Depois, a família chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia.
Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família, o que havia recebido como um favor imenso.
O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite, era o regime caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.
Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família; durante o dia corriam os matos e ocupavam-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.
Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinham também fazer a sua oração da tarde.
Quanto à família, esta conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a semana; o domingo era consagrado ao repouso, à distração e à alegria; então deva-se às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.
Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sábado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a aventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra.
Formado o grupo da família, a conversa travou-se entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas, o que rara vez sucedia.
Álvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília, da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse à conversa.
— Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antônio, disse ele aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.
— Qual? Vejamos, respondeu o fidalgo.
— A coisa de quatro léguas daqui encontramos Peri.
— Inda bem! disse Cecília; há dois dias que não sabemos noticias dele.
— Nada mais simples, replicou o fidalgo; ele corre todo este sertão.
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— Sim! tornou Álvaro, mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples.
— O que fazia então?
— Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecília.
— Meu Deus! exclamou a moça soltando um grito.
— Que tens, menina? perguntou D. Lauriana.
— É que ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.
— Não se perde grande coisa, respondeu a senhora.
— Mas eu serei a causa de sua morte!
— Como assim, minha filha? disse D. Antônio.
— Vede vós, meu pai, respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; conversava quinta-feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...
— E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo, replicou o fidalgo rindo. Não há que admirar. Outras tem ele feito.
— Porém, meu pai, isto é coisa que se faça! A onça deve tê-lo morto.
— Não vos assusteis, D. Cecília; ele saberá defender-se.
— E vós, Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a defender-se? disse a moça sentida.
— Oh! se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal!
E o moço contou parte da cena passada na floresta.
— Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!
A conversa continuou; mas Cecília tinha ficado triste, não tomou mais parte nela.
D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço conversaram até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia.
Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação, Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília.
— Não me perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecília? disse ele à meia voz.
— Ah! sim! trouxestes todas as coisas que vos pedi?
— Todas e mais... disse o moço balbuciando.
— E mais o quê? perguntou Cecília.
— E mais uma coisa que não pedistes.