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feitor talvez fosse de opinião contrária, m as, m ontado na sua m ula, não fazia m ais que benzer-se e tornar a benzer-se, m al acreditando no que os seus olhos viam , Um elefante, aquilo é que é o tal elefante, m urm urava, não tem m enos de quatro côvados de altura, e a trom ba, e os dentes, e as patas, que grossas são as patas. Quando a caravana se pôs em m archa, seguiu-a até à estrada.

Despediu-se do com andante, a quem desej ou boa viagem e m elhor regresso, e ficou a olhá-los enquanto se afastavam . Fazia grandes gestos de adeus. Não é todos os dias que aparece nas nossas vidas um elefante.

Não é verdade que o céu sej a indiferente às nossas preocupações e anseios. O céu está constantem ente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizem os bons conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele e a nossa, j á dem onstrou que não vale a pena esforçar a m em ória, que todos a tem os m ais ou m enos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estiverm os de olho atento, com o foi o caso do com andante quando sobre a caravana, em certa altura do cam inho, caiu um rápido m as abundante aguaceiro. Para os hom ens da força, em penhados no penoso trabalho de em purrar o carro de bois, aquela chuva foi um a bênção, um ato de caridade pelo sofrim ento em que têm vivido suj eitas as classes baixas. O

elefante salom ão e o seu cornaca subhro desfrutaram do súbito refresco, o que não im pediu o guia de pensar no arranj o que lhe faria futuram ente um guarda-chuva em situações com o estas, principalm ente no cam inho para viena, de poleiro e protegido da água que caísse das nuvens.

Quem não apreciou nada o líquido m eteoro foram os soldados da cavalaria, habitualm ente presum idos nas suas fardas coloridas, agora m anchadas e pingonas, com o se estivessem a regressar vencidos de um a batalha. Quanto ao com andante, esse, com a sua j á provada agilidade de espírito, havia com preendido im ediatam ente que tinha ali um problem a m uito sério. Um a vez m ais se dem onstrava que a estratégia para esta m issão fora desenhada por pessoal incom petente, incapaz de prever os acontecim entos m ais correntios, com o este de chover em agosto, quando a sabedoria popular j á vinha avisando desde a noite dos tem pos que o inverno, precisam ente, é em agosto que com eça. A não ser que o aguaceiro tivesse sido um a coisa de ocasião e que o bom tem po voltasse para ficar, tinham -se acabado as noites dorm idas ao ar livre sob a lua ou o arco estrelado do cam inho de santiago. E não só isso. Tendo de pernoitar em lugares habitados, era preciso que neles houvesse um espaço coberto para abrigar os cavalos e o elefante, os quatro bois, e um as boas dezenas de hom ens, e isso, com o se pode calcular, era algo custoso de encontrar no portugal do século dezasseis, onde ainda não se tinha aprendido a construir naves industriais nem estalagens de turism o. E se a chuva nos apanha na estrada, não um aguaceiro com o este, m as um a chuva contínua, daquelas que não param durante horas e horas, perguntou-se o com andante, e concluiu, Não terem os outro rem édio que apará-la toda nas costas. Levantou a cabeça, perscrutou o espaço e disse, Por agora parece ter escam pado, oxalá tenha sido só um am eaço. Infelizm ente não tinha sido só um am eaço. Por duas vezes, antes de chegarem a porto salvo, se tal se podia cham ar a duas dezenas de casebres afastados uns dos outros, com um a igrej a descabeçada, isto é, só com m eia torre, sem nave industrial à vista, ainda lhes caíram em cim a duas bátegas, que o com andante, j á perito neste sistem a de com unicações, interpretou logo com o dois novos avisos do céu, decerto im paciente por não ver que estivessem a ser tom adas as m edidas preventivas necessárias, as que poupariam à ensopada caravana resfriam entos, constipações, defluxos e m ais do que prováveis pneum onias. Esse é o grande equívoco do céu, com o a ele nada é im possível, im agina que os hom ens, feitos, segundo se diz, à im agem e sem elhança do seu poderoso inquilino, gozam do m esm o privilégio. Queríam os ver o que sucederia ao céu na situação do com andante, indo de casa em casa com a m esm a cantilena, Sou

oficial de cavalaria em m issão de serviço ordenada por sua alteza o rei de portugal, a de acom panhar um elefante à cidade espanhola de valladolid, e não ver senão caras desconfiadas, aliás m ais do que j ustificadam ente, dado que j am ais se tinha ouvido falar da espécie elefantina por aquelas paragens nem havia a m enor ideia do que fosse um elefante. Queríam os ver o céu a perguntar se tinham por ali um celeiro grande ou, na sua falta, um a nave industrial, onde se pudessem recolher por um a noite os anim ais e as pessoas, o que de todo não seria im possível, basta que recordem os a perem ptória afirm ação daquele fam oso j esus de galileia que, nos seus m elhores tem pos, se gabou de ser capaz de destruir e reconstruir o tem plo entre a m anhã e a noite de um único dia. Ignora-se se foi por falta de m ão de obra ou de cim ento que não o fez, ou se foi por ter chegado à sensata conclusão de que o trabalho não m erecia a pena, considerando que se algo se vai destruir para construí-lo outra vez, m elhor será deixar tudo com o estava antes.

Proeza, essa sim , foi o episódio da m ultiplicação dos pães e dos peixes, que se aqui cham am os à colação é tão som ente porque, por ordem do com andante e esforço da intendência da cavalaria, vai ser servida hoj e com ida quente para quantos hum anos vão na caravana, o que não é pequeno m ilagre se considerarm os a falta de com odidades e a instabilidade do tem po. Felizm ente não choverá. Os hom ens despiram as roupas m ais pesadas e puseram -nas a secar em varas a j eito de que lhes aproveitasse o calor das fogueiras entretanto acendidas. Depois foi só esperar que o caldeirão da com ida chegasse, sentir a consoladora contração do estôm ago ao cheirar-lhe que a sua fom e vai ser finalm ente satisfeita, sentir-se um hom em com o aqueles outros a quem , a horas certas, com o se de benéfica fatalidade do destino se tratasse, alguém vem servir um prato de com ida e um a fatia de pão. Este com andante não é com o outros, pensa nos seus hom ens, incluindo os colaterais, com o se fossem seus filhos. Além disso, preocupa-se pouco com hierarquias, pelo m enos em circunstâncias com o as presentes, tanto assim que não foi com er à parte, está aqui, ocupa um lugar ao redor do lum e, e, se até agora tem participado pouco nas conversas, foi só para deixar os hom ens à vontade. Aqui m esm o um da cavalaria acaba de perguntar o que tem andado na cabeça de todos, E tu, ó cornaca, que raios vais tu fazer com o elefante a viena, Provavelm ente o m esm o que em lisboa, nada de im portante, respondeu subhro, irão dar-lhe m uitas palm as, irá sair m uita gente à rua, e depois esquecem -se dele, assim é a lei da vida, triunfo e olvido, Nem sem pre, Aos elefantes e aos hom ens, sem pre, em bora dos hom ens eu não deva falar, não passo de um indiano em terra que não é sua, m as, que eu conheça, só um elefante escapou a esta lei, Que elefante foi esse, perguntou um dos hom ens das forças, Um elefante que estava m oribundo e a quem cortaram a cabeça depois de m orto, Então acabou-se tudo aí, Não, a cabeça foi posta no pescoço de um deus que se cham a ganeixa e que estava m orto, Fala-nos desse tal ganeixa, disse o com andante, Com andante, a religião hinduísta é m uito com plicada, só um indiano está capacitado para com preendê-la, e nem todos o conseguem , Creio recordar que m e disseste que és cristão, E eu recordo-m e de ter respondido, m ais ou m enos, m eu com andante, m ais ou m enos, Que quer isso dizer na realidade, és ou não és cristão, Batizaram -m e na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois, nada, respondeu o cornaca com um encolher de om bros, Nunca praticaste, Não fui cham ado, senhor, devem ter-se esquecido de m im , Não perdeste nada com isso, disse a voz desconhecida que não foi possível localizar, m as que, em bora isto não sej a crível, pareceu ter brotado das brasas da fogueira. Fez-se um grande silêncio só interrom pido pelos estalidos da lenha a arder. Segundo a tua religião, quem foi que criou o universo, perguntou o com andante, Bram a, m eu senhor, Então, esse é deus,

