pam ento os hóspedes a quem os aldeões haviam

dado abrigo. Estavam ali todos, desde a m ais tenra criancinha ao colo de sua m ãe até ao ancião m ais velho da aldeia ainda capaz de andar, graças ao auxílio do pau que funcionava com o sua terceira perna. Não as tinha tantas com o a centopeia, que quando chegam a velhas têm necessidade de um a grande quantidade de bastões, o que afinal resulta em saldo a favor da espécie hum ana, que só precisa de três, salvo casos m ais graves, em que os ditos bastões m udam de nom e e passam a cham ar-se m uletas. Destes, graças à divina providência que por todos nós vela, não os havia na aldeia. A coluna cam inhava em passo bastante firm e, fazendo das fraquezas forças, pronta para escrever um a nova página de abnegado heroísm o nos anais da aldeia, as outras não tinham m uito para oferecer à leitura dos eruditos, som ente que nascem os, trabalham os e m orrem os. Quase todas as m ulheres iam arm adas dos seus rosários e m urm uravam preces, provavelm ente para reforçar o ânim o do cura, que avançava à frente, m unido do aspersório e da caldeirinha de água benta. Por causa da neblina, os hom ens da caravana não se haviam dispersado com o teria sido natural, esperavam em pequenos grupos a bucha da m anhã, incluindo os m ilitares, que, m ais m adrugadores, j á tinham arreado os cavalos.

Quando os vizinhos com eçaram a sair da sopa de batata, o pessoal responsável pelo elefante m oveu-se instintivam ente ao seu encontro, levando na vanguarda, por dever de ofício, os soldados de cavalaria. Ao chegarem ao alcance da voz o cura deteve-se, levantou a m ão em sinal de paz, deu de lá os bons-dias e perguntou, Onde está o elefante, querem os vê-lo. O sargento considerou razoáveis tanto a pergunta com o o pedido e respondeu, Atrás daquelas árvores, agora para verem o elefante terão de falar prim eiro com o com andante do pelotão e com o cornaca, Quem é o cornaca, É o hom em que vai em cim a, Em cim a de quê, Em cim a do elefante, de que havia de ser, Quer dizer que cornaca significa o que vai em cim a, Não sei o que significa, só sei que vai em cim a, a palavra parece que veio da índia. A conversação, por este andar, am eaçaria eternizar-se se não fosse o caso de se estarem aproxim ando o com andante e o cornaca, atraídos pela curiosidade de haverem vislum brado, através da névoa que ali com eçara a desfazer-se um pouco, o que podiam ser dois exércitos enfrentados. Lá vem o com andante, disse o sargento, feliz por ficar fora de um a conversação que j á estava a pô-lo nervoso. O com andante disse, Bons dias a todos, e perguntou, Em que posso servi-los, Gostaríam os de ver o elefante, A hora não é a m elhor, interveio o cornaca, o elefante tem m au acordar. A isto o padre respondeu, É que além de o verem as m inhas ovelhas e eu, tam bém o queria benzer para a viagem , trago aqui o aspersório e a caldeirinha de água benta, É um a bonita ideia, disse o com andante, até agora nenhum sacerdote dos que viem os encontrando pelo cam inho se tinha oferecido para abençoar o salom ão, Quem é o salom ão, perguntou o cura, O elefante cham a-se salom ão, respondeu o cornaca, Não m e parece próprio dar a um anim al o nom e de um a pessoa, os anim ais não são pessoas e as pessoas tão pouco são anim ais, Não tenho tanto a certeza disso, respondeu o cornaca, que com eçava a em birrar com a parlenga, É a diferença entre quem fez estudos e quem não os tem , rem atou, com censurável sobranceria, o cura. Dito isto, virou-se para o com andante e perguntou, Dá vossa senhoria licença que eu cum pra a m inha obrigação de sacerdote, Por m im , sim , padre, ainda que o elefante não estej a sob o m eu poder, m as do cornaca. Em vez de esperar que o cura lhe dirigisse a palavra, subhro acudiu em tom suspeitosam ente am ável, Por quem é, senhor padre, o salom ão é todo seu. Ora, é tem po de avisar o leitor de que há aqui duas personagens que não estão de boa-fé. Em prim eiríssim o lugar, o cura, que, ao contrário do que disse, não traz na caldeirinha água benta, m as água do poço, transvasada diretam ente do cântaro

da cozinha, sem passagem , real ou sim bólica, pelo em píreo, em segundo lugar o cornaca, que espera que algo aconteça e que está fazendo preces ao deus ganeixa para que aconteça m esm o.

