— Ai! o sol está quase a se pôr! Vamos.
E as duas moças tomaram pelo interior da casa, dirigindo-se ao lado da entrada.
Página 23
VI A VOLTA
Ao mesmo tempo que esta cena se passava no jardim, dois homens passeavam do outro lado da esplanada, na sombra que projetava o edifício.
Um deles, de alto porte, conhecia-se imediatamente que era um fidalgo pela altivez do gesto e pelo trajo de cavalheiro.
Vestia um gibão de velado preto com alamares de seda cor de café no peito e nas aberturas das mangas; os calções do mesmo estofo, e também pretos, caíam sobre as botas longas de couro branco com esporas de Ouro Uma simples preguilha de linho alvíssimo cercava o talho do seu gibão, e deixava a descoberto o pescoço, que sustentava com graça uma bela e nobre cabeça de velho.
De seu chapéu de feltro pardo sem pluma escapavam-se os anéis de cabelos brancos, que calam sobre os ombros; através da longa barba alva como a espuma da cascata, brilhavam suas faces rosadas, sua boca ainda expressiva, e seus olhos pequenos mas vivos.
Este fidalgo era D. Antônio de Mariz que, apesar de seus sessenta anos, mostrava um vigor devido talvez à vida ativa; trazia ainda o porte direito, e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade.
O outro velho, que caminhava a seu lado com o chapéu na mão, era Aires Gomes, seu escudeiro e antigo companheiro de sua vida aventureira; o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo.
A fisionomia deste homem tinha, quer pela sagacidade inquieta que era a sua expressão ordinária, quer pelos seus traços alongados, uma certa semelhança com o focinho da raposa, semelhança que era ainda mais aumentada pelo seu trajo bizarro. Trazia sobre o gibão de belbutina cor de pinhão uma espécie de véstia do pêlo daquele animal, do qual eram também as botas compridas, que lhe serviam quase de calções.
— Em que o negues, Aires Gomes, dizia o fidalgo ao seu escudeiro, medindo a passos lentos o terreno; estou certo que és do meu parecer.
— Não digo de todo que não, sr. cavalheiro; confesso que D. Diogo cometeu uma imprudência matando essa índia.
— Dize uma barbaria, uma loucura!... Não penses que com ser meu filho, o desculpo!
— Julgais com demasiada severidade.
— E o devo, porque um fidalgo que mata uma criatura fraca e inofensiva, comete uma ação baixa e indigna. Durante trinta anos que me acompanhas, sabes como trato os meus inimigos; pois bem, a minha espada, que tem abatido tantos homens na guerra, cair-me-ia da mão se, num momento de desvario, a erguesse contra uma mulher.
— Mas é preciso ver que casta de mulher é esta, uma selvagem...
— Sei o que queres dizer; não partilho essas idéias que vogam entre os meus companheiros; para mim, os índios quando nos atacam, são inimigos que
devemos combater; quando nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos, mas são homens!
— Vosso filho não pensa assim, e bem sabeis que os princípios que lhe deu a Sra. D. Lauriana...
Página 24
— Minha mulher!... replicou o fidalgo com algum azedume. Mas não é disto que discorríamos.
— Sim; faláveis dos receios que vos inspirava a imprudência de D. Diogo.
— E que pensas tu?
— Já vos disse que não vejo as coisas tão negras como vós, Sr. D. Antônio. Os índios vos respeitam, vos temem, e não se animarão a atacar-vos.
— Digo-te que te enganas, ou antes que procuras enganar-me.
— Não sou capaz de tal, sr. cavalheiro!
— Conheces tão bem como eu, Aires, o caráter desses selvagens; sabes que a sua paixão dominante é a vingança, e que por ela sacrificam tudo, a vida e a liberdade.
— Não desconheço isto, respondeu o escudeiro.
— Eles me temem, dizes tu; mas desde o momento em que se julgarem ofendidos por mim, sofrerão tudo para vingar-se
— Tendes mais experiência do que eu, sr. cavalheiro; mas queira Deus que vos enganeis.
Voltando-se na beira da esplanada para continuarem o seu passeio, D. Antônio de Mariz e o seu escudeiro viram um moço cavaleiro que atravessava pela frente da casa.
— Deixa-me, disse o fidalgo a Aires Gomes; e pensa no que te disse; em todo o caso que estejamos preparados para recebê-los.
— Se vierem! retrucou o teimoso escudeiro afastando-se.
D. Antônio dirigiu-se lentamente para o moço fidalgo que se havia sentado a alguns passos.
Vendo aproximar-se seu pai, D. Diogo de Mariz ergueu-se e descobrindo-se esperou-o numa atitude respeitosa.
— Sr. cavalheiro, disse o velho com um ar severo, infringistes ontem as ordens que vos dei.
— Senhor...
— Apesar das minhas recomendações expressas, ofendestes um desses selvagens e excitastes contra nós a sua vingança. Pusestes em risco a vida de vosso pai, de vossa mãe e de homens dedicados. Deveis estar satisfeito de vossa obra.
— Meu pai!...