Sim , m as não o único, Explica-te, É que não basta ter criado o universo, é preciso tam bém quem o conserve, e essa é a tarefa de outro deus, um que se cham a vixnu, Há m ais deuses além desses, cornaca, Tem os m ilhares, m as o terceiro em im portância é siva, o destruidor, Queres dizer que aquilo que vixnu conserva, siva o destrói, Não, m eu com andante, com siva, a m orte é entendida com o princípio gerador da vida, Se bem percebo, os três fazem parte de um a trindade, são um a trindade, com o no cristianism o, No cristianism o são quatro, m eu com andante, com perdão do atrevim ento, Quatro, exclam ou o com andante, estupefacto, quem é esse quarto, A virgem , m eu senhor, A virgem está fora disto, o que tem os é o pai, o filho e o espírito santo, E a virgem , Se não te explicas, corto-te a cabeça, com o fizeram ao elefante, Nunca ouvi pedir nada a deus, nem a j esus, nem ao espírito santo, m as a virgem não tem m ãos a m edir com tantos rogos, preces e solicitações que lhe chegam a casa a todas as horas do dia e da noite, Cuidado, que está aí a inquisição, para teu bem não te m etas em terrenos pantanosos, Se chego a viena, não volto m ais, Não regressas à índia, perguntou o com andante, Já não sou indiano, Em todo o caso vej o que do teu hinduísm o pareces saber m uito, Mais ou m enos, m eu com andante, m ais ou m enos, Porquê, Porque tudo isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada, Ganeixa é um a palavra, perguntou o com andante, Sim , um a palavra que, com o todas as m ais, só por outras palavras poderá ser explicada, m as, com o as palavras que tentaram explicar, quer tenham conseguido fazê-lo ou não, terão, por sua vez, de ser explicadas, o nosso discurso avançará sem rum o, alternará, com o por m aldição, o errado com o certo, sem se dar conta do que está bem e do que está m al, Conta-m e quem foi ganeixa, Ganeixa é filho de siva e de parvati, tam bém cham ada durga ou kali, a deusa dos cem braços, Se em vez de braços tivessem sido pernas, podíam os cham ar-lhe centopeia, disse um dos hom ens rindo-se contrafeito, com o arrependido do com entário m al ele lhe saíra da boca. O cornaca não lhe prestou atenção e prosseguiu, Há que dizer, com o aconteceu com a vossa virgem , que ganeixa foi gerado por sua m ãe, parvati, sem intervenção do m arido, siva, o que se explica pelo facto de que este, sendo eterno, não sentia nenhum a necessidade de ter filhos. Um dia, tendo parvati decidido tom ar banho, sucedeu que não havia guardas por ali a fim de a protegerem de alguém que quisesse entrar na sala. Então ela criou um ídolo com a form a de um rapazinho, feito com a pasta que havia preparado para lavar-se, e que não devia ser outra coisa que sabão. A deusa infundiu vida no boneco, e este foi o prim eiro nascim ento de ganeixa. Parvati ordenou a ganeixa que não perm itisse a entrada de ninguém e ele seguiu à risca as ordens da m ãe. Passado pouco tem po, siva regressou da floresta e quis entrar em casa, m as ganeixa não perm itiu, o que, com o é natural, enfureceu siva. Então deu-se o seguinte diálogo, Sou o esposo de parvati, portanto a casa dela é a m inha casa, Aqui só entra quem m inha m ãe quiser, e ela não m e disse que tu podias entrar. Siva perdeu a paciência e lançou-se num a feroz batalha com ganeixa, que term inou com o deus cortando com o seu tridente a cabeça ao adversário. Quando parvati saiu e viu o corpo sem vida do filho, os seus gritos de dor depressa se transform aram em uivos de fúria. Ordenou a siva que devolvesse im ediatam ente a vida a ganeixa, m as, por desgraça, o golpe que o tinha degolado havia sido tão poderoso que a cabeça foi atirada para m uito longe e nunca m ais a viram . Então, com o últim o recurso, siva foi pedir auxílio a bram a, que lhe sugeriu que substituísse a cabeça de ganeixa pela do prim eiro ser vivo que encontrasse no cam inho, desde que estivesse na direção norte. Siva m andou então o seu exército celestial para que tom asse a cabeça de qualquer criatura que encontrassem dorm indo com a cabeça na direção norte. Encontraram um elefante m oribundo

que dorm ia desta m aneira e, após a sua m orte, cortaram -lhe a cabeça. Regressaram aonde estavam siva e parvati e entregaram -lhes a cabeça do elefante, a qual foi colocada no corpo de ganeixa, trazendo-o de novo à vida. E foi assim que nasceu ganeixa depois de ter vivido e m orrido. Histórias da carochinha, resm ungou um soldado, Com o a daquele que, tendo m orrido, ressuscitou ao terceiro dia, respondeu subhro, Cuidado, cornaca, estás a ir longe de m ais, repreendeu o com andante, Eu tam bém não acredito no conto do m enino de sabão que veio a tornar-se deus com um corpo de hom em barrigudo e cabeça de elefante, m as foi-m e pedido que explicasse quem era ganeixa, e eu não fiz m ais que obedecer, Sim , m as fizeste considerações pouco am áveis sobre j esus cristo e a virgem que não caíram nada bem no espírito das pessoas aqui presentes, Peço desculpa a quem se sentiu ofendido, foi sem intenção, respondeu o cornaca.

Ouviu-se um m urm úrio de apaziguam ento, a verdade é que àqueles hom ens, tanto soldados com o paisanos, pouco lhes im portavam as disputas religiosas, o que os inquietava era que se tocasse em assuntos tão retorcidos debaixo da própria cúpula celeste. Costum a-se dizer que as paredes têm ouvidos, im agine-se o tam anho que terão as orelhas das estrelas. Fosse com o fosse, eram horas de ir para a cam a, os lençóis e as m antas dela as roupas que tinham vestidas, o im portante era que não lhes chovesse em cim a, e isso tinha-o conseguido o com andante indo de casa em casa a pedir que dessem abrigo, por esta noite, a dois ou três dos seus hom ens, dorm iriam em cozinhas, em estábulos, em palheiros, m as desta vez com a barriga cheia, o que com pensaria esses e outros inconvenientes. Com eles dispersaram uns quantos habitantes da aldeia, quase todos hom ens, que por ali tinham andado, atraídos pela novidade do elefante, do qual, por m edo, não conseguiriam aproxim ar-se a m enos de vinte passos. Enrolando com a trom ba um a porção de forragem que bastaria para satisfazer o prim eiro apetite de um esquadrão de vacas, salom ão, apesar da sua vista curta, lançou-lhes um olhar severo, dando claram ente a entender que não era um anim al de concurso, m as sim um trabalhador honrado a quem certos infortúnios, que seria dem asiado longo relatar aqui, haviam deixado sem trabalho e, por assim dizer, entregue à caridade pública. Ao princípio, um dos hom ens da aldeia, por bravata, ainda deu uns quantos passos para além da linha invisível que logo iria tornar-se em fronteira cerrada, m as salom ão despachou-lhe um coice de aviso que, em bora não atingindo o alvo, deu lugar a um interessante debate entre eles sobre fam ílias ou clãs de anim ais. Mulas, m ulos, burros, burras, cavalos, éguas, são quadrúpedes que, com o toda a gente sabe, e alguns por dolorosa experiência, dão coices, o que bem se com preende, um a vez que não dispõem de outras arm as, quer ofensivas quer defensivas, m as um elefante, com aquela trom ba e aqueles dentes, com aquelas patorras enorm es que lem bram m artelos-pilões, ainda por cim a, com o se fosse pouco o que j á tem , é capaz de escoicear. Sugere a m ansidão em figura quando se olha para ele, porém , caso sej a necessário, poderá tornar-se num a fera. De estranhar é que, pertencendo à fam ília dos anim ais acim a m encionados, isto é, à fam ília dos que dão coices, não leve ferraduras. Afinal, disse um dos cam poneses, um elefante não tem m uito que ver, dá-se-lhe um a volta e j á está. Os outros concordaram , Dá-se-lhe um a volta e fica tudo visto. Podiam ter-se retirado para as suas casas, para o conforto dos seus lares, m as um deles disse que ainda ficava um bocado por ali, que queria ouvir o que se estava dizendo ao redor daquela fogueira. Foram todos. Ao princípio não com preenderam de que se estava tratando, não entendiam os nom es, tinham acentuações estranhas, até que tudo se lhes tornou claro quando chegaram à conclusão de que se estava a falar do elefante e que o elefante era deus. Agora cam inhavam para as suas casas, para o

