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— Esta não quero! respondeu a moça com um ligeiro enfado.

— Nem por vos pertencer já? replicou ele timidamente.

— Não entendo. É uma coisa que já me pertence, dizeis?

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— Sim; porque é uma lembrança vossa.

— Nesse caso guardai-a, Sr. Álvaro, disse ela sorrindo, e guardai-a bem.

E fugindo, foi ter com seu pai, que chegava à varanda, e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas encomendas. Estas consistiam em jóias, sedas, espiguilhas de linho, fitas, glacês, holandês, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.

Vendo essas armas, a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo:

— Meu pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para te defenderes.

A ceia foi longa e pausada, como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação seria, e a mesa um altar que se respeitava.

Durante a colação, Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.

Logo que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu quarto, e ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e estava deserta e solitária.

Sentia apertar-se o coração com a idéia de que, por um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida, e arriscava todos os dias a sua somente para fazê-la sorrir.

Tudo nesta recâmara lhe falava dele: suas aves, seus dois amiguinhos que dormiam, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as penas que serviam de ornato ao aposento, as peles dos animais que seus pés rogavam, o perfume suave de benjoim que ela respirava; tudo tinha vindo do índio, que, como um poeta ou um artista, parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira.

Ficou assim a olhar pela janela muito tempo; nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro, o jovem cavalheiro elegante, tão delicado, tão tímido, que corava diante dela, como ela diante dele.

De repente a moça estremeceu.

Tinha visto a luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexíveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor dúvida.

Era Peri.

Sentiu-se aliviada de um grande peso; e pôde então entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a atenção, os lindos objetos que recebera, e que lhe causavam um vivo prazer.

Nisto gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.

Página 32

VIII TRÊS LINHAS

Tudo estava em sossego; apenas quando o vento escasseava, ouvia-se do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas.

A esta hora, havia naquele lagar três homens bem diferentes pelo seu caráter, pela sua posição e pela sua origem, que entretanto tinham uma mesma idéia.

Separados pelos costumes e pela distancia, os seus espíritos quebravam essa barreira moral e física, e se reuniam num só pensamento, convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo.

Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existências, que mais cedo ou mais tarde hão de cruzar-se no seu vértice.

Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa, trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa, no meio da qual trescalavam em escudelas de pau algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite dos convivas.

O catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar; mas, em compensação, viam-se aos cantos do alpendre, grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás, onde os aventureiros podiam beber à larga.

O vício tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens; afora uma pequena diferença de sabor, havia no fundo de todas elas o álcool que excita o espírito, e produz a embriaguez.

A colação começara há meia hora; nos primeiros momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes, os beijos dados aos canjirões, e o ranger da faca na escudela.

Depois, um dos aventureiros proferiu uma palavra, cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa; a conversa tornou-se uma espécie de coro confuso e discordante.

Foi no meio desta algazarra que um dos convivas, erguendo a voz, lançou estas palavras:

— E vós, Loredano, nada dizeis? Estais ai que não há modo de vos ouvir uma palavra!

— Certo, acudiu outro, Bento Simões diz verdade; se não é a fome que vos traz mudo, algo tendes, misser italiano.

— Voto a Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que são penares por alguma moçoila que andou reqüestando em São Sebastião.

— Tirai-vos lá com os vossos penares, Rui Soeiro; achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez?

— E por que não, Vasco Afonso? Todos calçamos pelo mesmo sapato, em que o aperte mais a uns do que a outros.

— Não julgueis os mais por vós, dom namorado; homens há que trazem seu pensamento empregado em coisa de mor valia do que requebros e galanteios.

O italiano conservava-se taciturno, e deixava que os outros o trouxessem à baila, sem dar-se por achado: era fácil de ver que ele seguia com afinco uma idéia que lhe trabalhava no espírito.

— Mas, por Deus, continuou Bento Simões, falai-nos do que vistes na vossa viagem, Loredano; apostaria que alguma vos sucedeu!

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