Não se chegue dem asiado, preveniu o com andante, olhe que ele tem três m etros de altura e pesa um as quatro toneladas, se não m ais, Não pode ser tão perigoso com o a besta do leviatão, e a esse o tem subj ugado por toda a vida a santa religião católica, apostólica e rom ana a que pertenço, Eu avisei, a responsabilidade é sua, disse o com andante, que na sua experiência de m ilitar havia escutado m uitas bravatas e constatado o triste resultado de quase todas elas. O cura m ergulhou o aspersório na água, deu três passos em frente e salpicou com ele a cabeça do elefante, ao m esm o tem po que m urm urava um as palavras que tinham todo o ar de ser latinas, m as que ninguém entendeu, nem sequer a reduzidíssim a parte ilustrada da assistência, isto é, o com andante, que estivera alguns anos no sem inário, resultado de um a crise m ística, que viria a curar-se por si m esm a. O reverendo continuava o seu trabalho e, aos poucos, ia-se aproxim ando da outra extrem idade do anim al, m ovim ento que coincidiu com a aceleração das preces do cornaca ao deus ganeixa e com o súbito descobrim ento, por parte do com andante, de que as palavras e os gestos que o padre vinha fazendo pertenciam ao m anual do exorcism o, com o se o pobre do elefante pudesse estar possesso de algum dem ónio. Este hom em está doido, pensou o com andante, e no instante m esm o em que o pensou, viu o cura ser atirado ao chão, caldeirinha para um lado, aspersório para outro, a água derram ada. As ovelhas avançaram para acudir ao seu pastor, m as os soldados interpuseram -se para evitar atropelos e confusões, e, se bem o pensaram , m elhor o fizeram , porque o cura, aj udado pelos hércules locais, j á tentava levantar-se, m anifestam ente dorido da anca esquerda, m as, por todos os indícios, sem nenhum osso partido, o que, tendo em conta a avançada idade e a flácida corpulência do indivíduo, quase se poderia considerar um dos m ais acabados m ilagres da santa padroeira da terra. O que realm ente sucedeu, e não virem os a conhecer nunca a causa, m istério inexplicável a j untar a tantos outros, foi que salom ão, a m enos de um palm o do alvo do trem endo coice que tinha com eçado por desferir, travou e suavizou o im pacte, de m odo a que os efeitos não fossem além dos que resultariam de um em purrão sério, m as sem acinte, e m uito m enos com intenção de m atar.

Faltando-lhe, com o a nós, esta im portante inform ação, o cura lim itava-se a dizer, azam boado, Foi castigo do céu, foi castigo do céu. A partir de hoj e, quando se falar de elefantes na sua presença, e hão-de ser m uitas as vezes, haj a vista o que aconteceu aqui, em m anhã brum osa, perante tantas testem unhas presenciais, sem pre dirá que esses anim ais, aparentem ente brutos, são tão inteligentes que, além de terem um as luzes de latim , até são capazes de distinguir a água benta daquela que o não é. Manquej ando, o cura deixou-se conduzir para a cadeira de braços de pau-preto, de estilo abacial, um a preciosa obra de ensam blador que quatro dos seus m ais dedicados fâm ulos haviam ido buscar à igrej a. Já não estarem os aqui quando se organizar o regresso à aldeia. A discussão será brava, com o é natural esperar de seres pouco dados aos exercícios da razão, hom ens e m ulheres que por dá cá aquela palha chegam às m ãos, m esm o quando, com o neste caso, se trate de decidir sobre um a obra tão pia com o a de carregar com o seu pastor até casa e m etê-lo na cam a. O cura não será de grande aj uda para dirim ir o pleito porquanto cairá num torpor que preocupará toda a gente, m enos a bruxa da terra, Sosseguem , disse, não há sinais de m orte próxim a, nem para hoj e, nem para am anhã, nada que não possa resolver-se com um as boas fricções nas partes afetadas e um as tisanas para depurar o sangue e não o deixar corrom per-se, e, j á agora, deixem -se de zaragatas que sem pre acabam em cabeças partidas, o

que devem fazer é revezar-se de cinquenta em cinquenta passos, e todos m uito am igos. Tinha razão a bruxa.

Are sens

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