conforto dos lares, levando cada um consigo dois ou três hóspedes entre m ilitares e hom ens de forças. Com o elefante ficaram de sentinela dois soldados de cavalaria, o que m ais reforçou neles a ideia de que era urgente ir falar ao cura. As portas fecharam -se e a aldeia encolheu-se toda no m eio da escuridão. Pouco depois algum as tornaram a abrir-se sigilosam ente e os cinco hom ens que delas saíram encam inharam -se para a praça do poço, ponto de reunião que haviam com binado. A ideia deles era ir falar com o padre, que a esta hora j á estaria na cam a e provavelm ente a dorm ir. O reverendo era conhecido pelo seu péssim o hum or quando o despertavam a horas inconvenientes, que para ele eram todas em que estivesse nos braços de m orfeu. Um dos hom ens ainda aventurou um a alternativa, E se viéssem os de m anhã, perguntou, m as outro, m ais determ inado, ou sim plesm ente m ais propenso à lógica das previsões, obj etou, Se eles tiverem decidido sair ao alvorecer, arriscam o-nos a não encontrar ninguém , com boa cara de parvos ficaríam os então. Estavam diante da porta do passal e parecia que nenhum dos noturnos visitantes se ia atrever a levantar a aldraba. Aldraba tinha-a tam bém a porta da residência, m as essa era dem asiado pequena para conseguir acordar o inquilino. Por fim , com o um tiro de canhão no silêncio pétreo da aldeia, a aldraba do passal deu sinal de vida. Ainda teve de disparar m ais duas vezes antes que de dentro se ouvisse a voz rouca e irritada do cura, Quem é. Obviam ente, não era prudente nem cóm odo falar de deus em plena rua, tendo por m eio algum as paredes e um portão de m adeira grossa. Não tardaria m uito que os vizinhos pusessem o ouvido à escuta das altas vozes com que seriam obrigadas a com unicar-se as partes dialogantes, transform ando assim um a gravíssim a questão teológica na fábula da tem porada. A porta da residência abriu-se enfim e a cabeça redonda do cura apareceu, Que querem vocês a estas horas da noite. Os hom ens deixaram o portão do passal e avançaram , arrastando os pés, para a outra porta. Está alguém a m orrer, perguntou o cura. Todos disseram que não senhor. Então, insistiu o servo de deus, aconchegando-se m elhor com a m anta que tinha lançado sobre os om bros, Na rua não podem os falar, disse um hom em . O cura resm ungou, Pois se não podem falar na rua, vão am anhã à igrej a, Tem os de falar agora, senhor padre, am anhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é m uito sério, é um assunto de igrej a, De igrej a, repetiu o cura, subitam ente inquieto, pensando que o apodrecido travej am ento do teto tinha vindo abaixo, Sim senhor, de igrej a, Então entrem , entrem . Em purrou-os para a cozinha em cuj a lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queim ada, acendeu um a candeia, sentou-se num m ocho e disse, Falem . Os hom ens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, m as estava claro que só tinha realm ente legitim idade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o com andante e o cornaca. Não foi preciso votar, o hom em em questão tinha tom ado a palavra, Senhor padre, deus é um elefante. O padre suspirou de alívio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do m ais, a herética afirm ação era de fácil resposta, Deus está em todas as suas criaturas, disse. Os hom ens m overam as cabeças no m odo afirm ativo, m as o porta-voz, m uito consciente dos seus direitos e das suas responsabilidades, retorquiu, Mas nenhum a delas é deus, Era o que faltava, respondeu o cura, teríam os aí um m undo a abarrotar de deuses, e ninguém se entenderia, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, Senhor padre, o que nós ouvim os, com estes ouvidos que a terra há-de com er, é que o elefante que aí está é deus, Quem foi que proferiu sem elhante barbaridade, perguntou o cura usando um a palavra não corrente na aldeia, o que nele era claro sinal de enfado, O com andante da cavalaria e o hom em que viaj a em cim a, Em cim a de quê, De deus, do anim al. O cura respirou fundo,

suj eitou o ânim o que o estava im pelindo a m aiores extrem os e perguntou, Vocês estão bêbados, Não, senhor padre, respondeu o coro, é difícil estar bêbado nos tem pos que correm , o vinho está caro, Então, se não estão bêbados, se apesar desse conto de perlim pim pim continuam a ser bons cristãos, ouçam -m e bem . Os hom ens aproxim aram -se para não perderem um a palavra, e o cura, depois de ter lim pado a carraspeira que sentia na garganta e que, pensava ele, era resultado de ter saído bruscam ente da quentura dos lençóis para o frio am biente exterior, com eçou o serm ão, Eu podia m andá-los para casa com um a penitência, uns quantos padre-nossos e um as quantas ave-m arias, e não pensar m ais no caso, m as com o todos m e pareceis de boa-fé, am anhã de m anhã, antes de nascer o sol, irem os eu e vocês, com as vossas fam ílias, e tam bém todos os outros vizinhos da aldeia, a quem tereis de avisar, aonde se encontra o elefante, não para o excom ungar, um a vez que, sendo um anim al, não recebeu o santo sacram ento do batism o nem pôde acolher-se aos bens espirituais concedidos pela igrej a, m as para o lim par de qualquer possessão diabólica que haj a sido introduzida pelo m aligno na sua natureza de bruto, com o aconteceu aos dois m il porcos que se afogaram no m ar da galileia, com o deveis estar lem brados.

Abriu espaço para um a pausa, e logo perguntou, Entendidos, Sim senhor, responderam todos, exceto o porta-voz que ia tom ando cada vez m ais a sério a sua função, Senhor padre, disse, esse caso sem pre m e fez confusão na cabeça, Porquê, Não percebo por que tinham esses porcos que m orrer, está bem que j esus tenha feito o m ilagre de expulsar os espíritos im undos do corpo do geraseno, m as consentir que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca m e pareceu um a boa m aneira de acabar o trabalho, tanto m ais que, sendo os dem ónios im ortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído à água j á os dem ónios se haviam escapado, em m inha opinião j esus não pensou bem , E tu quem és para dizeres que j esus não pensou bem , Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler, m as sei ouvir, Há algum a bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de um a bíblia, m as alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A m inha filha m ais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, m as, graças às vezes que j á leu o m esm o, vam os percebendo-a cada vez m elhor, Em com pensação, o pior é que, com tais pensam entos e opiniões, se a inquisição aqui chega serás o prim eiro a ir para a fogueira, A gente de algum a coisa terá de m orrer, padre, Não m e venhas com estupidezes, deixa-te de evangelhos e dá m ais atenção ao que eu digo na igrej a, apontar o cam inho reto é m issão m inha e de m ais ninguém , lem bra-te de que quem se m ete por atalhos, nunca sai de sobressaltos, Sim , padre, Do que aqui se disse, nem um a palavra, se alguém , fora dos que aqui estão, m e vier falar destes assuntos, aquele que de vocês tiver dado com a língua nos dentes sofrerá pena de excom unhão m aior, nem que eu tenha de ir andando a rom a para dar testem unho pessoalm ente. O cura fez um a pausa dram ática, e depois perguntou em voz cavernosa, Entendidos, Sim , padre, entendidos, Am anhã, antes que o sol nasça, quero toda a gente no adro da igrej a, eu, vosso pastor, irei na dianteira, e j untos, com a m inha palavra e a vossa presença, pelej arem os pela nossa santa religião, lem brai-vos, o povo unido j am ais será vencido.

O dia am anheceu nevoento, m as ninguém se havia perdido, toda a gente encontrou, no m eio de um a neblina quase tão espessa com o um a sopa feita só de batatas cozidas, um cam inho para chegar à igrej a com o antes encontraram o acam pam ento os hóspedes a quem os aldeões haviam

dado abrigo. Estavam ali todos, desde a m ais tenra criancinha ao colo de sua m ãe até ao ancião m ais velho da aldeia ainda capaz de andar, graças ao auxílio do pau que funcionava com o sua terceira perna. Não as tinha tantas com o a centopeia, que quando chegam a velhas têm necessidade de um a grande quantidade de bastões, o que afinal resulta em saldo a favor da espécie hum ana, que só precisa de três, salvo casos m ais graves, em que os ditos bastões m udam de nom e e passam a cham ar-se m uletas. Destes, graças à divina providência que por todos nós vela, não os havia na aldeia. A coluna cam inhava em passo bastante firm e, fazendo das fraquezas forças, pronta para escrever um a nova página de abnegado heroísm o nos anais da aldeia, as outras não tinham m uito para oferecer à leitura dos eruditos, som ente que nascem os, trabalham os e m orrem os. Quase todas as m ulheres iam arm adas dos seus rosários e m urm uravam preces, provavelm ente para reforçar o ânim o do cura, que avançava à frente, m unido do aspersório e da caldeirinha de água benta. Por causa da neblina, os hom ens da caravana não se haviam dispersado com o teria sido natural, esperavam em pequenos grupos a bucha da m anhã, incluindo os m ilitares, que, m ais m adrugadores, j á tinham arreado os cavalos.

Quando os vizinhos com eçaram a sair da sopa de batata, o pessoal responsável pelo elefante m oveu-se instintivam ente ao seu encontro, levando na vanguarda, por dever de ofício, os soldados de cavalaria. Ao chegarem ao alcance da voz o cura deteve-se, levantou a m ão em sinal de paz, deu de lá os bons-dias e perguntou, Onde está o elefante, querem os vê-lo. O sargento considerou razoáveis tanto a pergunta com o o pedido e respondeu, Atrás daquelas árvores, agora para verem o elefante terão de falar prim eiro com o com andante do pelotão e com o cornaca, Quem é o cornaca, É o hom em que vai em cim a, Em cim a de quê, Em cim a do elefante, de que havia de ser, Quer dizer que cornaca significa o que vai em cim a, Não sei o que significa, só sei que vai em cim a, a palavra parece que veio da índia. A conversação, por este andar, am eaçaria eternizar-se se não fosse o caso de se estarem aproxim ando o com andante e o cornaca, atraídos pela curiosidade de haverem vislum brado, através da névoa que ali com eçara a desfazer-se um pouco, o que podiam ser dois exércitos enfrentados. Lá vem o com andante, disse o sargento, feliz por ficar fora de um a conversação que j á estava a pô-lo nervoso. O com andante disse, Bons dias a todos, e perguntou, Em que posso servi-los, Gostaríam os de ver o elefante, A hora não é a m elhor, interveio o cornaca, o elefante tem m au acordar. A isto o padre respondeu, É que além de o verem as m inhas ovelhas e eu, tam bém o queria benzer para a viagem , trago aqui o aspersório e a caldeirinha de água benta, É um a bonita ideia, disse o com andante, até agora nenhum sacerdote dos que viem os encontrando pelo cam inho se tinha oferecido para abençoar o salom ão, Quem é o salom ão, perguntou o cura, O elefante cham a-se salom ão, respondeu o cornaca, Não m e parece próprio dar a um anim al o nom e de um a pessoa, os anim ais não são pessoas e as pessoas tão pouco são anim ais, Não tenho tanto a certeza disso, respondeu o cornaca, que com eçava a em birrar com a parlenga, É a diferença entre quem fez estudos e quem não os tem , rem atou, com censurável sobranceria, o cura. Dito isto, virou-se para o com andante e perguntou, Dá vossa senhoria licença que eu cum pra a m inha obrigação de sacerdote, Por m im , sim , padre, ainda que o elefante não estej a sob o m eu poder, m as do cornaca. Em vez de esperar que o cura lhe dirigisse a palavra, subhro acudiu em tom suspeitosam ente am ável, Por quem é, senhor padre, o salom ão é todo seu. Ora, é tem po de avisar o leitor de que há aqui duas personagens que não estão de boa-fé. Em prim eiríssim o lugar, o cura, que, ao contrário do que disse, não traz na caldeirinha água benta, m as água do poço, transvasada diretam ente do cântaro

da cozinha, sem passagem , real ou sim bólica, pelo em píreo, em segundo lugar o cornaca, que espera que algo aconteça e que está fazendo preces ao deus ganeixa para que aconteça m esm o.

