Nessa muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragá-lo ao menor movimento, e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!
Era feliz: tinha visto sua senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar.
Uma lembrança triste porem o assaltou; vendo os lindos objetos que a moça recebera, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.
O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se, colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.
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Assim, era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.
Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.
É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopéias do coração.
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IX AMOR
As cortinas da janela cerraram-se; Cecília tinha-se deitado.
Junto da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura de virgem, velavam três sentimentos profundos, palpitavam três corações bem diferentes.
Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue; o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava, pela barreira que se elevava entre ele, pobre colono, e a filha de D. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão.
Para destruir esta barreira e igualar as posições, seria necessário um acontecimento extraordinário, um fato que alterasse completamente as leis da sociedade naquele tempo mais rigorosas do que hoje; era preciso uma dessas situações em face das quais os indivíduos, qualquer que seja a sua hierarquia, nobres e párias, nivelam-se; e descem ou sobem à condição de homens.
O aventureiro compreendia isto; talvez que o seu espírito italiano já tivesse sondado o alcance dessa idéia; em todo o caso o que afirmamos é que ele esperava, e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo e uma constância a toda a prova; os vinte dias que passara no Rio de Janeiro tinham sido verdadeiro suplício.
Em Álvaro, cavalheiro delicado e cortês, o sentimento era uma afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade.
Sentir-se perto de Cecília vê-la e trocar alguma palavra a custo balbuciada; corarem ambos sem saberem por quê, e fugirem desejando encontrar-se; era toda a história desse afeto inocente, que se entregava descuidosamente ao futuro, librando-se nas asas da esperança.
Nesta noite Álvaro ia dar um passo que na sua habitual timidez, ele comparava quase com um pedido formal de casamento; tinha resolvido fazer a moça aceitar, malgrado seu, o mimo que recusara, deitando-o na sua janela; esperava que encontrando-o no dia seguinte, Cecília lhe perdoaria o seu ardimento, e conservaria a sua prenda.
Em Peri o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.
Ao contrário dos outros ele não estava ali, nem por um ciúme inquieto, nem por uma esperança risonha; arrostava a morte unicamente para ver se Cecília estava contente, feliz e alegre; se não desejava alguma coisa que ele adivinharia no seu rosto, e iria buscar nessa mesma noite, nesse mesmo instante.
Assim o amor se transformava tão completamente nessas organizações, que apresentava três sentimentos bem distintos; um era uma loucura, o outro uma paixão, o último uma religião.
Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava. O aventureiro daria a vida para gozar; o cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar; o selvagem se mataria, se preciso fosse, só para fazer Cecília sorrir.
Entretanto nenhum desses três homens podia tocar a janela da moça, sem correr um risco iminente; e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecília.
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Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça de distancia da ribanceira, D. Antônio de Mariz para defender esta parte do edifício tinha feito construir um respaldo que se abaixava da precinta das janelas até à beira da esplanada; era impossível pois caminhar sobre este plano inclinado, cuja face lisa e polida não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais firme e o mais seguro.
Abaixo da janela abria-se a rocha cortada a pique e formava um valado profundo, coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a todos esses répteis de mil formas que pululam na sombra e na umidade.
Assim o homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda, se por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha, seria devorado em um momento pelas cobras e insetos venenosos que enchiam essas grotas e alcantis.
Havia alguns instantes que a cortina da janela se tinha cerrado; apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verde-negro do óleo o quadro da janela.
O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho, onde revia todas as imagens de sua louca paixão, estremeceu de repente. Na claridade debuxava-se uma sombra móbil; um homem se aproximava da janela.
Pálido, com os olhos ardentes e os dentes cerrados, pendido sobre o precipício, seguia as menores evoluções da sombra.
Viu um braço que se estendia para a janela, e a mão que deixava no parapeito um objeto qualquer, mas tão pequeno que não se percebia a forma. Pela manga larga do gibão, ou antes pelo instinto, o italiano adivinhou que este braço pertencia a Álvaro; e compreendeu o que esta mão havia deitado na janela.
E não se enganava.
Álvaro, segurando-se a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo, coseu o corpo à parede; inclinando conseguiu realizar o seu intento.
Depois voltou partilhado entre o temor da ação que praticara, e a esperança de que Cecília lhe perdoaria.
Loredano apenas viu desaparecer a sombra, e ouviu os ecos dos passos do moço, que se repercutiam surdamente no fundo do precipício, sorriu. Sua pupila fulva brilhou na treva, como os olhos da irara.
Tirou a sua adaga e cravou-a na parede tão longe quanto lhe permitiu a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o ângulo.
Suspendendo-se então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximar-se da janela; à menor indecisão, ao menor movimento, bastava que o pé lhe faltasse, ou que o punhal vacilasse no cimento, para precipitar-se com a cabeça sobre as pedras.
Enquanto isto se passava, Peri sentado tranqüilamente no galho do óleo, e escondido pela folhagem, assistia imóvel a toda esta cena.
Logo que Cecília cerrou as cortinas da janela, o índio vira os dois homens que colocados à direita e a esquerda pareciam esperar.
Esperou também, curioso de saber o que se ia passar, mas resolvido, se fosse preciso, a lançar-se de um pulo sobre aquele que ousasse fazer a menor violência, e a caírem ambos do alto da esplanada. Tinha reconhecido Álvaro e Loredano; desde muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecília; mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita.