- Por desdita dele não houve ocasião de pôr em campo um outro sentido; o gosto ficou em inação bem contra sua vontade, não é assim, Sr. Augusto?...
- Minha prima, todos olham para nós...
- A respeito de tato, não direi palavra, continuou a terrível Moreninha; porque, se as mãos do Sr.
Augusto conservaram-se em justa posição, quem sabe os transes por que passariam os pés de minha prima?... Os Srs. estão juntinhos, que com facilidade e sem risco se podem tocar por baixo da mesa.
- Menina! exclamou a Sra. D. Ana, com acento de repreensão.
- Minha senhora, consinta que ela continue a gracejar, disse Augusto, meio aturdido. Além de me dar a honra de tomar-me por objeto de seus gracejos, dá-me também o prazer de apreciar e admirar seu espírito e agudeza.
- Agradecida! muito agradecida! tornou o diabinho da menina, rindo-se com a melhor vontade.
Eu cá não custo tanto a compreendê-lo como minha prima; já sei o que querem de mim os seus elogios...
estou comprada, não falo mais.
Uma risada geral aplaudiu as últimas palavras de D. Carolina; não há nada mais natural; ela era neta da dona da casa, e, além de ser moça, é rica.
Começava então a servir-se a sobremesa.
- E eu, apesar de amigo e colega de Augusto, disse por fim Fabrício, endireitando-se, não posso deixar de lastimar a Sra. D. Joaquina, pela triste conquista que acaba de fazer.
Augusto conheceu que lhe era dado o sinal de combate. Fabrício queria tomar vingança de sua nenhuma condescendência, e, pois, preparou-se para sustentar a luta com todo o esforço. E vendo que todos tinham os olhos nele, como que esperando uma resposta, não hesitou:
- Obrigado, disse; nem eu mesmo posso de mim formar outro conceito. Devo, todavia, declarar
que, se me fosse dado conhecer a ditosa mortal que conseguiu ganhar os pensamentos e o coração do meu colega, certo que lhe eu daria meus parabéns em prosa e verso, porque Fabrício é, sem contradição, a mais alegre e apreciável conquista!
A ironia o feriu. A interessante Moreninha lançou sobre Augusto um olhar de aprovação e sorriu-se brandamente; gostou de o ver manejar a sua arma favorita. Sem se explicar o porquê, também o nosso estudante teve em muita conta aquele sorriso da menina travessa. Fabrício continuou:
- Venha embora o ridículo, que nem por isso poder-se-á negar que para o nosso Augusto não houve, não há, nem pode haver amor que dure mais de três dias.
Todas as senhoras olharam para o réu daquele horrendo crime de lesa-formosura. Augusto respondeu:
- E o que há aí de mais engraçado é que Fabrício tem culpa disso, porque, enfim, manda o meu destino que eu sempre tenha andado, ande, e haja de andar em companhia dele, que, com a maior crueldade do mundo, tira-me todos os lances, antes de três dias de amor.
Novo olhar, novo sorriso de aprovação de D. Carolina, novo prazer de Augusto por merecê-los.
Fabrício torceu-se sobre a cadeira e prosseguiu:
- Nada de fugir da questão. Poder-se-ia julgar fraqueza querer de algum modo ocultar que, tanto em prática como em teoria, o meu colega é e se preza de ser o protótipo da inconstância.
- Eis o que ele não pode negar, acudiram Leopoldo e Filipe, rindo-se.
- E para que negar, se já o nosso colega afirmou que eu me prezava de ter essa qualidade?...
- Misericórdia! exclamou uma das moças.
- É possível?!... perguntou a avó de Filipe, com seriedade.
- É absolutamente verdade, respondeu o estudante.
Lançou depois um olhar ao derredor da mesa e todas as senhoras lhe voltaram o rosto. D.
Quinquina tinha nos lábios um triste sorriso. A Moreninha olhou-o com espanto, durante um curto momento, mas logo depois soltou uma sofrível risada e pareceu ocupar-se exclusivamente de uma fatia de pudim.
Reinou silêncio por alguns instantes: Fabrício parecia vitorioso; Augusto estava como em isolamento, as senhoras olhavam para ele com receio, mostravam temer encontrar seus olhos; dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhares nascesse para logo o sentimento que as devesse tornar desgraçadas. Desde as fatais palavras de Fabrício, Augusto era naquela mesa o que costumava ser um leproso na Idade Média: - o homem perigoso, cujo contato podia fazer a desgraça de outro.
Fabrício compreendeu em quão triste situação estava o seu adversário, e, inexperiente, se havia deixá-lo debatendo-se em sua má posição, quis ainda mais piorá-la, e foi, talvez, arrancá-lo dela. Fabrício, pois, fala; as senhoras embebem nele seus olhos e o aplaudem, enquanto Augusto, servindo-se de um prato de grosso melado, afeta prestar pouca atenção ao seu acusador.
- Sim, minhas senhoras, é um jovem inconstante, acessível a toda as belezas, repudiando-as ao mesmo tempo para correr atrás de outra, que será logo deixada pela vista de uma nova, como se ele fosse a inércia da matéria, que conserva uma impressão, mas que não a guarda senão o tempo que é gasto para um novo agente modificá-la!
- Muito bem! muito bem! disseram algumas vozes.
- Seu coração é pétrica abóbada de teatro, que não entende o dizer de Auber, quando soluça à flauta ternos sons de músico discurso, pois aquela muda superfície reflete a todos e a todos esquece com estúpida indiferença!...
- Bravo!... Fabrício está hoje romântico! exclamou Leopoldo, apontando maliciosamente para uma garrafa que se achava defronte do orador, e quase de todo esgotada.
- Apoiadíssimo!... murmurou Augusto, apontando também para a garrafa.
- Mas ele deverá viver de lágrimas, suspiros e ânsias de condenado... concluiu Fabrício.
- Bravo!... muito bem!... bravo!...
- Peço a palavra para responder! exclamou Augusto.
- Tem a palavra, mas nada de maçada!
- Duas palavras, minhas senhoras, só duas palavras.
- Sim, defenda-se, defenda-se.
- Defender-me?... certo que o não farei; poderia, ao contrário, acusar, mas também não quero; julgo apenas oportuno dar algumas explicações. Minhas senhoras, debaixo de certo ponto de vista o meu colega Fabrício disse a verdade, porque eu sou, com efeito, o mais inconstante dos homens em negócio de amor.
- Ainda repete?!
- Mas também quem me conhece bastante conclui que, por fim de contas, não há amante algum mais firme do que eu.
- O senhor está compondo enigmas.
- Não o interrompam, deixem-no apresentar o seu programa amoroso.
- Sim, minhas senhoras, continuou Augusto; vamos ao desenvolvimento da primeira proposição.
- Ouçam! ouçam!
- A minha inconstância é natural, justa e, sem dúvida, estimável. Eu vejo uma senhora bela, amo-a não porque ela é senhora... mas porque é bela; logo, eu amo a beleza. Ora, este atributo não foi exclusivamente dado a uma só senhora, e quando o encontro em outra, fora injustiça que eu desprezasse nesta aquilo mesmo que tanto amei na primeira.