Não se chegue dem asiado, preveniu o com andante, olhe que ele tem três m etros de altura e pesa um as quatro toneladas, se não m ais, Não pode ser tão perigoso com o a besta do leviatão, e a esse o tem subj ugado por toda a vida a santa religião católica, apostólica e rom ana a que pertenço, Eu avisei, a responsabilidade é sua, disse o com andante, que na sua experiência de m ilitar havia escutado m uitas bravatas e constatado o triste resultado de quase todas elas. O cura m ergulhou o aspersório na água, deu três passos em frente e salpicou com ele a cabeça do elefante, ao m esm o tem po que m urm urava um as palavras que tinham todo o ar de ser latinas, m as que ninguém entendeu, nem sequer a reduzidíssim a parte ilustrada da assistência, isto é, o com andante, que estivera alguns anos no sem inário, resultado de um a crise m ística, que viria a curar-se por si m esm a. O reverendo continuava o seu trabalho e, aos poucos, ia-se aproxim ando da outra extrem idade do anim al, m ovim ento que coincidiu com a aceleração das preces do cornaca ao deus ganeixa e com o súbito descobrim ento, por parte do com andante, de que as palavras e os gestos que o padre vinha fazendo pertenciam ao m anual do exorcism o, com o se o pobre do elefante pudesse estar possesso de algum dem ónio. Este hom em está doido, pensou o com andante, e no instante m esm o em que o pensou, viu o cura ser atirado ao chão, caldeirinha para um lado, aspersório para outro, a água derram ada. As ovelhas avançaram para acudir ao seu pastor, m as os soldados interpuseram -se para evitar atropelos e confusões, e, se bem o pensaram , m elhor o fizeram , porque o cura, aj udado pelos hércules locais, j á tentava levantar-se, m anifestam ente dorido da anca esquerda, m as, por todos os indícios, sem nenhum osso partido, o que, tendo em conta a avançada idade e a flácida corpulência do indivíduo, quase se poderia considerar um dos m ais acabados m ilagres da santa padroeira da terra. O que realm ente sucedeu, e não virem os a conhecer nunca a causa, m istério inexplicável a j untar a tantos outros, foi que salom ão, a m enos de um palm o do alvo do trem endo coice que tinha com eçado por desferir, travou e suavizou o im pacte, de m odo a que os efeitos não fossem além dos que resultariam de um em purrão sério, m as sem acinte, e m uito m enos com intenção de m atar.

Faltando-lhe, com o a nós, esta im portante inform ação, o cura lim itava-se a dizer, azam boado, Foi castigo do céu, foi castigo do céu. A partir de hoj e, quando se falar de elefantes na sua presença, e hão-de ser m uitas as vezes, haj a vista o que aconteceu aqui, em m anhã brum osa, perante tantas testem unhas presenciais, sem pre dirá que esses anim ais, aparentem ente brutos, são tão inteligentes que, além de terem um as luzes de latim , até são capazes de distinguir a água benta daquela que o não é. Manquej ando, o cura deixou-se conduzir para a cadeira de braços de pau-preto, de estilo abacial, um a preciosa obra de ensam blador que quatro dos seus m ais dedicados fâm ulos haviam ido buscar à igrej a. Já não estarem os aqui quando se organizar o regresso à aldeia. A discussão será brava, com o é natural esperar de seres pouco dados aos exercícios da razão, hom ens e m ulheres que por dá cá aquela palha chegam às m ãos, m esm o quando, com o neste caso, se trate de decidir sobre um a obra tão pia com o a de carregar com o seu pastor até casa e m etê-lo na cam a. O cura não será de grande aj uda para dirim ir o pleito porquanto cairá num torpor que preocupará toda a gente, m enos a bruxa da terra, Sosseguem , disse, não há sinais de m orte próxim a, nem para hoj e, nem para am anhã, nada que não possa resolver-se com um as boas fricções nas partes afetadas e um as tisanas para depurar o sangue e não o deixar corrom per-se, e, j á agora, deixem -se de zaragatas que sem pre acabam em cabeças partidas, o

que devem fazer é revezar-se de cinquenta em cinquenta passos, e todos m uito am igos. Tinha razão a bruxa.

A caravana de hom ens, cavalos, bois e elefante foi engolida definitivam ente pela brum a, nem sequer se distingue a m ancha do extenso vulto do aj untam ento que form am . Vam os ter de correr para alcançá-la. Felizm ente, considerando o pouco tem po que ficám os a assistir ao debate dos hércules da aldeia, o pessoal não poderá ir m uito longe. Em situação de visibilidade norm al ou de brum a m enos parecida com puré que esta, bastaria seguir os rastos das grossas rodas do carro de bois e do carro da intendência no chão am olecido, m as, agora, nem m esm o com o nariz a roçar a terra se conseguia descobrir que por aqui passou gente. E não só gente, tam bém anim ais, com o ficou dito, alguns de certo porte, com o os bois e os cavalos, e em particular o paquiderm e conhecido na corte portuguesa com o salom ão, cuj os pés, só por si, teriam deixado no solo a m arca de um as pegadas enorm es, quase circulares, com o as dos dinossauros de pés redondos, se algum a vez existiram . Já que estam os falando de anim ais, o que parece im possível é que ninguém em lisboa se tenha lem brado de m andar trazer dois ou três cães. Um cão é um seguro de vida, um rastreador de rum os, um a bússola com quatro patas. Bastaria dizer-lhe, Busca, e em m enos de cinco m inutos o teríam os de volta, com o rabo a abanar e os olhos a brilharem de felicidade. Não há vento, porém a névoa parece m over-se em lentos turbilhões com o se o próprio bóreas, em pessoa, a estivesse soprando desde o m ais recôndito norte e dos gelos eternos.

O que não está bem , confessem o-lo, é que, em situação tão delicada com o esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade.

A esta hora os com panheiros da caravana j á deram com certeza pela falta do ausente, dois deles declararam -se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso náufrago, e isso seria m uito de agradecer se não fosse a fam a de poltrão que o iria acom panhar para o resto da vida, Im aginem , diria a voz pública, o tipo ali sentado, à espera de que aparecesse alguém a salvá-lo, há gente que não tem vergonha nenhum a. É verdade que tinha estado sentado, m as agora j á se levantou e deu coraj osam ente o prim eiro passo, a perna direita adiante, para esconj urar os m alefícios do destino e dos seus poderosos aliados, a sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para m enos, pois o chão deixara de poder ver-se, com o se um a nova m aré de nevoeiro tivesse com eçado a subir. Ao terceiro passo j á não consegue nem sequer ver as suas próprias m ãos estendidas à frente, com o para proteger o nariz do choque contra um a porta inesperada. Foi então que um a outra ideia se lhe apresentou, a de que o cam inho fizesse curvas para um lado ou para o outro, e que o rum o que tom ara, um a linha que não queria apenas ser reta, um a linha que queria tam bém m anter-se constante nessa direção, acabasse por conduzi-lo a páram os onde a perdição do seu ser, tanto da alm a com o do corpo, estaria assegurada, neste últim o caso com consequências im ediatas. E tudo isto, ó sorte m ofina, sem um cão para lhe enxugar as lágrim as quando o grande m om ento chegasse. Ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si m esm o, m as, perdido o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais com o se estivesse num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou m elhor resposta que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a sorte, qualquer deles ou todos j untos, trouxessem os abnegados voluntários ao m inúsculo palm o de terra em que se encontrava, com o um a ilha no m ar oceano, sem com unicações. Com m ais propriedade, um a agulha em palheiro. Ao cabo de três m inutos,

dorm ia. Estranho anim al é este bicho hom em , tão capaz de trem endas insónias por causa de um a insignificância com o de dorm ir à perna solta na véspera da batalha. Assim sucedeu. Ferrou no sono, e é de crer que ainda hoj e estaria a dorm ir se salom ão não tivesse soltado, de repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cuj os ecos deveriam ter chegado às distantes m argens do ganges. Aturdido pelo brusco despertar, não conseguiu discernir em que direção poderia estar o em issor sonoro que decidira salvá-lo de um enregelam ento fatal, ou pior ainda, porque isto é terra de lobos, e um hom em sozinho e desarm ado não tem salvação ante um a alcateia ou um sim ples exem plar da espécie. A segunda cham ada de salom ão foi m ais potente ainda que a prim eira, com eçou por um a espécie de gorgolej o surdo nos abism os da garganta, com o um rufar de tam bores, a que im ediatam ente se sucedeu o clangor sincopado que form a o grito deste anim al. O hom em j á vai atravessando a brum a com o um cavaleiro disparado à carga, de lança em riste, enquanto m entalm ente im plora, Outra vez, salom ão, por favor, outra vez. E

salom ão fez-lhe a vontade, soltou novo barrito, m enos forte, com o de sim ples confirm ação, porque o náufrago que era j á deixara de o ser, j á vem chegando, aqui está o carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os porm enores porque as coisas e as pessoas são com o borrões indistintos, outra ideia nos ocorreu agora, bastante m ais incóm oda, suponham os que este nevoeiro é dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante, apesar de grossa, que não há tigre que lhe m eta o dente, os nevoeiros não são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça um a celada bem aj ustada. A um soldado que passa, levando o cavalo pela reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários j á regressaram da m issão de salvam ento e resgate, e ele respondeu à interpelação com um olhar desconfiado, com o se estivesse diante de um provocador, que havê-los j á os havia em abundância no século dezasseis, basta consultar os arquivos da inquisição, e diz, secam ente, Onde é que você foi buscar essas fantasias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro destes a única atitude sensata foi a que tom ám os, m anter-nos j untos até que ele decidisse por si m esm o levantar-se, aliás, pedir voluntários não é m uito do estilo do com andante, em geral lim ita-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em frente, m arche, o com andante diz que, heróis, heróis, ou vam os sê-lo todos, ou ninguém . Para tornar m ais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado içou-se rapidam ente para cim a do cavalo, disse até logo e desapareceu no nevoeiro. Não ia satisfeito consigo m esm o.

Tinha dado explicações que ninguém lhe havia pedido, feito com entários para que não estava autorizado. No entanto, tranquilizava-o o facto de que o hom em , em bora não parecesse ter o físico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo m enos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para aj udar a em purrar e puxar os carros de bois nos passos difíceis, gente de poucos falares e, em princípio, escassíssim a im aginação. Em princípio, diga-se, porque ao hom em perdido no nevoeiro im aginação foi o que pareceu não lhe ter faltado, haj a vista a ligeireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários que deveriam ter ido salvá-lo.

Felizm ente para a sua credibilidade pública, o elefante é outra coisa. Grande, enorm e, barrigudo, com um a voz de estarrecer aos m enos tim oratos e um a trom ba com o não a tem nenhum outro anim al da criação, o elefante nunca poderia ser produto de um a im aginação, por m uito fértil e dada ao risco que fosse. O elefante, sim plesm ente, ou existiria, ou não existiria. É portanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a energia com que usou a salvadora trom beta que deus lhe deu, se este sítio fosse o vale de j osafá teriam ressuscitado os m ortos, m as sendo apenas o que é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém , quem , esteve a ponto de

m orrer de frio e abandono, direm os, para não perder de todo a trabalhosa com paração em que nos m etem os, que há ressurreições tão bem adm inistradas que chega a ser possível executá-las antes do passam ento do próprio suj eito. Foi com o se o elefante tivesse pensado, Aquele pobre diabo vai m orrer, vou ressuscitá-lo. E aqui tem os o pobre diabo desfazendo-se em agradecim entos, em j uras de gratidão para toda a vida, até que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para que você lhe estej a tão agradecido, Se não fosse ele, eu teria m orrido de frio ou teria sido com ido pelos lobos, E com o conseguiu ele isso, se não saiu daqui desde que acordou, Não precisou de sair daqui, bastou-lhe soprar na sua trom beta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que m e salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salom ão, sou eu, que para isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter ouvido um barrito, Um barrito, não, os barritos que estas orelhas que a terra há-de com er ouviram foram três. O cornaca pensou, Este fulano está doido varrido, variou-se-lhe a cabeça com a febre do nevoeiro, foi o m ais certo, tem -se ouvido falar de casos assim . Depois, em voz alta, Para não estarm os aqui a discutir, barrito sim , barrito não, barrito talvez, pergunte você a esses hom ens que aí vêm se ouviram algum a coisa. Os hom ens, três vultos cuj os difusos contornos pareciam oscilar e trem er a cada passo, davam im ediata vontade de perguntar, Onde é que vocês querem ir com sem elhante tem po. Sabem os que não era esta a pergunta que o m aníaco dos barritos lhes fazia neste m om ento e sabem os a resposta que lhe estavam a dar. O

que não sabem os é se algum as destas coisas estão relacionadas um as com as outras, e quais, e com o. O certo é que o sol, com o um a im ensa vassoura lum inosa, rom peu de repente o nevoeiro e em purrou-o para longe. A paisagem fez-se visível no que sem pre havia sido, pedras, árvores, barrancos, m ontanhas. Os três hom ens j á não estão aqui. O cornaca abre a boca para falar, m as torna a fechá-la. O m aníaco dos barritos com eçou a perder consistência e volum e, a encolher-se, tornou-se m eio redondo, transparente com o um a bola de sabão, se é que os péssim os sabões que se fabricam neste tem po são capazes de form ar aquelas m aravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de repente desapareceu da vista. Fez plof e sum iu-se. Há onom atopeias providenciais. Im agine-se que tínham os de descrever o processo de sum ição do suj eito com todos os porm enores. Seriam precisas, pelo m enos, dez páginas. Plof.

Casualm ente, talvez por efeito de qualquer alteração atm osférica, o com andante achou-se a pensar na m ulher e nos filhos, ela, grávida de cinco m eses, eles, um rapazinho e um a m enina, com seis e quatro anos respectivam ente. As rudes gentes destas épocas que ainda m al saíram da barbárie prim eva prestam tão pouca atenção aos sentim entos delicados que raras vezes lhes dão uso. Em bora j á estej a a ser notada por aqui certa ferm entação de em oções na trabalhosa constituição de um a identidade nacional coerente e coesa, a saudade e os seus subprodutos ainda não foram integrados em portugal com o filosofia habitual de vida, o que tem dado origem a não poucas dificuldades de com unicação na sociedade em geral, e tam bém a não poucas perplexidades na relação de cada um consigo m esm o. Por exem plo, em nom e do m ais óbvio senso com um , não seria aconselhável que nos chegássem os ao estribo do com andante para perguntar, Diga-m e, com andante, tem saudades da sua esposa e dos seus filhinhos. O interpelado, ainda que não com pletam ente desprovido de gosto e sensibilidade, com o j á se deve ter podido observar em diversos passos deste relato, guardando sem pre, claro está, a m ais recatada discrição para não chocar o pudor da personagem , olhar-nos-ia com surpresa pela nossa patente falta de tato e dar-nos-ia um a resposta vaga, aérea, sem princípio nem fim , deixando-nos, pelo m enos, com sérias preocupações sobre a vida íntim a do casal. É certo que o com andante nunca cantou um a serenata nem escreveu, que se saiba, um sonetilho, um só que fosse, m as isto não significa que não sej a, digam os que por natureza, m uito com petente para estim ar as coisas belas que têm vindo a ser criadas pelo engenho dos seus sem elhantes. A um a delas, por exem plo, poderia tê-la trazido consigo, em brulhada em panos na m ochila, com o j á o fizera em outras deslocações m ais ou m enos bélicas, m as desta vez preferiu deixá-la no seguro da casa. Dada a escassez do soldo que cobra, não raro com atraso, o qual, com o é evidente, não foi calculado pela fazenda para luxos da tropa, o com andante, se quis a sua j oia, j á lá vai um a boa dúzia de anos, teve de vender um boldrié rico de m ateriais, delicado de desenho e notável de decoração, em todo o caso m ais para luzir nos salões que no cam po de batalha, um a m agnífica peça de equipam ento m ilitar que tinha sido propriedade do avô m aterno e que, desde então, se convertera em obj eto de desej o de quantos a viam . No seu lugar, m as não para os m esm os fins, encontra-se, desde então, um grosso volum e, com o título de am adis de gaula, obra de que terá sido autor, com o j uram alguns eruditos m ais patriotas, um tal vasco de lobeira, português do século catorze, a qual obra viria a ser publicada em saragoça, em tradução castelhana, em m il quinhentos e oito por garci rodriguez de m ontalvo, que lhe acrescentou uns quantos capítulos de aventuras e am ores e em endou e corrigiu os antigos textos. Suspeita o com andante que o seu exem plar veio de cepa bastarda, de um a edição dessas a que hoj e cham am os piratas, o que m ostra quão de longe vêm j á certas ilícitas práticas com erciais. Salom ão, outras vezes o tem os dito, falam os do rei de j udá, não do elefante, tinha razão quando escreveu que não havia nada de novo debaixo da roda do sol. Custa a im aginar que tudo j á fosse igual a tudo naquelas bíblicas eras, quando a nossa pertinaz inocência continua a obstinar-se em im aginá-las líricas, bucólicas e pastoris, por tão próxim as estarem ainda dos prim eiros tenteios da nossa ocidental civilização.

O com andante anda a ler pela quarta ou quinta vez o seu am adis. Com o em qualquer outra novela de cavalarias, não faltam batalhas sangrentas, pernas e braços am putados cerce, corpos cortados pela cintura, o que diz m uito sobre a força bruta daqueles espirituais cavaleiros, um a vez que nessa época não eram conhecidas, nem im agináveis, as virtudes seccionadoras das ligas m etálicas com o vanádio e o m olibdénio, hoj e fáceis de encontrar em qualquer faca de cozinha, o que dem onstra quanto tem os vindo a progredir na boa direção. O livro conta com m inúcia e deleite os atribulados am ores de am adis de gaula e oriana, am bos filhos de reis, o que não foi obstáculo para que a m ãe dele tivesse decidido enj eitá-lo, m andando que levassem o m enino ao m ar e ali, num caixote de m adeira, com um a espada ao lado, o abandonassem à m ercê das correntes m arítim as e do ím peto das ondas. Quanto a oriana, a pobre, contra sua vontade, viu-se prom etida em casam ento pelo próprio pai ao im perador de rom a, quando todos os seus desej os e ilusões estavam postos em am adis, a quem am ava desde os sete anos, quando o m ocinho tinha doze, em bora pela com pleição física j á aparentasse os quinze. Verem -se e am arem -se havia sido obra de um instante de deslum bram ento que perm aneceu intacto durante toda a vida. Era o tem po em que a andante cavalaria se havia proposto term inar a obra de deus, isto é, elim inar o m al do planeta. Era tam bém o tem po em que o am or só o era se fosse extrem o, radical, em que a fidelidade absoluta era um dom do espírito tão natural com o o com er e o beber o era do corpo.

E, falando de corpo, é caso para perguntar em que estado estaria o de am adis, tão cosido de cicatrizes, abraçado ao corpo perfeito da sem par oriana. As arm aduras, sem o m olibdénio e o vanádio, de pouco poderiam servir, e o narrador da história não disfarça a fragilidade das chapas e das cotas de m alha. Um sim ples golpe de espada inutilizava um elm o e abria a cabeça que estava dentro. É assom broso com o aquela gente conseguiu chegar viva ao século em que estam os. Já gostaria eu, suspirou o com andante. Ao m enos por um tem po não se im portaria de ceder a sua patente de capitão a troco de cavalgar, em figura de um novo am adis de gaula, pelas praias da ilha firm e ou pelos bosques e serranias onde se acoitavam os inim igos do senhor. A vida de um capitão de cavalos português, em tem po de paz, é um a com pleta pasm aceira, há que dar voltas e voltas à cabeça para encontrar algo em que ocupar com suficiente proveito distrativo as horas m ortas do dia. O capitão im agina a am adis cavalgando por estas penhas agrestes, com o im piedoso pedregal a castigar os cascos do cavalo e o escudeiro gandalim a dizer ao am igo que é tem po de descansar. O voto fantasista fê-lo desviar o rum o do pensam ento para um a questão fora da literatura, cingida à disciplina m ilitar naquilo que ela tem de m ais básico, o cum prim ento das ordens recebidas. Se o com andante tivesse podido entrar nas cogitações do rei dom j oão terceiro no m om ento, atrás descrito, em que a real pessoa im aginou salom ão e a sua com itiva a pisar as extensas e m onótonas distâncias de castela, não estaria agora aqui, subindo e descendo estes barrancos, ladeando estas perigosas ladeiras, enquanto o boieiro tenta descobrir cam inhos não dem asiado desviados de cada vez que os incipientes e m al definidos carreiros desaparecem sob os penhascos rolados e as lascas de xisto. Em bora o rei não tivesse chegado a expressar a sua opinião e ninguém se tivesse atrevido a pedir-lha por m otivo tão de som enos, o oficial com andante-geral da cavalaria deu a sua aprovação, a rota pelas planícies de castela era realm ente a m ais indicada, a m ais suave, praticam ente, com o j á se disse, um passeio ao cam po.

Estava-se nisto, e dir-se-ia não haver qualquer razão para um a reconsideração do itinerário, quando o secretário pêro de alcáçova carneiro, casualm ente inform ado do acordo, resolveu tom ar cartas no assunto. Disse ele, Não m e parece bem , senhor, isso a que estais a cham ar

passeio ao cam po, se não usarm os de cautela, poderá vir a ter consequências negativas, m uito sérias, m esm o graves, Não estou a ver porquê, senhor secretário, Im agine que viessem a surgir problem as de abastecim ento com as populações durante a travessia de castela, tanto por causa da água com o por causa das forragens, im agine que a gente de lá se recusa a quaisquer tratos de com pra e venda conosco, m esm o indo isso contra os seus interesses no m om ento, Sim , pode suceder, reconheceu o oficial, Im agine tam bém que as quadrilhas de bandoleiros, que as há por lá, m uito m ais que aqui, vendo tão reduzida a proteção que dam os ao elefante, trinta soldados de cavalaria não são nada, Perm ita-m e não concordar consigo, senhor secretário, se trinta soldados portugueses tivessem estado nas term ópilas de um lado ou do outro, por exem plo, o resultado da luta teria sido diferente, Peço-lhe desculpa, senhor, longe de m im a intenção de ofender os brios do nosso glorioso exército, m as, torno a dizer, im agine que esses bandidos, que certam ente sabem o que é o m arfim , se j untam para atacar-nos, m atar o elefante e arrancar-lhe os dentes, Tenho ouvido dizer que as balas não atravessam a pele desses anim ais, É possível, m as haveria certam ente outras m aneiras de o m atar, o que peço a vossa alteza, sobretudo, é que pense na vergonha que para nós seria perder o presente para o arquiduque m axim iliano num a escaram uça com bandoleiros espanhóis e em território espanhol, Que pensa então o senhor secretário que devam os fazer, Para a rota de castela só existe um a alternativa, a nossa própria, ao longo da fronteira, em direção ao norte, até castelo rodrigo, São m aus cam inhos, disse o oficial, o senhor secretário não conhece aquilo, Pois não, m as não tem os outra solução, e esta, ainda por cim a, tem um a vantagem com plem entar, Qual, senhor secretário, A de poderm os fazer a m aior parte do percurso em território nacional, Porm enor im portante, sem dúvida, o senhor secretário pensa em tudo.

Duas sem anas depois desta conversação tornou-se evidente que o secretário pêro de alcáçova carneiro, afinal, não havia pensado em tudo. Um m ensageiro do secretário do arquiduque chegou com um a carta em que, entre outras frioleiras que pareciam postas ali para desviar a atenção, se perguntava por que ponto da fronteira entraria o elefante, pois aí iria estar um destacam ento m ilitar espanhol ou austríaco para o receber. O secretário português respondeu pela m esm a via, inform ando que a entrada se faria pela fronteira de castelo rodrigo, e, ato contínuo, com eçou a organizar o seu contra-ataque. Ainda que estas palavras possam parecer um exagero fora de propósito, tendo em conta que a paz reina entre os dois países ibéricos, a verdade é que o sexto sentido de que pêro de alcáçova carneiro é dotado não tinha gostado nada de ver na carta do seu colega espanhol aquela palavra receber. O hom em podia ter usado os term os acolher ou dar as boas-vindas, m as não, ou dissera m ais do que pensava ou, com o se costum a dizer, fugira-lhe a boca para a verdade. Um as quantas instruções ao capitão de cavalos sobre o procedim ento a seguir evitarão m al-entendidos, pensara pêro de alcáçova carneiro, se o outro lado estiver na m esm a disposição. O resultado destes planos estratégicos está a ser anunciado pelo sargento, noutro lugar e uns quantos dias depois, neste preciso instante, Vêm aí atrás dois cavaleiros, m eu com andante. O com andante olhou, era evidente que os ginetes, num trote largo e eficaz, vinham com pressa. O sargento tinha m andado fazer alto à coluna, e, pelo sim , pelo não, pusera os visitantes na m ira discreta de um as quantas espingardas. Com os m em bros trém ulos e a espum a a cair-lhes da boca, os cavalos resfolgaram quando os fizeram estacar. Os dois hom ens saudaram , e um deles disse, Som os portadores de um a m ensagem do secretário pêro de

alcáçova carneiro para o com andante da força que acom panha o elefante, Sou eu esse com andante. O hom em abriu a m ochila, retirou de lá um papel dobrado em quatro, selado com o tim bre oficial da secretaria do reino, e entregou-o ao com andante, que se afastou um as dezenas de passos para o ler. Quando regressou brilhavam -lhe os olhos. Cham ou o sargento de parte e disse-lhe, Sargento, m ande dar de com er a estes hom ens e que lhes preparem um farnel para o cam inho, Sim , m eu com andante, Avise toda a gente de que, a partir de agora, avançarem os a m archas forçadas, Sim , m eu com andante, E que o tem po da sesta será reduzido a m etade, Sim , m eu com andante, Tem os de chegar a castelo rodrigo antes dos espanhóis, devem os consegui-lo, eles não estão prevenidos, nós, sim , E se não o conseguirm os, atreveu-se o sargento a perguntar, Consegui-lo-em os, de todos os m odos quem chegar prim eiro, espera. Tão sim ples com o isto, quem chegar prim eiro, espera, para isso não era preciso que o secretário pêro de alcáçova carneiro tivesse escrito a carta. Algo m ais haverá.

Os lobos apareceram no dia seguinte. Tanto deles tem os falado aqui que, por fim , decidiram m ostrar-se. Não parecem vir com ânim o de guerra, talvez porque o resultado da caçada, durante as últim as horas da noite, tenha bastado para confortar-lhes o estôm ago, além disso, um a coluna destas, de m ais de cinquenta hom ens, com um a boa parte deles arm ados, im põe respeito e prudência, os lobos podem ser m aus, m as estúpidos não são. Peritos na avaliação relativa das forças em presença, as próprias e as alheias, não vão atrás de entusiasm os, não perdem a cabeça, talvez porque não tenham bandeira nem charanga para levá-los à glória, quando se lançam ao ataque é para ganhar, regra que, em todo o caso, com o se verá um pouco m ais adiante, adm ite algum a exceção. Estes lobos nunca tinham visto um elefante. Não é de estranhar que algum deles, m ais im aginativo, tivesse pensado, se os lobos têm um pensam ento paralelo aos processos m entais hum anos, na sorte grande que seria para a alcateia dispor daquelas toneladas de carne logo à saída da toca, a m esa sem pre posta, alm oço, j antar e ceia. Não sabe o ingénuo canis lupus signatus, nom e latino do lobo ibérico, que naquela pele nem as balas conseguem entrar, convindo no entanto reconhecer a enorm e diferença que há entre um a bala das antigas, dessas que quase nunca sabiam aonde iam , e os dentes destes três representantes do povo lupino que, do alto do cabeço a que treparam , contem plam o anim ado espetáculo da coluna de hom ens, cavalos e bois que se prepara para um a nova etapa no cam inho para castelo rodrigo. É bem possível que a pele de salom ão não pudesse resistir por m uito tem po à ação concertada de três dentaduras treinadas no duro ofício de com er o que aparece para sobreviver. Os hom ens fazem com entários sobre os lobos, e um deles diz para os que estão perto, Se algum a vez forem atacados por um bicho destes e só tiverem um pau para defender-se, arranj em -se de m aneira que ele nunca consiga fincar-lhe os dentes, Porquê, perguntou alguém , Porque o lobo irá avançando pouco a pouco ao longo do pau, sem pre com os dentes cravados na m adeira, até chegar ao teu alcance e saltar-te em cim a, Diabo de anim al, Há que dizer que os lobos não são, por natureza, inim igos do hom em , e, se às vezes o parecem , é porque som os para eles um obstáculo ao livre desfrute do que o m undo tem para oferecer a um lobo honrado, Em todo o caso aqueles três não parecem dar m ostras de hostilidade ou m ás ideias a nosso respeito, Devem ter com ido, além disso som os dem asiados aqui para que se atrevessem a assaltar, por exem plo, um destes cavalos, que para eles representam um petisco de prim eira classe, Vão-se em bora, gritou um soldado. Era verdade. A im obilidade em que haviam perm anecido todo o tem po desde que chegaram rom pera-se. Agora, recortados prim eiro contra o fundo de nuvens e m ovendo-se com o se em vez de andar deslizassem , os lobos, um a um , desapareceram . Voltarem os a vê-los, perguntou o soldado, É possível, quanto m ais não sej a para saberem se ainda continuam os por aqui ou se algum cavalo ficou para trás estropeado, disse o hom em que sabia de lobos. Lá adiante, o corneta fez ouvir a ordem de preparar para a m archa. Mais ou m enos m eia hora depois a coluna, pesadam ente, com eçou a m over-se, à frente o carro de bois, a seguir o elefante e os hom ens para as forças, depois a cavalaria, e, a fechar o cortej o, o carro da intendência. A fadiga era geral. Entretanto, o cornaca j á tinha dito ao com andante que o salom ão vinha cansado,

e não seria tanto por obra da distância percorrida desde lisboa com o pelo péssim o estado dos cam inhos, se insistirm os em cham ar-lhes assim . O com andante respondeu-lhe que em um dia m ais, no m áxim o dois, avistariam castelo rodrigo, Se form os os prim eiros a chegar, acrescentou, o elefante poderá descansar os dias ou as horas que os espanhóis tardarem , descansará salom ão e todos quantos aqui vão, hom ens e bestas, E se form os nós a chegar depois, Depende da pressa que eles tragam , das ordens que tenham , suponho que tam bém hão-de querer descansar ao m enos um dia, Vossa senhoria sabe que estam os à sua conta, por m im só desej o que, até ao fim , o seu benefício sej a o nosso benefício, Assim há-de ser, disse o com andante. Deu de esporas ao cavalo e foi adiante, a anim ar o boieiro, de cuj a ciência de condução dependia em m uito a velocidade da progressão da coluna, Vam os, hom em , espevita-m e esses bois, gritou, castelo rodrigo j á está perto, não tarda m uito que possam os dorm ir um a noite debaixo de telha, E com er com o gente, espero, desabafou o boieiro em surdina, para que não o ouvissem . Em todo o caso, as ordens dadas pelo com andante não caíram em saco roto. O boieiro chegou a ponteira da aguilhada ao cachaço dos bois, com efetivo e im ediato resultado gritou um as palavras de incitam ento no dialeto com um , um esticão brusco que se m anterá talvez durante os próxim os dez m inutos ou um quarto de hora, assim o boieiro não deixe esm orecer a cham a. Acam param j á com o sol-posto e as prim eiras avançadas da noite, m ais m ortos do que vivos, fam intos m as sem vontade de com er, tal era a fadiga. Felizm ente, os lobos não voltaram . Se o tivessem feito poderiam ter circulado a seu bel-prazer pelo m eio do acam pam ento e escolher, entre os cavalos, a m ais suculenta vítim a. É certo que um roubo tão desproporcionado não poderia prosperar, um equino é um anim al dem asiado grande para ser levado de arraste assim sem m ais nem m enos, m as se tivéssem os de descrever aqui o susto dos expedicionários quando dessem pela presença dos lobos infiltrados, de certeza não encontraríam os palavras bastante fortes, seria um salve-se quem puder. Dêm os graças ao céu por term os escapado a essa prova. Dêm os tam bém graças ao céu porque j á se avistam as im ponentes torres do castelo, dá vontade de dizer com o o outro, Hoj e estarás com igo no paraíso, ou, repetindo as palavras m ais terrenais do com andante, Hoj e dorm irem os debaixo de telha, é bem certo que os paraísos não são todos iguais, há-os com huris e sem huris, porém , para saberm os em que paraíso estam os basta que nos deixem espreitar à porta. Um a parede que protej a da nortada, um telhado que defenda da chuva e do sereno, e pouco m ais é preciso para viver no m aior conforto do m undo. Ou nas delícias do paraíso.

Quem venha seguindo com suficiente atenção este relato, terá j á estranhado que depois do divertido episódio da patada que salom ão aplicou ao padre da aldeia não tenha havido referência a outros encontros com os habitantes destas terras, com o se viéssem os atravessando um deserto e não um país europeu civilizado que, ainda por cim a, com o nem a m ocidade das escolas ignora, deu novos m undos ao m undo. Encontros, houve-os, m as de passagem , no sentido m ais im ediato do term o, isto é, as pessoas saíam das suas casas para ver quem vinha e davam com o elefante que a uns os fazia benzerem -se de pasm o e apreensão e a outros, ainda que apreensão tam bém , suscitava o riso, é de crer que por causa da trom ba. Nada, portanto, que se com pare ao entusiasm o e à quantidade de rapazes e algum adulto desocupado que vêm correndo desde a vila à notícia da viagem do elefante, que não se sabe com o chegou aqui, à notícia nos referim os, não ao elefante, que esse ainda tardará. Nervoso, excitado, o com andante deu ordem ao sargento para que m andasse perguntar a um dos rapazes m ais crescidos se os m ilitares espanhóis j á

tinham chegado. O rapaz devia ser galego porque respondeu à pergunta com outra pergunta, Que vêm eles cá fazer, vai haver guerra, Responde, chegaram , ou não chegaram os espanhóis, Não senhor, não chegaram . A inform ação foi levada ao com andante em cuj a boca, no m esm o instante, apareceu o m ais feliz dos sorrisos. Não havia dúvida, a sorte parecia decidida a favorecer as arm as de portugal.

Ainda dem oraram quase um a hora a entrar na vila, um a caravana de hom ens e anim ais perdidos de cansaço, que m al tinham forças para levantar o braço ou acenar com as orelhas em agradecim ento aos aplausos com que os vizinhos de castelo rodrigo a recebiam . Um representante do alcaide guiou-os até à praça de arm as da fortificação, onde podiam caber pelo m enos dez caravanas com o aquela. Aí esperavam -nos três m em bros da fam ília dos castelões, que depois acom panharam o com andante a inspecionar os espaços disponíveis para abrigar os hom ens, sem esquecer os que os espanhóis viriam a necessitar no caso de não bivacarem fora do castelo. O alcaide, a quem o com andante foi apresentar os seus respeitos depois da inspeção, disse, O m ais provável é que instalem o acam pam ento fora das m uralhas do castelo, o que, além do resto, teria a grande vantagem de reduzir a possibilidade de confrontações, Por que pensa vossa senhoria que poderá haver confrontações, perguntou o com andante, Com estes espanhóis nunca se sabe, desde que têm um im perador parece que andam com o rei na barriga, e m uito pior ainda seria se em vez de virem os espanhóis viessem os austríacos, É m á gente, perguntou o com andante, Julgam -se superiores aos m ais, Isso é pecado geral, eu, por exem plo, j ulgo-m e superior aos m eus soldados, os m eus soldados j ulgam -se superiores aos hom ens que vieram para o trabalho pesado, E o elefante, perguntou o alcaide, sorrindo, O elefante não j oga, não é deste m undo, respondeu o com andante, Vi-o chegar de um a j anela, de facto é um anim al soberbo, gostaria de olhá-lo de m ais perto, É todo seu quando quiser, Não saberia que fazer com ele, a não ser alim entá-lo, Previno vossa senhoria de que este bicho requer m uito alim ento, Assim tenho ouvido dizer, e não m e apresento para ser proprietário de um elefante, sou um sim ples alcaide do interior, Isto é, nem rei nem arquiduque, Tal qual, nem rei nem arquiduque, só disponho do que posso cham ar m eu. O com andante levantou-se, Não lhe ocupo m ais tem po, senhor, m uito obrigado pela atenção com que m e recebeu, Foi serviço do rei, com andante, só seria serviço m eu se aceitasse ser hóspede desta casa enquanto perm anecesse em castelo rodrigo, Agradeço o convite, que m e honra m uito m ais do que poderá im aginar, m as devo estar com os m eus hom ens, Com preendo, tenho obrigação de com preender, no entanto espero que não se escusará a um a ceia num dos próxim os dias, Com todo o gosto, em bora dependa do tem po que tiver de esperar, im agine que os espanhóis aparecem j á am anhã, ou m esm o ainda hoj e, Tenho esculcas no outro lado encarregados de dar aviso, Com o o fazem , Com pom bos-correios. O com andante pôs cara de dúvida, Pom bos-correios, estranhou, tenho ouvido falar deles, m as, francam ente, não acredito que um pom bo sej a capaz de voar durante tantas horas com o dizem , em distâncias enorm es, para ir dar, sem se enganar, ao pom bal onde nasceu, Pois vai ter ocasião de verificar com os seus próprios olhos, se m e perm ite m andarei cham á-lo quando o pom bo chegar para que assista à retirada e à leitura da m ensagem que ele trará atada a um a pata, Se isso acontecer, só faltará que as m ensagens nos passem a chegar pelo ar sem precisarem das asas de nenhum pom bo, Suponho que seria um pouco m ais difícil, sorriu o alcaide, m as, havendo m undo, tudo poderá suceder, Havendo m undo, Não existe outra m aneira, com andante, o m undo é

indispensável, Não devo roubar-lhe m ais tem po, Deu-m e um a grande satisfação conversar com vossa m ercê, Para m im , senhor alcaide, depois desta viagem , foi com o um copo de água fresca, Um copo de água fresca que não lhe ofereci, Fica para a próxim a vez, Não se esqueça do m eu convite, disse o alcaide quando o com andante j á descia a escadaria de pedra, Serei pontual, senhor.

Mal entrou no castelo, ordenou que se apresentasse o sargento, a quem deu instruções sobre o destino próxim o dos trinta hom ens que tinham vindo para os trabalhos pesados. Um a vez que haviam deixado de ser necessários, ficariam ainda a descansar am anhã, m as regressariam no dia seguinte, Avise o pessoal da intendência para que prepare um a razoável quantidade de alim entos, trinta hom ens são trinta bocas, trinta línguas e um a quantidade enorm e de dentes, claro que não será possível provê-los de com ida para todo o tem po que levarem a chegar a lisboa, m as eles que se governem pelo cam inho, trabalhando ou, Ou roubando, acudiu o sargento à suspensão para não deixar a frase inacabada, Que se arranj em com o puderem , disse o com andante, recorrendo, à falta de m elhor, a um a das frases que com põem a panaceia universal, à cabeça da qual se exibe, com o exem plo perfeito da m ais descarada hipocrisia pessoal e social, aquela que recom endava paciência ao pobre a quem se tinha acabado de negar a esm ola. Os hom ens que haviam exercido de capatazes quiseram saber quando poderiam ir cobrar pelo trabalho, e o com andante m andou dizer que não sabia, m as que se apresentassem no paço e m andassem recado ao secretário ou a quem por ele pudesse responder, Mas aconselho-vos, a frase repetiu-a o sargento, palavra por palavra, a que não vades para lá todos j untos, pelo m au ar que dariam trinta m altrapilhos à porta do paço com o se quisessem assaltá-lo, em m inha opinião deverão ir os capatazes, e ninguém m ais, e esses que tratem de ir tão asseados quanto lhes sej a possível. Um deles, m ais tarde, encontrando por acaso o com andante, pediu-lhe licença para falar, só queria dizer que tinha m uita pena de não poder ir a valladolid. O com andante não soube que responder, durante alguns segundos olharam -se um ao outro em silêncio, e logo foi cada qual à sua vida.

Aos soldados, o com andante fez-lhes um rápido resum o da situação, esperariam ali que chegassem os espanhóis, ainda não se sabe quando será, por enquanto não há notícias, neste ponto conteve no últim o instante a referência aos pom bos-correios, consciente dos inconvenientes de qualquer espécie de relaxação da disciplina. Não sabia que entre os subordinados havia dois am antes dos pom bos, dois colum bófilos, palavra talvez ainda não existente na época, salvo porventura entre iniciados, m as que j á devia andar a bater às portas, com aquele ar falsam ente distraído que têm as palavras novas, a pedir que as deixem entrar. Os soldados estavam de pé, em posição de repouso, postura esta que era executada ad libitum , sem preocupações de harm onia corporal. Tem po virá em que estar em repouso form al custará quase tanto esforço a um m ilitar com o a m ais tensa das sentinelas, com o inim igo em boscado no outro lado da estrada.

No solo, estendidas, havia paveias de feno com espessura suficiente para que as asas das om oplatas não tivessem de sofrer dem asiado no contato com a dureza intratável das laj es.

Ensarilhadas, as espingardas alinhavam -se ao longo de um a parede. Provera a deus que não venha a ser necessário dar-lhes uso, pensou o oficial, preocupado com a possibilidade de que a entrega de salom ão viesse a descam bar, por falta de tato de um lado ou do outro, em casus belli.

Tinha bem presentes na m em ória as palavras do secretário pêro de alcáçova carneiro, tam bém as explícitas, claro, m as sobretudo as que, apesar de não terem sido escritas, se subentendiam ,

isto é, se os espanhóis, ou os austríacos, ou uns e outros, vierem a m ostrar-se antipáticos ou provocadores, deverá proceder-se em conform idade. O com andante não conseguia im aginar sob que pretexto os soldados que vinham a cam inho, espanhóis ou austríacos sej am eles, se m ostrariam provocadores, ou sequer apenas antipáticos. Um com andante de cavalaria não tem as luzes nem a experiência política de um secretário de estado, portanto fará bem em deixar-se guiar por quem m ais sabe, até chegar, no caso de que chegue, a hora da ação. Estava o com andante dando voltas a estes pensam entos quando subhro fez a sua entrada na im provisada cam arata onde algum as paveias de feno lhe haviam sido reservadas por diligência do sargento.

Ao vê-lo, o com andante sentiu um desconforto que só poderia ser atribuído à incóm oda consciência de que não se havia interessado pelo estado de saúde de salom ão, não o tinha ido ver, com o se, com a chegada a castelo rodrigo, a sua m issão tivesse term inado. Com o está o salom ão, perguntou, Quando o deixei, dorm ia, respondeu o cornaca, Valente anim al, exclam ou com falso entusiasm o o com andante, Veio aonde o trouxeram , a força e a resistência nasceram com ele, não são virtude própria, Vej o-te m uito severo com o pobre do salom ão, Talvez sej a por causa da história que um dos aj udas m e acabou de contar, Que história é essa, perguntou o com andante, A história de um a vaca, As vacas têm história, tornou o com andante a perguntar, sorrindo, Esta, sim , foram doze dias e doze noites nuns m ontes da galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lam a, e pedras com o navalhas, e m ato com o unhas, e breves intervalos de descanso, e m ais com bates e investidas, e uivos, e m ugidos, a história de um a vaca que se perdeu nos cam pos com a sua cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho, um a longuíssim a batalha, a agonia de viver no lim iar da m orte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as arrem etidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si m esm a e por um anim alzinho que ainda não se podia valer, e tam bém aqueles m om entos em que o vitelo procurava as tetas da m ãe, e sugava lentam ente, enquanto os lobos se aproxim avam , de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro respirou fundo e prosseguiu, Ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, m ais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai acabar aqui, continuou por m ais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha tornado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia j á dom iná-la ou sequer aproxim ar-se dela, a vaca foi m orta, m ataram -na, não os lobos que em doze dias vencera, m as os m esm os hom ens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de com preender que, tendo aprendido a lutar, aquele antes conform ado e pacífico anim al não poderia parar nunca m ais.

Um silêncio respeitoso reinou durante alguns segundos na grande sala de pedra. Os soldados presentes, em bora não m uito experim entados em guerras, baste dizer que os m ais novos nunca haviam cheirado a pólvora nos cam pos de batalha, assom bravam -se no seu foro íntim o pela coragem de um irracional, um a vaca, im agine-se, que havia m ostrado possuir sentim entos tão hum anos com o o am or de fam ília, o dom do sacrifício pessoal, a abnegação levada ao extrem o.

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